tag:blogger.com,1999:blog-5890553250211888102024-03-19T08:48:11.809+00:00MONTALVO E AS CIÊNCIAS DO NOSSO TEMPOJDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comBlogger14302125tag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-48486666101183621692024-03-15T11:33:00.003+00:002024-03-15T11:34:29.334+00:00A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros de azul e roxos esmaecidos»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4s1kjQ7F0eJygLOuH2b5fPUaQa-xQg-CS4Cpc6PEgH5A22unrLF765D50lpZHPlm2Jd_feyEOHFTySfwPWPODpGi5Vg0pg-hcKyoCk_asVo2SkiNo8iYkEYUu04i_4weWounPN0FlCAbJEMcV7Y3urQG2SUMJE94H9WwSEWrOXHY8kDlXYU2ENXSR9Dnq/s211/!%20aconspira%C3%A7aodo%20reijames_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="211" data-original-width="160" height="211" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4s1kjQ7F0eJygLOuH2b5fPUaQa-xQg-CS4Cpc6PEgH5A22unrLF765D50lpZHPlm2Jd_feyEOHFTySfwPWPODpGi5Vg0pg-hcKyoCk_asVo2SkiNo8iYkEYUu04i_4weWounPN0FlCAbJEMcV7Y3urQG2SUMJE94H9WwSEWrOXHY8kDlXYU2ENXSR9Dnq/s1600/!%20aconspira%C3%A7aodo%20reijames_.jpg" width="160" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact
e wikipedia</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Cambridge,
Inglaterra</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Coitado do velho Jacob. Vilão!
Eu vi o que o senhor fez. Eu sei, respondeu o outro, racionalmente. Por isso
vou ter de matá-lo também. Sem mais uma palavra, pegou o maior cutelo do
acossado, que se sentiu congelar. Ergueu a arma bem no alto. O açougueiro
emitiu um grito tão agudo que foi quase inaudível. Timon virou o cutelo, baixou
brutalmente a parte chata na cabeça do homem e apenas o derrubou inconsciente. Com
todo o cuidado, enfiou a arma na mão direita da vítima. Depois ergueu o cachorro,
abriu-lhe a garganta e despejou um pouco de sangue no dono e na lâmina.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Lançou o olhar à rua escura por
um instante. Aguçou os ouvidos em busca da mínima sugestão de outras
testemunhas. Convencido de estar sozinho na missão, escancarou a boca do cão,
empurrou-a no amplo pescoço do açougueiro e fechou-a com força até os dentes
sem vida extraírem sangue. Examinou as outras facas na loja até encontrar uma
lâmina de fino gume. Usou-a para retalhar vários buracos profundos no pescoço
do açougueiro, buracos que pareciam marcas dos dentes de um cachorro. Dois
perfuraram a jugular, e logo jorrou sangue, espalhando uma rubra decoração pelo
piso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">No dia seguinte, as pessoas
diriam que coisa terrível!, pensou Timon consigo mesmo, recuando para admirar o
quadro vivo. O cão do açougueiro atacara-o e ele se vira obrigado a retalhar a
garganta do animal. Então, o coitado do homem sangrara até à morte antes que
alguém pudesse socorrê-lo. Que ironia, num açougue, não era?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Timon vigiou durante cinco
minutos para ter certeza de que o homem morrera. Só então examinou o próprio
manto à procura de manchas, mas a vantagem de usar preto era que o sangue raras
vezes deixava algum traço visível. Sem mais pensar nos mortos, o monge virou-se
para a rua e pôs-se a recitar, de memória, toda a <u>Poética</u><i> </i>de Aristóteles.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Na tarde seguinte, o tempo esquentou
mais. Cambridge beirava a Primavera, pelo menos no lado de fora. O ar no
interior das paredes do Grande Salão continuava de rigoroso Inverno. Até as
chamas das velas tremiam, tiritando. O lugar era uma caverna. Janelas altas,
embaçadas por décadas de poeira, pareciam planeadas para impedir a entrada da
luz. As paredes exibiam nas sombras indícios de musgo, cujo cheiro pairava no
ar. Os pisos, cinzentos como nuvens de chuva, apenas vedavam o frio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Vigas de madeira cor de bico de
corvo sustentavam o tecto de pé-direito alto, de cinquenta pés ou mais,
incitando-o rumo ao céu. A gravidade, que pena, fazia o trabalho do diabo,
afundando as vigas e ameaçando derrubar o tecto. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O irmão Timon, sem dúvida com
mais de seis pés de altura no áspero manto de monge asceta, absorvia, e
memorizava, tudo. A posição de cada homem, de cada mesa, a disposição das
velas, a pequena caixa perto da porta, o aroma de conhaque: ele catalogava
todas essas coisas na mente. Mas o que achou mais fascinante foi o ruído da
imensa sala: um constante e baixo zumbido, resultado de vozes sussurradas com a
arranhadura de penas em papel. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O diácono Marbury conduziu Timon
de uma escrivaninha a outra. Muitas, vazias; algumas, ocupadas por estudiosos
absortos, sete, ao todo. Os homens espalhavam-se aqui e ali e entre as cinquenta
mesas de trabalho no salão. Os enormes cubículos de estudo distribuíam-se em
fileiras de cinco, e nenhum deles se sentava em seguida nem defronte a nenhum
outro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Timon seguiu em silêncio atrás do
diácono Marbury até ao lugar indicado, contando os passos e sentindo os
contornos do piso ao andar. Aqui estamos, disse o anfitrião, afinal. Apresento-lhe
minha filha, Anne. Srta. Anne, este é o seu novo tutor, irmão Timon.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O
monge ergueu os olhos para encontrar os de Anne. Primeiramente, notou que a
moça tinha uma postura perfeita. A estrutura dos ossos era um estudo de ângulos
