Cortesia de ubedu
Diálogo de duas Jovens sobre a Vida na Corte e a Vida Particular
Com a devida vénia à Fundação Calouste Gulbenkian na pessoa de Isabel Allegro de Magalhães.
«Na literatura do século XVI surgem também, embora em número muito reduzido, alguns escritos de mulheres. Sabemos que o círculo que se constitui à volta da Infanta D. Maria, círculo notável pela sua qualidade intelectual e cultural, era quase exclusivamente de mulheres. Destas, ficaram para a história nomes como os de Joanna Vaz, Luísa Sigeia, Angela Sigeia (irmã de Luísa), Paula Vicente, Hortênsia de Castro, D. Leonor Coutinho e várias outras. Esta informação é-nos dada por D. Carolina Michäelis de Vasconcelos em A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas. Américo da Costa Ramalho, porém, no Prefácio à 2.ª edição (fac-similada) deste livro refere outro conjunto de nomes femininos ligados à cultura em Portugal nos finais do século XV (por volta de 1485), entre os quais distingue o de D. Leonor de Noronha – que D. Carolina de Michäelis também refere, como pertencendo a outra geração – que escreveu e publicou.
Há, por conseguinte, cerca de 50 anos antes da Infanta D. Maria, um grupo de mulheres, quase todas da nobreza, que estão activamente ligadas ao movimento cultural acontecido na corte portuguesa de então.
A obra de Luísa Sigeia, de 1552, está publicada em edição bilingue: em latim, a língua original, Duarum virginum colloquium de vita aulica et privata e em francês – tradução de Odette Sauvage – Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de cour et la vie de retraite.
Foi escrita em Lisboa, por esta jovem nascida em Espanha, Toledo, que veio para a corte portuguesa a convite da Infanta D. Maria, devido ao renome que já então conquistara entre os humanistas do tempo, como humanista e «poliglota » conforme ela própria o escreve na Dedicatória à Infanta D. Maria que consta do início do livro. As línguas que Luísa Sigeia conhece e domina são, para além do grego e latim, o sírio, o árabe e o hebraico. Esta informação é-nos dada num curioso livro de 1790, escrito «Por Hum Amigo da Razão», e no qual se elogia o «merecimento das mulheres» – Tractado sobre a Igualdade dos Sexos ou Elogio do Merecimento das Mulheres». Isabel Allegro de Magalhães, In Tempo das Mulheres. Lisboa: INCM, 1987, p. 131-139
Cortesia de librosaulamagna
LUÍSA SIGEIA
(Tradução de excertos, realizada por Maria do Rosário Laureano Santos, a partir do original em latim: Colloquium duorum virginum de vita aulica et privata, de 1552. Não existe nenhuma versão portuguesa, apenas uma tradução francesa publicada em edição bilingue: Louise Sigéé. Dialogue de deux jeunes filles sur la vie de cour et la vie privée. Introdução, trad. e notas por Odette Sauvage. Paris, PUF, 1970.
Cortesia de amigosdobotanico
Proémio
I
Flamínia: Vês, porventura, minha cara Blesila, o encanto desta casa de campo? Se eu fosse livre e tu quisesses anuir aos meus votos, demorar-nos-íamos com certeza aqui mais alguns dias, porque qualquer uma de nós teria muito interesse em adiar a partida para a cidade, tanto para descansar o espírito, como para tolerar depois mais facilmente as fadigas e os inconvenientes da corte. E assim, tal como diz aquele cómico, deste nosso campo próximo retiraremos esta comodidade, para que nunca nos atinja nem a aversão ao campo, nem a aversão à cidade.
Logo que sintas que começou a tornar-se cansativo, mudaremos de lugar.
Blesila: Principalmente quando o próprio local é ameno, com as nascentes muito límpidas e murmurando suavemente, com as árvores frondosas mostrando, com as flores e frutos, o maravilhoso artífice do universo, com as aves, de canto diverso, dando graças incessantemente ao seu criador; todas estas coisas nos movem e nos aproximam da afeição para com o que é elevado e eterno, afastando-nos, pelo contrário, do tédio, do fútil e do vazio. Olha! A vicissitude está em todas as coisas.
Cortesia de dragonbooks
II
Flamínia: Certamente, é verdade o que dizes. Mas eu ainda não aspiro demasiado a esta vida; e mais, a corte e a vida do paço agradam-me. De facto, ainda que eu quisesse curar algumas contrariedades que existem na convivência do paço com este ócio campestre e, por esta razão, me agrade demorar-me aqui mais um pouco, é-me contudo agradável voltar à corte todas as vezes que quiser, enquanto for livre. Para falar verdade, não louvo a filosofia nem essa tua afeição pela vida monástica, nem me decido por elas.
