Fernando Campos. A Casa do Pó. «… a frei Bonifácio, a quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada têm a ver com o Senhor Jesus Cristo?»
Veneza...
«Todos os anos os incorpora na triunfal e
soleníssima procissão de Corpus Christi. Este ano de sessenta e dois, depois de
escolhida a família franciscana, dirigimo-nos a Veneza a fim de
providenciar-lhe a partida. Assistimos então àquela opulentíssima cerimónia,
que caiu a quatro de Maio. Tantas e tão momentosas eram as solicitações que me
faziam aos sentidos as imagens da cidade em festa que se me torna difícil
captar todas as minúcias. Pareciam ganhar vida e ao mesmo tempo insistir
comigo, chamar-me, puxar-me pela dobra da manga, ínsinuar-se-me nos ouvidos, no
olfato e gritar-me: olha-me! Escuta-me! Aprecia a minha forma, a minha cor, o meu
gosto, o meu brilho, o meu som, o meu aroma!...
Linda é Veneza, a dos palácios de fachadas
rendilhadas e varandins de nobres e formosas damas, a espelhar-se ondulante nas
águas verde-negras de canais por onde vogam gôndolas esbeltas; das finas pontes
solícitas, em que suspiram amantes enlaçados; das arcadas debruando praças; das
torres altaneiras que espreitam o Adriático e as ilhas dispersas da laguna; das
líquidas ruas angustiadas entre paredes lavradas; dos sinos que ressoam e
tangem pratas na atmosfera húmida; do suave marulhar das águas nas noites
calmas de luar! Mas em festa atavia-se até ao pormenor requintado, até à
orquestração delirante das formas. Paganiza-se, paganiza a festa litúrgica que,
por excelência, não deverá de ser paganizável. Ao meu espírito de franciscano é
uma demonstração de fausto e de riqueza que ofende a humildade e a pobreza
cristã, não obstante a argumentação de frei Bonifácio procurando convencer-me
do contrário e até da necessidade da pompa para dignificar a Igreja e os seus ministros.
Meu padre, dizia eu a frei Bonifácio, a
quem muito reverenciava, não achais que toda esta pompa e sumptuosidade nada
têm a ver com o Senhor Jesus Cristo? O meu pensamento está-me dizendo que toda
esta luxúria, este fausto, esta opulência e ostentação exterior de riqueza
desviam as almas do verdadeiro espírito de cerimónia tão santa. A Igreja, visse
o seu bom Pantaleão, tinha necessidade de dar de si uma alta imagem, à altura
se possível, e oxalá pudesse!, da majestade divina.
Cristo era pobre ..., e era Deus... O anel
que o imperador, o rei, o príncipe, oferecia à desposada não era, não podia
ser, de modo algum, igual àquele outro, de ouropel ou latão, que o mesteiral, o
camponês, entregava à namorada. Cristo era o esposo dos esposos. Que espanto que
a Igreja, sua desposada, fosse procurar aos mais remotos confins do mundo a
jóia mais rara, o marfim mais branco, o mármore mais puro? Nenhum ouro, nenhuma
prata podiam ser bastantes a celebrar a majestade das majestades.
Nosso padre São Francisco não pensava
assim... Nosso padre São Francisco comporia um hino em que cantariam os
louvores do Criador a safira de azul mais imaculado, o rubi de vermelho mais
sanguíneo, grande e invulgar, o topázio cor de laranja, a verde esmeralda, o
peridoto, o diamante, a opala, o ónix, a ágata, a cornalina, restituindo,
devolvendo assim a Deus estas maravilhosas obras de Deus. A argumentação de
frei Bonifácio apanhava-me como em ratoeira construída por mim próprio». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Veneza, Literatura,