rectos e permitia uma graça ou fácil bem-estar que relaxavam os músculos. Ela
sentara-se a uma pequena mesa retangular, não escrivaninha. Orelhas pequenas
demais, olhos grandes demais, lábios cheios demais e faces mais avermelhadas,
que ditava a moda. Tomadas em conjunto, essas partes compunham um todo de
estranho encanto. Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível
gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros
de azul e roxos esmaecidos. Sem perceber, o recém-chegado escovou com a mão os
cabelos para trás, examinando cada feição da jovem como se lesse um difícil
trecho de grego. Batia repetidas vezes e ritmadamente no polegar com os dedos
da mão direita, enquanto a encarava». <b><i>In Phillip Depoy, A Conspiração do rei
James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de Prumo/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Phillip Depoy, Literatura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-25387525588484942402024-03-15T10:39:00.002+00:002024-03-15T10:40:01.127+00:00A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «O velho revirou os olhos. Ah. Timon retirou o punhal. A vítima cambaleou em direcção às pedras do beco no momento em que o assassino imaginou ver uma erupção de vapor branco…»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIjoMlcBUO05PSKTx1Gltu4yKD7sVaYdbErtvWRwGfCOadTPNpqATDxuJ-JJh3YPnWiFj0KBUNtenijX7351eFDww42hHlWXOfIfJKxK-Mxk0JWniXOWXUQ2-VNUkppYDwjaJi6p6kuC53b7wPi7FugZL1UIEpGIfbL8KQLHPTIlTnsLI5ENexS2RV0cxb/s211/!%20aconspira%C3%A7aodo%20reijames_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="211" data-original-width="160" height="211" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIjoMlcBUO05PSKTx1Gltu4yKD7sVaYdbErtvWRwGfCOadTPNpqATDxuJ-JJh3YPnWiFj0KBUNtenijX7351eFDww42hHlWXOfIfJKxK-Mxk0JWniXOWXUQ2-VNUkppYDwjaJi6p6kuC53b7wPi7FugZL1UIEpGIfbL8KQLHPTIlTnsLI5ENexS2RV0cxb/s1600/!%20aconspira%C3%A7aodo%20reijames_.jpg" width="160" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact
e wikipedia</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Cambridge,
Inglaterra</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Deixe-me explicar o que acontece,
sussurrou o agressor, calmamente. Deslizei a faca por essa finíssima pele até ao
coração que batia. Agora o senhor já não sente a lâmina mover-se, mas dividi o
coração quase na metade exacta. O ferimento no peito é tão perfeito que pouco
sangue se espalhará, mas o coração continuará a bombear por um instante,
enchendo a cavidade peitoral com suficiente sangue, pelo menos em teoria, para
fazer o torso, na verdade, explodir. Não tenha medo. Estará morto quando isso
acontecer. Mas tornará muito difícil a identificação do sangue. O capuz do
monge escorregou para trás e revelou um rosto de frio brilho. Tinha os olhos
cor de folhas verdes novas, cabelos grisalhos encaracolados, desgrenhados e tempestuosos
ao redor da cabeça. As feições pareciam mais esculpidas que fixas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Eu o conheci... anos atrás...
Giordano!, conseguiu dizer Jacob. Sim, respondeu Giordano, tranquilizando-o. Por
isso o matei: não devo mais <i>ser </i>Giordano. Preciso desaparecer de todos
os registos, e o senhor é um registo vivo de minha existência. De agora em
diante, serei chamado de Timon, entenda. Jacob lutou para falar mais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não tema, interrompeu-o o
assassino. O senhor dedicou a Deus e a seus amos na família Sidney uma boa vida
de serviço. Tem a alma prostrada agora... Eu a sinto... A espera do salto para
o céu. Lá encontrará bem-aventurança. Foi um homem bom.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O beco era curto, o espaço de
três cavalos, pedras sob os pés, gelo entre duas lojas ruidosas naquela parte
mais pobre de Cambridge. A primeira, de um açougueiro, emprestava o ar de
fétida putrefacção. A outra, o casebre de um funileiro. De toda a parte,
pendiam panelas baratas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Jacob se esquecera de onde se
encontrava. Não conseguia sentir nada. Apenas o opressivo aroma de noz-moscada
que se desprendia do agressor. Talvez se pergunte por que escolhi este método
de execução, continuou Giordano, a lâmina ainda no peito do velho. Eu tinha
ternura pelo senhor, e meus estudos indicaram que não se sente nada com esse
ferimento. Os antigos médicos gregos nos dizem que, quando um homem sofre um
repentino choque dessa magnitude, o corpo recusa-se a acreditar, e todos os
sentidos se fecham por um breve tempo. O senhor logo dormirá, sem sentir mais
que a primeira afronta do punhal. Ofereci-lhe, Jacob, a única bondade que tenho
a dar numa circunstância como esta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O velho revirou os olhos. Ah. Timon
retirou o punhal. A vítima cambaleou em direcção às pedras do beco no momento
em que o assassino imaginou ver uma erupção de vapor branco projectar-se para
cima. Adeus, Jacob, disse o assassino ao vapor. Eu, ai de mim, não tornarei a
vê-lo. Passaremos à eternidade em diferentes acomodações. Nesse momento, um
cachorro saltou das sombras, liberado por uma porta lateral do açougue.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Pegue-o, garoto!, grunhiu uma
voz. Ele matou Jacob. O animal saltou sobre a garganta de Timon. Sem reflectir,
ele girou o punhal para a frente, enterrou-o fundo e cortou a garganta do
animal, quase degolando-o. A carcaça agonizante continuou a voar até cair no chão