Blesila: Se sentes da forma como dizes, não te apercebes da qualidade deste local para nós, nem quanta comodidade é possível retirar dele; de facto, as coisas humanas e perecíveis deslumbram de tal modo que não te lembras que todas elas são vaidade e tormento do espírito, tal como diz o Sábio, do mesmo modo que a condição feliz e orgulhosa dos poderosos é humilde e vil; porque o medo de a perder ameaça o homem feliz e o desespero cruel de nunca prosperar intimida o infeliz. Existem os que sofrem por elas – são muitos – e são destruídos segundo estas palavras de Job, bastante experiente numa e noutra condição: “Os meus passaram mais rápidos do que um atleta de corrida; fugiram e não viram a felicidade.”
Flamínia: Já te disse, minha cara Blesila, não me preocupo nem alguma vez me hei-de preocupar dessa maneira. Seguramente, essas preocupações serão para ti. Se lamentas que o que desejavas não tenha acontecido segundo os teus votos (muitas vezes daí provem o desgosto do século), com razão preferes uma vida obscura e retirada.
Louvas esse tipo de vida, porque tu o escolheste e dás-lhe preferência sempre que te sentes constrangida a aconselhar o que adoptaste. De facto, ainda não vi o que se deve reprovar na vida pública de modo a que lhe tenha ódio; especialmente, na nossa vida da corte, na qual, se alguma coisa deve ser desejada pelos imortais, esta é, sem dúvida, abundante para todos os mortais, por exemplo, o aspecto harmonioso do corpo no uso da conversação e na convivência benévola, alguma nobreza no modo de ser, e também a audácia livre de dizer o que é agradável. Os que quiserem aspirar a todas estas coisas, embora seja difícil e sobre-humano atingi-las, podem consegui-lo se, com todo o ânimo, a elas se dedicarem definitivamente. E se tu me respondes que é difícil e penoso o serviço dos príncipes, lembra-te que a parte principal da felicidade do paço é esta: os espíritos corajosos são submissos aos ilustres e célebres, benignos e poderosos pela sua própria natureza, os quais só eles são capazes de fazer felizes os súbditos, até mesmo os desafortunados; e consiste também em admirá-los, contemplá-los, em usufruir do divino aspecto daqueles em todas as horas, concedido somente aos príncipes pelo supremo artífice do universo, aspecto mais elegante e mais distinto em comparação com outros. Consiste ainda em usufruir dos espíritos muito vivos destes, habituados desde o começo da vida a atribuir recompensas dignas aos bons e, inversamente, a castigar os crimes nefandos dos maus com o terror ou com suplícios, como é conveniente. Têm por costume elevar ao cume a dignidade os espíritos incansáveis nos seus trabalhos e os súbditos merecedores quer de honras quer de grandes benefícios, e costumam apresentá-los de tal forma à nação que os descendentes destes ilustres e notáveis brilham entre todo o povo. Por fim, embora os corações dos reis estejam nas mãos de Deus, como testemunha a Escritura, é preciso acreditar inteiramente que os bens que os príncipes atribuem são muito melhores do que todos os outros. Na verdade, os males pelos quais decidem punir estão completamente justificados e é muito necessário, quer para regrar os costumes, quer para que, passada a tormenta dos males, quando um estado de vida mais tranquilo brilhar, eles possam tornar esta vida mais doce e mais suave, tal como disse o poeta de Mântua:
«Talvez a lembrança destas provações seja um dia agradável».
Além disso, na corte o tempo passa sem tédio, o que penso que não é de pouca importância. Na verdade, embora julguem ociosa a vida na corte os que nela não participam, estão completamente enganados, estão enganados. Nas escolhas do vestuário, na disposição dos ornamentos, no polir as palavras elegantes e espirituosas, com as quais quer as mulheres agradam aos homens quer, por sua vez, os homens às mulheres, quer ainda com as palavras que possam criticar aqueles que não saibam responder de improviso e espirituosamente às graças a eles dirigidas, consome-se, de facto, um tão longo espaço de tempo que o início e o fim de um ano são quase a mesma coisa. Deixo de lado o esforço contínuo para agradar aos príncipes e o esforço de solicitar junto deles com admirável habilidade o favor ou a consideração, pois isto não só restitui anos mas também a vida, quase toda tão efémera que apenas se sente enquanto passa naturalmente; aquilo que aconselho não deve ser de modo nenhum desprezado, porque os dias são maus, como diz Paulo.
