sábado, 19 de abril de 2025

Fernando Campos. A Casa do Pó. «… a frei Bonifácio, a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada têm a ver com o Senhor Jesus Cristo?»

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Veneza... 

«Todos os anos os incorpora na triunfal e soleníssima procissão de Corpus Christi. Este ano de sessenta e dois, depois de escolhida a família franciscana, dirigimo-nos a Veneza a fim de providenciar-lhe a partida. Assistimos então àquela opulentíssima cerimónia, que caiu a quatro de Maio. Tantas e tão momentosas eram as solicitações que me faziam aos sentidos as imagens da cidade em festa que se me torna difícil captar todas as minúcias. Pareciam ganhar vida e ao mesmo tempo insistir comigo, chamar-me, puxar-me pela dobra da manga, ínsinuar-se-me nos ouvidos, no olfato e gritar-me: olha-me! Escuta-me! Aprecia a minha forma, a minha cor, o meu gosto, o meu brilho, o meu som, o meu aroma!...

Linda é Veneza, a dos palácios de fachadas rendilhadas e varandins de nobres e formosas damas, a espelhar-se ondulante nas águas verde-negras de canais por onde vogam gôndolas esbeltas; das finas pontes solícitas, em que suspiram amantes enlaçados; das arcadas debruando praças; das torres altaneiras que espreitam o Adriático e as ilhas dispersas da laguna; das líquidas ruas angustiadas entre paredes lavradas; dos sinos que ressoam e tangem pratas na atmosfera húmida; do suave marulhar das águas nas noites calmas de luar! Mas em festa atavia-se até ao pormenor requintado, até à orquestração delirante das formas. Paganiza-se, paganiza a festa litúrgica que, por excelência, não deverá de ser paganizável. Ao meu espírito de franciscano é uma demonstração de fausto e de riqueza que ofende a humildade e a pobreza cristã, não obstante a argumentação de frei Bonifácio procurando convencer-me do contrário e até da necessidade da pompa para dignificar a Igreja e os seus ministros.

Meu padre, dizia eu a frei Bonifácio, a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada têm a ver com o Senhor Jesus Cristo? O meu pensamento está-me dizendo que toda esta luxúria, este fausto, esta opulência e ostentação exterior de riqueza desviam as almas do verdadeiro espírito de cerimónia tão santa. A Igreja, visse o seu bom Pantaleão, tinha necessidade de dar de si uma alta imagem, à altura se possível, e oxalá pudesse!, da majestade divina.

Cristo era pobre ..., e era Deus... O anel que o imperador, o rei, o príncipe, oferecia à desposada não era, não podia ser, de modo algum, igual àquele outro, de ouropel ou latão, que o mesteiral, o camponês, entregava à namorada. Cristo era o esposo dos esposos. Que espanto que a Igreja, sua desposada, fosse procurar aos mais remotos confins do mundo a jóia mais rara, o marfim mais branco, o mármore mais puro? Nenhum ouro, nenhuma prata podiam ser bastantes a celebrar a majestade das majestades.

Nosso padre São Francisco não pensava assim... Nosso padre São Francisco comporia um hino em que cantariam os louvores do Criador a safira de azul mais imaculado, o rubi de vermelho mais sanguíneo, grande e invulgar, o topázio cor de laranja, a verde esmeralda, o peridoto, o diamante, a opala, o ónix, a ágata, a cornalina, restituindo, devolvendo assim a Deus estas maravilhosas obras de Deus. A argumentação de frei Bonifácio apanhava-me como em ratoeira construída por mim próprio». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Veneza, Literatura, 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?»

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O Sósia

«(…) Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do embaixador de Espanha. E como poderia o embaixador de Espanha saber?, perguntou frei Estêvão. Nem quero pensar, disse frei Crisóstomo com ar grave, que entre nós haja um traidor. Pode lá ser!, exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. Teria de se haver comigo. E comigo, disse Pessoa. Tens razão, Pimentel, secundou Nuno Costa. Não pode ser. Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa do arcebispo... E lançava aos companheiros um olhar sagaz. Vou à Senhoria, disse Frei Estêvão. Hei-de falar com alguém do Conselho. Quero saber o que se passa. No palácio o juiz Marco Quirini recebeu-o com solicitude, disse que o processo estava confiado a mais três juízes, além dele, e que seguia com todas as cautelas dada a gravidade e o melindre da situação. Queremos honestamente esclarecer a identidade do preso e apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes interrogatórios... E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?