ao lado da vítima. O assassino avançou três longos passos com toda a calma e
encontrou o açougueiro agachado nas sombras, com os olhos saltando das órbitas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Sem
uma palavra, agarrou-o pelo avental e atirou-o para trás pela porta lateral,
loja adentro. O homem bateu numa mesa de madeira e caiu encolhido no piso. Como
uma sombra fugaz, Timon voltou ao beco para agarrar pelo rabo do cachorro morto
e arrastá-lo até ao açougue. Vai ser um pouco desconfortável, avisou, muito
tranquilo, e jogou mais uma vez o capuz para trás. Logo o açougueiro começou a
rastejar de costas». <b><i>In Phillip Depoy, A Conspiração do rei
James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de Prumo/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Phillip Depoy,
Literatura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-107910945298441202024-03-13T11:14:00.003+00:002024-03-13T11:21:25.242+00:00O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfTlVaizArD7WbpxfQAv8zkhM8M-mTfV_P9tX3vFoiD2hB46o0KAIogPp15QjSXLa3SVGl_44a7rMXks5MSMiZlVpZWChRy4Mm29-9tLz5HVxzRWl0qIiaA45G6KQTfXUfO_KE-nBV-EODuiR7Czxjgl9sLryry4flX5hn3NydD3PTorl9k745ztfMaW13/s200/!%20joaninha_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="148" data-original-width="200" height="148" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfTlVaizArD7WbpxfQAv8zkhM8M-mTfV_P9tX3vFoiD2hB46o0KAIogPp15QjSXLa3SVGl_44a7rMXks5MSMiZlVpZWChRy4Mm29-9tLz5HVxzRWl0qIiaA45G6KQTfXUfO_KE-nBV-EODuiR7Czxjgl9sLryry4flX5hn3NydD3PTorl9k745ztfMaW13/s1600/!%20joaninha_.jpg" width="200" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Salamanca</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Batem com força à porta de entrada,
acordando Ari das suas divagações. Ouve vozes no átrio, pousa a pena e levanta-se,
para dar com o Pai a tentar apoiar um homem velho e pequeno, que se arrasta a custo
no outro lado do átrio. Assim que Ari vê os seus rostos cor de cinza, sabe que aconteceu
mesmo qualquer coisa especial, e que hoje não será um dia igual aos outros.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Pai! Rabi Isaac!, grita, correndo
em seu auxílio. O que se passa? O idoso rabi faz uma careta de dor quando o sentam
com cuidado numa cadeira da cozinha. Tem a respiração ofegante e o rosto,
coberto por tufos de barba branca, reluz brandamente sob uma fina camada de suor.
Ari vai buscar água e leva o copo aos lábios do rabi. Ele bebe devagar, parando
entre goles para balbuciar em voz baixa. Engasga-se e gagueja como se ainda tivesse
qualquer coisa do pequeno-almoço presa na garganta. Finalmente, numa voz rouca
do esforço, sai-lhe uma palavra de um jacto. Exílio!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">As quatro sílabas ficam suspensas
no ar. Atónito, Ari agarra no braço do Pai e sonda-lhe o rosto. Ele sabe pela
Torá que o exílio é o caminho para a redenção. Então, porque se mostra o rabi
tão receoso?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não faz sentido! De certeza que o
Pai, com todo o seu saber, vai conseguir explicar! Mas os olhos do Pai, normalmente
calmos, estão agora vítreos. Tem as feições de pedra e o sangue fugiu-lhe da face,
como se tivesse uma dor de dentes. Também está a ter dificuldade em mover o queixo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Saiu um édito, balbucia, com a voz
pesada de desespero. Temos três meses para ir embora. O choque invade Ari de repente.
O mesmo choque que sentiu quando era criança, quando caiu da ponte para o rio.
A torrente engole-o, tirando-lhe o ar dos pulmões. Não consegue respirar. Sente
o sangue a latejar-lhe nos ouvidos. Está a afogar-se, vira-se para o Pai, à procura
de ajuda, mas ele já se deixou cair como uma trouxa mal feita na cadeira ao lado
do rabi.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Samuel deve ter ouvido toda aquela
agitação, porque está encostado à porta, a fungar e a assoar-se com um lenço húmido.
Apoiando-se na mesa de madeira acabada de esfregar, Ari olha de novo para o
Pai, à espera de uma orientação. Mas o Pai tem os olhos fechados e uma expressão
de descrença no rosto, como se tivesse acabado de descobrir que uma das leis universais
que tanto ama tivesse sido violada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Uma onda de vergonha apodera-se de
Ari. E se os céus o ouviram? E se tudo aquilo for culpa dele? Desejara que
acontecesse qualquer coisa de empolgante. Esperara que houvesse uma mudança. Não
vale a pena tentar negá-lo. A culpa é mesmo dele. Devia ter estado a trabalhar nos
seus cálculos. Em vez disso, rezara para
que acontecesse qualquer coisa de extraordinário. E agora tinha acontecido. Mas
era uma coisa tão terrível que ninguém no seu perfeito juízo o teria desejado alguma
vez!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Inclina-se para a frente e sussurra
ansiosamente ao ouvido do pai: Pai, a culpa e minha! Sou eu o culpado. Desejei
que acontecesse qualquer coisa especial que mudasse tudo! O Pai ergue os olhos
para ele, espantado. Depois o rosto dele suaviza-se, e os seus olhos cinzentos
enchem-se de lágrimas. Não! A culpa não é tua, Art, diz ele, estendendo a mão e
pegando-lhe no braço. Estavas só a sonhar outra vez. Ainda nem sequer és um homem.
Como poderia a culpa ser tua?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O ar volta a entrar nos pulmões de
Ari. O Pai tem razão. Como poderia ser culpa dele? Um rapaz de 14 anos? Quase 15!