Cortesia de zefgfuberlin
III
Blesila: Tu, minha cara, causas-me uma grande alegria porque me dás uma ampla matéria de debate através das tuas opiniões falaciosas, com o qual eu poderei libertar-te a ti, tristemente enredada, e demonstrarei de forma mais clara do que o dia que os fins e os resultados são vãos, visto que Deus me ama tanto que me faz ter pena da tua sorte, receando eu que caias, precipitada, em danos irreparáveis, provenientes habitualmente desta afeição pelas coisas humanas. Contudo, consola-me uma certa natureza inata no teu espírito, onde, se não me engano, a verdade invencível encontrará para si o seu lugar (todas as vezes que for conveniente). Portanto, tenho intenção de tratar todos os assuntos que tu aprovas com todo o alento. E embora pareça muito difícil, tomei a decisão de refutar as tuas opiniões por meio de argumentos muito fortes, conquanto tu estejas disposta a mantê-las, e de discutir se todas as partes da felicidade da corte são dignas desse nome, felicidade. Em primeiro lugar, pergunto se o serviço dos príncipes, como tu asseguras, é mais suave, se o favor é doce, se a convivência é melíflua, se as dádivas são vantajosas e as honras de grande preço, e se são idóneos os motivos pelos quais se deve eleger a vida da corte e pelos quais se deve acreditar que esta é muito melhor do que todas as outras. Se puder, não omitirei todas as outras obrigações do paço, de tal modo agradáveis ao teu gosto que sentes e asseguras que as restantes devem ser de pouco valor. Voltemos ao assunto; portanto, é conveniente que me mostres que estes príncipes, aos quais serves (como é preciso que os espíritos corajosos a eles se submetam), são dotados por todas as qualidades que aquele divino Platão, Pitágoras e um grande número de filósofos desejavam para o verdadeiro príncipe; depois, que proves que é necessário que aqueles, mesmo que sejam tais quais os sábios os descrevem, não estão sujeitos a esta máxima de David:
«O espírito dele sai e voltará para a sua terra; naquele dia, perecerão todos os pensamentos deles».
De onde não só são falsos todos os bens dos príncipes, porque são efémeros, mas também sem encanto, porque falsos, e ainda os males que infligem não devem ser temidos, porque são muitas vezes injustos.
Cortesia de uned
IV
Flamínia: Louvo a tua opinião, Blesila, e o modo de refutar. De facto, quando tiveres demonstrado que qualidades são necessárias aos príncipes segundo as palavras dos filósofos (tal como prometes), louvarás de passagem os meus príncipes, que anteriormente já mostrei que (como dizem) foram feitos perfeitos e foram aperfeiçoados por uma indestrutível cadeia de virtudes. Depois, acontecerá que te convencerei com os teus próprios raciocínios, visto que tu própria mostras que é muito justo esforçarmo-nos para agradar aos príncipes, e, se for preciso, dedicar a vida ao serviço deles. Com efeito, este limite da felicidade que tu ameaças nada acrescenta ao assunto, porque nós, tal como todas as nossas coisas, estamos subordinados aos limites; entretanto, que o teu Salomão nos permita usufruir destes bens e que sinta que isso é um dom de Deus. Existem ainda outras vantagens que tornam a vida da corte mais agradável, se delas tratares livremente reconhecerás que elas devem ser procuradas por todos sem receio.
Blesila: Sem dúvida, eu vou tentar a experiência e encadear bem as ideias, ainda que empreenda uma dura prova, fá-la-ei de bom grado, porque espero obter certamente a palma da vitória depois do debate. Porém, porque havemos de conversar sobre vários pontos, penso que não estará fora de questão dividir o nosso diálogo por alguns dias e durante algumas horas, não só para que possamos tratar melhor e mais detalhadamente cada um dos pontos, mas também para que, tendo sido feita uma pequena interrupção, o espírito recupere as forças, com as quais possa avançar para mais longe; além disso, porque em nenhuma outra situação nos é dado usufruir deste ócio do campo e repousar dos inconvenientes do paço, sobretudo por meio de um debate deste tipo. Assim, hoje trataremos somente dos príncipes, se achares bem; amanhã e depois de amanhã, conforme houver ocasião, conversaremos sobre os outros deveres da corte.
Primeiro dia, isto é, primeira parte do Diálogo:
sobre os príncipes, como deveriam ser e como realmente são.
Cortesia de misteriospublicos
Cortesia de Fundação Calouste Gulbenkian/Isabel Allegro de Magalhães/HALP_27/JDACT