Visivelmente embaraçado, Marco Quirini respondeu: Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo de oito dias, sair dos territórios da República. Não obedeceu. E que crime cometeu ele para ser expulso da República?... Não respondeis. Respondo eu: o crime de afrontar a Espanha. Examinamos o caso com isenção... Sob a pressão do embaixador castelhano. Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. Se chegardes à conclusão de que ele é um embusteiro..., será condenado. Se finalmente acreditardes que ele é o rei de Portugal... Teremos de enfrentar a inimizade da Espanha. Da Espanha?, exclamou frei Estêvão levantando-se. E a França? E a Flandres? E a Inglaterra?... Marco Quirini acompanhou-o à porta: Poderei dar-vos um conselho? Agradeço-vo-lo. Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais, indícios, traços concretos da identidade de el-rei Sebastião... Estai certo de que assim farei. Não desistirei enquanto não libertardes o meu rei.

A Ponte dos Suspiros

Gaivotas e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou outro pardal pousa a medo no beiral do meu janelo de grades. Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao ritual e acabam por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A única vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos do palácio, mas alcandorar-se cá em cima no balouçar dos nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros. Sinto a maresia subir até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta experiência me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a prepotência de interrogatórios, a iminência de torturas e talvez até de morte ignominiosa. Que fazer? Luto por que tempo e lugar se não alonguem de mim e me não deixem abandonado à impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a queda no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí pousou e se está meneando em vénias e arrulhos. Parece saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de migalhas, como costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os pombos a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas mãos» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, História, Literatura, 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O Cavaleiro de Olivença João Paulo Costa. «…  os domínios da coroa portuguesa há duzentos anos, no tempo d’el-rei Dinis I. pelo tratado de Alcanizes, a fronteira fora definida para sempre e Olivença….»

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O pedido da Rainha

«O grupo português trotava calmamente. O Relâmpago estava esgotado e uma montada levava dois cavaleiros. Quando contornaram nova curva, ao fundo surgiu a vila. Olivença, guarda avançada de Portugal além-Guadiana, ostentava poder e riqueza. A vila integrara definitivamente os domínios da coroa portuguesa há duzentos anos, no tempo d’el-rei Dinis I. pelo tratado de Alcanizes, a fronteira fora definida para sempre e Olivença ficara do lado certo. O rei lavrador povoara-a e defendera-a, mas a cerca velha cedo se mostrou insuficiente para proteger todos os oliventinos, pois a vila cresceu depressa, até que el-rei Fernando I ordenara a construção de novas muralhas.

Os cavaleiros aproximavam-se, e aos seus olhos destacava-se a torre de menagem altaneira, reconstruída no tempo de João II. No alto, flutuava a bandeira branca com a esfera armilar e uma outra com o escudo de Portugal. Já havia novos bairros desprotegidos, pelo que a cerca fernandina carecia de acrescentamento. Quando se acercaram, já distinguiam o fosso que contornava a muralha e ouviram o relógio dando as horas. Fora colocado numa esquina da cerca velha, em torre reforçada para o efeito. Ao longe, nas colinas sobranceiras à vila, erguiam-se duas atalaias que vigiavam Castela; uma espreitava para as bandas de Alconchel e a outra na direcção de Badajoz e de Jerez de los Caballeros.

Agora sinto-me mesmo de volta a Portugal, suspirou Francisco. Ainda bem que Vossa Senhoria andava por perto. Estava preocupado com o teu atraso e nossas atalaias avisaram que tinham avistado um cavaleiro a ser perseguido, vindo nesta direcção, e saí logo com estes homens. Estava certo que irias entrar por aquele vau, e ao deixar os castelhanos entrar em nosso reino, ficámos em vantagem. Além disso, eles estavam pior armados do que nós.

O grupo entrou pela Porta de São Sebastião, junto à torre de menagem, e foi saudado pela soldadesca que aguardava notícias. Francisco, vem comigo, ordenou Vasco. Pouco depois estavam na casa do Melo, que se situava na parte velha da vila, próxima da Porta de Alconchel. O que tens para mim? O correio pousou o bornal, despiu as calças e tirou um envelope que estava num bolso por dentro da perna; com uma faca descoseu sua capa e tirou um macinho com vários papéis em letra miudinha; finalmente, acionou o mecanismo que abria a sola se sua bota e retirou saí uma nova missiva. Parece que foste reconhecido, Francisco.

O meu contacto em Mérida estava nervoso. Fostes a Mérida? Não vieste directo de Cáceres? Não, senhor. O nosso amigo de Cáceres disse-me que havia novidades para mim em Mérida. Então o nosso agente de Cáceres bandeou-se e tu estás mesmo identificado. Qual é a carta que te deram em Mérida? É essa com o brasão. Vasco deu um estalo com a língua, ao ver o símbolo dos Pachecos, e sua perna direita escoiceou. Foi uma armadilha para se certificarem que eras um dos nossos correios.