As suas ideias arrebatadas? Era impossível, mas então de quem era a culpa? Quem
faria uma coisa destas? Deve haver um engano qualquer. As lágrimas descem pelo rosto
do Pai sem que ele se aperceba. Tem uma expressão perplexa. No silêncio da
cozinha, o rabi é o primeiro a falar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não há engano nenhum, diz, com a voz
estrangulada. O inquisidor da rainha proclamou o édito na praça ainda esta manhã.
Está uma cópia afixada na porta da catedral. Mas porquê?, pergunta Ari. É o castigo
de Deus. Mas que mal é que nós fizemos? Com os olhos vermelhos, Samuel aperta o
lenço na mão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Foram o rei e a rainha que assim planearam,
diz o rabi, passando uma mão cansada pela face. Ari vê uma luz de esperança
acender-se no rosto do Pai. A rainha, diz ele, com os lábios a tremer. Talvez eu
consiga uma audiência na Corte. Pedir que atenda ao nosso caso. Por causa do meu
trabalho...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não se trata só do rei e da rainha,
diz o rabi Isaac. Trata-se do inquisidor-mor e da Santa Irmandade, com todo o poder
da Igreja Católica a apoiá-los.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O Pai passa os dedos trémulos pela
barba. Tosse e tenta de novo. Talvez a rainha abra uma excepção para nós... Não,
Abraão, não haverá excepções. Tem razâo. O Pai torce as mãos; desapareceu-lhe a
luz da face. Tenho andado a estudar as constelações e vi os sinais que vêm dos
céus.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Coragem, diz o rabi Isaac, reunindo
as suas forças. Pense em das as tempestades celestiais que já nos caíram sobre a
cabeça. Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido
para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe. Há
indícios de grandes mudanças, conjunções dos Planetas que significam destruição
e revolta. Nunca acreditei nisso até agora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Lembra-te,
Abraão, diz o rabi. Não há nenhum Planeta que tenha poderes para nos governar. Não.
A voz do Pai adquire uma ênfase súbita. Vem aí o fim do mundo. Isto é o Apocalipse».
<b><i>In
Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de PortoE/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Brigid Hampton, História,
Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,</span><span style="font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-52306236205498716662024-03-12T11:59:00.003+00:002024-03-12T12:00:54.689+00:00O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Os teus cálculos estão péssimos. Devias estar a estudar. Ari baixa os olhos para o exercício, molha a pena no tinteiro e segura-a, suspensa, sobre o papel»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_G9s4XSaV5-NXp2YcQaGAiuL2iRx6U9JQbLetvceO5NpdKcHoKNCkmtgmkgCuHBV55qIHud0Uxss7fDdkwOZK8ZcmerzixVRMJT2wfrQN5KS_N1ES2PaSGGCpkRt0KQei1FQ4YSAILT2QenNNfoZ1i3OZjpG4ei9uJZUwJrGsQEcyXUsq8nUeDm9j1TNW/s180/!%20o%20a%20e%20o%20rei_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="110" data-original-width="180" height="110" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_G9s4XSaV5-NXp2YcQaGAiuL2iRx6U9JQbLetvceO5NpdKcHoKNCkmtgmkgCuHBV55qIHud0Uxss7fDdkwOZK8ZcmerzixVRMJT2wfrQN5KS_N1ES2PaSGGCpkRt0KQei1FQ4YSAILT2QenNNfoZ1i3OZjpG4ei9uJZUwJrGsQEcyXUsq8nUeDm9j1TNW/s1600/!%20o%20a%20e%20o%20rei_jdact.jpg" width="180" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Sevilha, 1492</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«(Ismael desviou ou olhos. Não
disse o que Paloma já tinha adivinhado. Os documentos que planeara esconder
continham cópias de um mapa . que ele e o Papá tinham roubado da Corte. Se
fossem apanhados, seriam todos julgados como traidores e queimados nas piras da
Inquisição (maldita).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Ao longe, ouve-se ladrar um cão
solitário. A alça do saco de Paloma enterra-se-lhe dolorosamente no ombro, e
sente um bater desordenado no peito, no sítio onde o Papá diz que fica o
coração. Tropeça e pega na mão de David, rezando para conseguirem passar em
segurança. Isto é só o princípio do fim. Não é o fim. O que lhes trará a manhã?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Esforça-se por pensar na rota que
Ismael planeia seguir, atravessando o rio Guadalquivir, passando pelas ruínas
de Itálica através dos velhos campos de trigo de Roma, e depois subindo as
colinas. Avançam-apressadamente e em silêncio. O vapor da sua respiração
ofegante flutua acima deles, dissolvendo-se na noite.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Salamanca<o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O fumo é sempre a primeira coisa
que Ari procura quando abre a janela. Nos dias em que queimam conversos na
praça, consegue ouvir os gritos e os uivos da multidão. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Sente o estômago às voltas só de
pensar nisso. Nesses dias, é-lhe impossível concentrar-se. Tem de trancar as janelas
para evitar o fedor enjoativo que o vento traz da pira, e ao cair da tarde há uma
camada de cinzas gordurentas que se lhe cola aos dedos se não limpar primeiro o
beiral da janela.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Debruça-se sobre o parapeito para
afastar as portadas. Hoje a viela está silenciosa. O céu é de um azul
transparente. Ao longe, consegue ver os contornos do pináculo da catedral.
Abaixo, nas margens do rio, há mulheres a lavar roupa e a pendurá-la nas cordas
que se estendem entre as árvores, com as suas vozes cantadas a erguer-se por
cima do rio'<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Nem um sopro de vento. Nem o mais
pequeno cheiro a fumo. Graças sejam dadas a Deus! Hoje não há autos de fé na praça.
Com um suspiro de alívio, volta para o escritório. Há uma tira de luz que se projecta
à sua frente, lançando uma luz dourada sobre a página em branco do seu livro, numa
dança brincalhona. O irmão mais velho, Samuel, já está sentado à secretária. Com
a pena na mão, tem o olhar fixo nos cálculos que o Pai lhes deixou para completar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Fecha a janela, diz Samuel, sem erguer
os olhos. Espirra e limpa com um lenço o nariz a pingar. O Pai quer que
acabemos estes hoje. Ari fecha a janela e senta-se ao lado do irmão. Distraído,
agita-se no lugar, brinca com a pena de junco, fazendo agitar à volta do dedo. O
dia estende-se à sua frente numa monotonia sufocante e interminável.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Se ao menos acontecesse qualquer coisa.
Uma coisa diferente. Uma coisa fora do comum. Nada que se pareça com mais autos
de fé na praça. Deus nos livre! Mas uma coisa especial. Uma mudança qualquer que
lhe desse uma desculpa para sair da secretária, da interminável rotina de tabelas
e ângulos e cálculos feitos sob o olhar cinzento e incansável do Pai.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">E vê lá se estás quieto. Samuel
afasta dos olhos uma mecha de cabelo. Estás a sonhar outra vez. Os teus cálculos
estão péssimos. Devias estar a estudar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Ari baixa os olhos para o exercício,
molha a pena no tinteiro e segura-a, suspensa, sobre o papel. O Pai vai regressar
em breve para verificar o trabalho deles. Diz que só através do estudo se ganha
mérito. Os números são tudo o que conta, segundo o Pai. São o padrão e a razão
do mundo, explicam as leis do universo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Se
o mérito se ganha através dos números, então ele, Ari, nunca terá nenhum. Samuel
é bom a fazer cálculos. Tem carradas de mérito. Com um mérito daqueles, seria de
esperar que ele se entendesse com o mundo. Ou, pelo menos, que aprendesse a amar
melhor o próprio irmão!» <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei,
Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de PortoE/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Brigid Hampton, História,
Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-44316947453650654922024-03-05T18:11:00.006+00:002024-03-12T12:01:40.940+00:00Coração Tão Branco. Javier Marías. «Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia…»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7TzXIiE1iYyujjNatWVlBiu-ZG2MO8Z0Pp1vlBTM8o-KdqWzIxOAIIKvkZp56QS6P8i2HJWjSZg3OLF_NOP4CLw3-yUv5N9VcouDvzbWdCLbzAVLkU6ARvMzfTanBx-qSohHE-TKvnSYBW4s0rOmlwAqkLyHovfZ-7oYjbQ8Sm66VZVchrauVJFFcEcsX/s260/3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="159" data-original-width="260" height="159" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7TzXIiE1iYyujjNatWVlBiu-ZG2MO8Z0Pp1vlBTM8o-KdqWzIxOAIIKvkZp56QS6P8i2HJWjSZg3OLF_NOP4CLw3-yUv5N9VcouDvzbWdCLbzAVLkU6ARvMzfTanBx-qSohHE-TKvnSYBW4s0rOmlwAqkLyHovfZ-7oYjbQ8Sm66VZVchrauVJFFcEcsX/s1600/3.jpg" width="260" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 14pt;">«Mas
eu não conhecia ninguém em Havana, mais ainda, era a primeira vez que estava em
Havana, em minha viagem de lua-de-mel com minha mulher tão recente. Virei-me
por fim e vi Luísa erguida na cama, com os olhos fixos em mim mas sem ainda me
conhecer nem reconhecer onde estava, aqueles olhos febris do doente que acorda
assustado e sem ter recebido aviso prévio de seu despertar no sono. Estava
levantada, e o sutiã saíra do lugar enquanto dormia, ou então no movimento
brusco que acabava de fazer ao erguer-se: estava torcido, tinha descoberto um
ombro e quase um seio, com certeza a estava incomodando, devia tê-lo prendido
com seu próprio corpo esquecido no mal-estar e no adormecimento. Que está
acontecendo?, perguntou apreensiva. Nada, respondi. Volte a dormir.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Mas
não me atrevi a achegar-me e acariciar seus cabelos para tranquilizá-la de
verdade e para que voltasse ao torpor, como teria feito em qualquer outra
circunstância, porque naquele instante eu não me atrevia a abandonar meu lugar
na sacada, nem a desviar os olhos por pouco que fosse daquela mulher que estava
convencida de ter estado comigo, nem a evitar por mais tempo o diálogo abrupto
que da rua se impunha a mim. Era uma pena que falássemos a mesma língua e eu a
compreendesse, porque o que ainda não era diálogo já se tornava violento,
talvez porque não o fosse, não fosse diálogo. Eu te mato, filho-da-pu…! Juro
que eu te mato aqui mesmo!, gritava a mulher da rua. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Gritava
aquilo do chão e sem poder me encarar, porque, justo no momento em que eu me
virara para dizer a Luísa quatro palavras, um sapato tinha saído do pé da
mulata e ela caíra, sem se machucar mas sujando na hora a saia branca. Gritava
isto, Eu te mato, e ia se levantando, um tombo, a bolsa sempre pendurada no
braço, não a soltara, aquela bolsa ela não soltaria nem que a esfolassem,
tentava sacudir-se ou limpar a saia com a mão e estava com um pé descalço,
erguido no ar, como se não quisesse de maneira nenhuma pousá-lo e sujar também
sua planta, nem as pontas dos dedos sequer, o pé que poderia ver o homem que
ela tinha encontrado, vê-lo de perto, em cima, e tocá-lo, mais tarde. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Senti-me
culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também
culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de
mim pela primeira vez desde a cerimónia, ainda que apenas um segundo, o
necessário para secar o suor que lhe empapava a testa e os ombros e para ajustar
ou tirar o soutien para que não a incomodasse e fazê-la regressar com palavras
ao sono que a curaria. Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento,
como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam
e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas
costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um
erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por
uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma
desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era
eu quem a ultrajava. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Ela
estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o
pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com
êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas
resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de
recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto.
Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu
a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de
abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a
parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a
tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa
devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram
outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais
três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca
para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil,
garra de leão, aquele que agarrava e significava <u>Você não vai se livrar de
mim</u> ou <u>Vai comigo para o inferno</u>, suspendeu-o no ar, e o braço nu
ficou congelado no alto, como o de um atleta». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Javier Marías, Coração Tão
Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
do RelógioD’Água/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-26999867578299583772024-03-05T12:24:00.003+00:002024-03-05T12:25:32.898+00:00Coração Tão Branco. Javier Marías. «Você é meu ou Eu te mato. Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse…»<p><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small; text-align: justify;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiekm-D-gd4IZe5euWdzQyv0LkPlfxoEdmnGYV7wxWPud2H2m6RmF2H1CXqU36muTH3uShhgtbyiE8x4q5Ku1kr8KdBo3m0r3K5Tgddti-aTd-mc8ItqwklQ7EPrHHKi-KLWeOZ_PPuKGpw4cg1SkPE8lHo92YY8P7bz-S2GMJnae8wo6BlnQTTKg8hyphenhyphenxp9/s260/3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="159" data-original-width="260" height="159" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiekm-D-gd4IZe5euWdzQyv0LkPlfxoEdmnGYV7wxWPud2H2m6RmF2H1CXqU36muTH3uShhgtbyiE8x4q5Ku1kr8KdBo3m0r3K5Tgddti-aTd-mc8ItqwklQ7EPrHHKi-KLWeOZ_PPuKGpw4cg1SkPE8lHo92YY8P7bz-S2GMJnae8wo6BlnQTTKg8hyphenhyphenxp9/s1600/3.jpg" width="260" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 14pt;">«Ao
dar mais passos do que os que dera repetidamente durante sua espera vi que
andava com dificuldade e lentidão, como se não estivesse acostumada com os
saltos, ou suas pernas robustas não fossem feitas para eles, ou a bolsa a
desequilibrasse ou estivesse enjoada. Caminhava um pouco como Luísa tinha
caminhado depois de sentir-se mal, ao entrar no quarto para deixar-se cair na
cama, onde eu lhe tirara parte da roupa e a introduzira nos lençóis (eu a
cobrira apesar do calor). Mas naquele andar desajeitado também se adivinhava a
graça, perdida naquele momento: quando estivesse descalça a mulher mulata caminharia
com graça, a saia ondularia, quebrando-se ritmicamente contra as coxas. Meu
quarto estava às escuras, ninguém acendera a luz ao cair a noite, Luísa dormia
indisposta, eu não me mexera daquela sacada, olhava os havaneses e depois
aquela mulher que continuava se aproximando com passo trôpego e continuava
gritando para mim o que agora já ouvia: Ei! Você o que faz aí? Tive um
sobressalto ao entender o que estava dizendo, não tanto porque o dissesse para
mim quanto pelo modo de fazê-lo, cheio de confiança, furioso, como de quem se
dispõe a acertar as contas com a pessoa mais próxima ou a quem está amando, que
a irrita continuamente. Não era que se tivesse sentido observada por um
desconhecido de uma sacada de um hotel para estrangeiros e viesse reclamar de
minha contemplação impune de sua figura e de sua humilhante espera, mas sim que
reconhecera de repente em mim, ao levantar a vista, a pessoa que estava
esperando sabe lá havia quanto tempo, sem dúvida desde muito antes de eu a
notar. Ainda estava à distância, atravessara a rua evitando os poucos carros
sem procurar um semáforo e se achava no começo da esplanada, onde parara,
talvez para descansar os pés e as pernas tão salientes ou para alisar outra vez
a saia, agora com maior afinco, já que por fim se encontrava diante de quem
devia julgar ou apreciar sua queda, a da saia.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Continuava
me fitando e desviando um pouco a vista, como se tivesse algum problema de
estrabismo, seus olhos escapavam momentaneamente para minha esquerda. Talvez
tivesse parado e ficado longe para mostrar sua irritação e que não estava
disposta a deixar o encontro se consumar assim sem mais nem menos uma vez que
me avistara, como se ela não tivesse sofrido ou não tivesse sido destratada até
dois minutos antes. Então disse outras frases, todas elas acompanhadas do gesto
inicial do braço e dos dedos móveis, o gesto de segurar, como se com ele
dissesse <u>Venha cá ou Você é meu</u>. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Mas
com a voz dizia, uma voz vibrante, empostada e desagradável, como de
apresentador de tevê, político num discurso ou professor dando aula (mas
parecia iletrada): Você o que faz aí? Não me viu que o estava esperando faz uma
hora? Por que não me disse que você já tinha subido? Creio que dizia assim, com
essa leve alteração na ordem das palavras e abuso dos pronomes em comparação
com o que eu teria dito, ou qualquer pessoa de meu país, suponho. Embora eu
continuasse sobressaltado, e além disso comecei a temer que os gritos daquela
mulata acordassem Luísa às minhas costas, pude observar melhor o rosto, que de
facto era de uma mulata bem clara, talvez tivesse uma quarta parte de negra,
mais visível nos lábios grossos e no nariz um tanto achatado do que na cor, não
muito distinta da cor de Luísa na cama, que passara vários dias bronzeando-se
nas praias para recém-casados. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Os
olhos piscantes da mulher me pareceram claros, cinzentos ou verdes, pelo menos
cor de limão, mas talvez, pensei, tenha ganhado de presente umas lentes de
contato coloridas, causa de sua visão deficiente. Tinha narinas veementes,
alargadas pela ira (tinha cara de velocidade portanto), e mexia a boca em
excesso (agora eu teria lido sem dificuldade em seus lábios, se precisasse),
com esgares parecidos com os das mulheres de meu país, isto é, de substancial
desprezo. Continuou se aproximando, cada vez mais indignada por não receber
resposta, sempre repetindo o mesmo gesto do braço, como se não tivesse outro
recurso expressivo além desse, um longo braço nu que dava um golpe seco no ar,
os dedos dançando simultaneamente por um instante como para agarrar-me e depois
arrastar-me, uma garra. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Você
é meu ou Eu te mato</span></u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">.
Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você
não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze
passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse, mas
começasse a troar no quarto; suficientes também, achei, para que me visse sem
incerteza por mais míope que fosse, portanto parecia indubitável que eu era a
pessoa com quem marcara um encontro importante, que a angustiara com meu atraso
e a ofendera da sacada com minha vigilância calada que continuava ofendendo-a».
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In
Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN
972-708-247-5<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
do RelógioD’Água/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-50692865768427059172024-03-05T11:27:00.003+00:002024-03-05T11:28:15.880+00:00Todas as Almas. Javier Marías. «… quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre…»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5PFzMnxGrcDsPL8yooXywrlL3xI3ePjYzrVzlxQIM_aH4VXpCyazNXVOvLLb6p9fc-UmFGSbK2FzRTuuQCqN3WV_DHUY5xp-GBaxrRjl7r2JFr7ifcT6buiSmE2zQH0NwHNFotUWpzJ4Fm45QvJ4nm6oa-2I-6SMrELfybk4GzRBFPg5w19WDRjxJppmW/s200/!!!%20mal_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="140" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5PFzMnxGrcDsPL8yooXywrlL3xI3ePjYzrVzlxQIM_aH4VXpCyazNXVOvLLb6p9fc-UmFGSbK2FzRTuuQCqN3WV_DHUY5xp-GBaxrRjl7r2JFr7ifcT6buiSmE2zQH0NwHNFotUWpzJ4Fm45QvJ4nm6oa-2I-6SMrELfybk4GzRBFPg5w19WDRjxJppmW/s1600/!!!%20mal_.jpg" width="140" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 14pt;">«Como saber que troço melancólico
do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele
seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente
erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém
ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos
ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia
anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto
daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos vidros
da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do
edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Aparentemente, hoje está a viver
no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de
nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom
humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida
certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também
está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,<span style="mso-spacerun: yes;">
</span>fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um
perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as
quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e
despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do
fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">Inquisidor</span></u>, também conhecido por <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">Carniceiro </span>ou <span style="mso-bidi-font-style: italic;">Estripador</span></u>,
e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Mas quem negava todos os
simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do
lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim
chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações.
Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">não existem</span></u><i> </i>olhares
limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente
vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas
manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida
que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem
que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que
determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar
para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor
dizendo, provavelmente à margem da sua vontade. Havia dias em que, mais do que
acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em
1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes
era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma
leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço
para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre
associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu
olhar confiante e ufano.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Podíamos suspeitar que uma manhã
de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite
anterior ou da manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias
procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um
tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir
emprestado e ainda não decidiu a quem. Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do
seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável,
nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e
sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno».
<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In
Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN
978-989-665-914-4.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de EMFontes/EAlfaguara/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Javier Marías, Literatura, Espanha,</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-87386244884203740752024-03-04T12:13:00.004+00:002024-03-04T12:15:09.006+00:00A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Havia os que passavam a correr e ficavam com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com o vislumbre de alguém que consideravam estar morto…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwY1DbDK2VruoIpK_Tv6QM65SsXD9Y1_9UY9nMm-QMmds9OGgDqm7nm8Nh_-59i8Id7SHJVTTLkSL-cgbJRTi2Xa3QNbJquLIfRt9Tf_lg3oBs-pqVo25_sQ31Wt9MHn1VwQsiT6a1wkxnOOqUCv-QhueLtzW_I3AOF1TSagzoEBNq57niRe5sf-6n-rGu/s179/fpessoa_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="179" data-original-width="124" height="179" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwY1DbDK2VruoIpK_Tv6QM65SsXD9Y1_9UY9nMm-QMmds9OGgDqm7nm8Nh_-59i8Id7SHJVTTLkSL-cgbJRTi2Xa3QNbJquLIfRt9Tf_lg3oBs-pqVo25_sQ31Wt9MHn1VwQsiT6a1wkxnOOqUCv-QhueLtzW_I3AOF1TSagzoEBNq57niRe5sf-6n-rGu/s1600/fpessoa_jdact.jpg" width="124" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Daí que tenha ignorado a confusão
que estava a acontecer poucos degraus acima. É que, na balaustrada aonde ia dar
este primeiro vão de escada, esperava-me meia dúzia de pessoas que acompanhavam
cada passo e analisavam cada gesto que eu fazia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Observei-as e notei esse olhar
incrédulo com que era habitual repararem em mim desde que ressurgira como Pessoa.
Se, para alguns, a primeira sensação era o espanto perante a diferença entre a reprodução
viva e a imagem estática, para outros, o mais estranho era o facto de eu falar.