O que diz a carta? Não te interessa, tolo. Temos que te mudar. Dentro de duas semanas partes comigo para a Flandres. Lá faz frio. E aqui cortam-te o pescoço num instante. E Vossa Senhoria não poderia aceitar que eu deixasse este serviço? Se assim o queres, serei eu próprio a cortar-te o pescoço, rosnou Vasco Melo, com o nariz mexendo-se desenfreadamente». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

 Cortesia de CL/TDebates/JDACT

 JDACT, Olivença, Conhecimento, Literatura,

domingo, 13 de abril de 2025

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «… às vezes dá a outra metade, prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam…»

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Mary

«(…) Vindo de Madrid, nos próximos dias chegaria a Lisboa um homem, de seu nome Nubar Gulbenkian, filho de um milionário arménio. Ficaria instalado no Aviz, o melhor hotel da cidade. O homem traria informações sobre dois pilotos ingleses da RAF, que estavam a atravessar clandestinamente a Espanha. Mary teria de os fazer entrar em Portugal, sem a PVDE notar, e de os fazer seguir para Londres. Não posso ser eu a falar com o Nubar, explicou Mary. Isso seria desmascará-lo. É um importante apoio nosso, mas tem de permanecer secreto. Se os nazis o descobrem é um desastre. Porquê? Mary olhou para mim, como se a calcular o quanto podia contar. O Nubar é um excêntrico. Passeia-se em Lisboa a pé, com uma bengala, seguido uns metros atrás pelo seu Rolls Royce, que guarda na garagem do Aviz. A sua excentricidade é um bom disfarce. Deu uma curta gargalhada, e acendeu outro cigarro: sabes o que contam dele? Sempre que se senta à mesa dos restaurantes dos hotéis, em Lisboa ou no Estoril, rasga uma nota ao meio e dá metade ao criado que o está a servir, prometendo-lhe a outra metade para o final da refeição, se considerar que foi bem servido.

Como é imprevisível, às vezes dá a outra metade, outras esquece-se, ou não dá a metade prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam uns para os outros, à procura da metade da nota que lhes falta, a ver se algum dos outros a tem! Rimo-nos. Naquela época, Lisboa era também um porto de abrigo de muitos milionários europeus, fugidos à guerra, e a cidade fascinava-se com as características de tão ilustres visitantes. Como é que ele sabe que pode confiar em mim?, perguntei. Mary enviaria a Nubar uma mensagem através de um criado do Hotel Aviz. Era outra característica de Lisboa: os criados dos hotéis eram verdadeiros pombos-correios, além de fontes preciosas de informação. O problema era que alguns também trabalhavam para os nazis.

É um dos nossos, murmurou. Uma certa excitação invadira-me. Sentia-me a ser posto à prova. Mary, contudo, tomou a emoção por receio. Não há perigo nenhum, Jack Gil. É só entrares no hotel, pedires para falar com o homem, e depois transmitires-me o que ele te disser. Não há pistolas fumegantes, nem nazis a espreitar nos corredores. Foi a minha vez de dar uma gargalhada: és muito persuasiva! Mirou-me através do seu copo de brandy, e a sua cara surgiu-me deformada pelo vidro e pelas pedras de gelo: confio em ti, Jack Gil. Não sei bem porquê. Ou talvez saiba... Talvez saibas? Desviou o copo, fazendo contacto visual comigo: sabes segurar muito bem nas saias de uma mulher. E isso é razão para confiares num homem? Mary levantou-se e caminhou pela sala na direcção da janela. Lá fora, o ciclone aumentara de intensidade. As portadas exteriores das janelas batiam com força contra a parede, produzindo um ruído desagradável.

Está feio, comentou Mary, observando a rua, e repetiu o que dissera horas antes no carro. Deve ser por isso que hoje não há ninguém a ver ninguém. Era como se o facto de não existir ninguém a observá-la a libertasse da opressão. Foi talvez nesse momento que percebi que era muito infeliz em Lisboa. A sua solidão comoveu-me. Com o passar dos meses viria a confirmar que, sem filhos e com um casamento moribundo, Mary estava à beira de um colapso. Achas que Salazar está a dormir?, perguntou ela, mudando de novo o rumo da conversa. Passava da meia-noite. Dizia-se que Salazar dormia pouco, mas era provável que àquela hora estivesse deitado. Acho que sim. Mary sorriu: um ditador nunca dorme. Pode ser neutral, mas não dorme»» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Espionagem,