Notara essa incapacidade em aceitarem como real a fantasia que tinham de mim nestes
últimos tempos em que ocupava os meus dias no Martinho da Arcada a reviver o passado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Havia os que passavam a correr e ficavam
com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com
o vislumbre de alguém que consideravam estar morto; os que paravam e fixavam os
olhos no poeta enquadrado por um cenário que era mais literário do que possível;
os que não queriam acreditar e me questionavam, e os que não se surpreendiam, talvez
por já terem visto de tudo. Aliás, a existência de vida para um heterónimo de Fernando
Pessoa após a sua morte não era coisa que acontecesse pela primeira vez já que antes
um escritor até fizera um romance inteiro sobre o reaparecimento de Ricardo Reis
por nove meses!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A verdade é que as pessoas ainda se
surpreendiam com o meu regresso, mesmo que todos soubessem de tal novidade devido
à quantidade de notícias publicadas nos últimos dias, e continuavam a ficar especadas,
tal como acontecia com as que me aguardavam no fim do lance de escadas. A razão
deste espanto não seria de estranhar, visto que a segunda vinda do poeta era palpável
na carne do meu corpo e não como mero protagonista de um livro. Se me espetassem
sairia sangue, coisa que ao Ricardo Reis do romance jamais aconteceria, porque era
feito de palavras. Aliás, se me dessem tempo, o que iria sangrar era a continuação
da obra do poeta. E isso é que era importante, até porque faltava aos portugueses
alguém em quem acreditar e que lhes devolvesse a sua própria voz. Quem melhor
do que um poeta para interpretar esta angústia tão visível num povo que já elegera
um outro poeta como o seu patrono do dia nacional? A única condição que
colocaria, quando fosse o tempo certo, era a de não me virem com a história do V
Império. Não queria mais ilusões!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Eram já mais de uma dúzia as pessoas
que me esperavam no primeiro andar da Casa. Se fora lento a subir as escadas, elas
foram rápidas a concentrar-se junto ao corrimão, mesmo que eu não tivesse reparado
no ajuntamento, porque prestei mais atenção ao que estava pendurado ou pintado nas
paredes. Curiosas e receosas, iam recuando cada vez que eu avançava, ladeado
pelo funcionário que me encaminhava para o lugar que definira como sendo o de uma
surpresa feliz. Eis senão quando a directora da Casa interrompe a minha entrada
triunfal e me manda parar». <b><i>In João Céu e Silva, A Segunda Vida de
Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-</i></b><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de AGePazEditores/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Fernando Pessoa, João Céu
e Silva, Literatura, Conhecimento,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-52408486943441048572024-03-02T17:23:00.003+00:002024-03-02T17:25:06.813+00:00A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «… olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter sido. Estava a aproveitar este momento…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitya0MzXWRyNFrMB0_CWIxrdyHRe88-V21aQm4_Q53CzGn-wKpxcjjkg6CIre_7yH5ECakGhGh-VdII4RV5WAcIHPcxQcSDUFjnHAVi2CqOFEKU9ioyBqM-3MDhu-vpdcr4yhvf414WsMXVRnDXqkNSp70yIDhq7b6sLFceW7rKIw97rme8tiJE5Py01YC/s179/fpessoa_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="179" data-original-width="124" height="179" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEitya0MzXWRyNFrMB0_CWIxrdyHRe88-V21aQm4_Q53CzGn-wKpxcjjkg6CIre_7yH5ECakGhGh-VdII4RV5WAcIHPcxQcSDUFjnHAVi2CqOFEKU9ioyBqM-3MDhu-vpdcr4yhvf414WsMXVRnDXqkNSp70yIDhq7b6sLFceW7rKIw97rme8tiJE5Py01YC/s1600/fpessoa_jdact.jpg" width="124" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Temos tido muito cuidado com a
casa e está tudo em condições, mesmo que às vezes o dinheiro seja curto para as
despesas de manutenção. Acho que vai gostar do que lhe vou mostrar e irá ficar
surpreendido com as melhorias que os directores têm feito.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Realmente, estava tudo alterado em
relação ao tempo em que eu vivera num andar deste prédio da rua Coelho da
Rocha. Já lá iam muitos anos, no entanto, reconhecia o lugar com facilidade, pois
alguns edifícios mantinham-se como eram na memória, apesar de estarem mais
degradados do que nos quinze anos em que habitara no bairro, entre 1920 e 1935.
As paredes que antes dividiam os pisos tinham sido destruídas, e o espaço à vista
era bem maior. Se me perguntassem, confessaria sem problemas que nunca teria conseguido
imaginar que os apartamentos fossem tão capazes de emparedar quem morava dentro
deles e apagar-lhe o exterior. Que largueza e amplitude que estas mudanças teriam
oferecido aos antigos moradores!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Bem, se morassem cá todos não
poderíamos ter feito estas alterações.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O funcionário fora rápido na resposta
ao meu comentário, fazendo-me pensar até que ponto este meu regresso não estava
encenado na sua cabeça há bastante tempo. Passaria ele os dias a pensar no que
me diria, caso eu voltasse a esta casa, ou seria apenas um empregado cuidadoso?
Posso dizer que, para o primeiro contacto, estava a ficar com uma boa opinião sobre
a Casa e que, se todos os funcionários fossem como este, a instituição estava bem
entregue.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Continuámos a visita ao rés-do-chão,
sempre com ele à minha frente a mostrar-me a habitação, tendo eu rapidamente desistido
de a continuar a reconstituir mentalmente. Encaminhou-me para a escadaria que levava
ao primeiro andar e, certo de que iria fazer-me uma surpresa, perguntou se queria
subir pelos degraus ou se preferia experimentar o elevador.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Tenho a certeza de que isto é que
não estava cá no seu tempo!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Realmente, este regresso à minha última
morada era uma surpresa constante. Olhei para os degraus de madeira e contei-os,
para confirmar se o seu número se mantinha o mesmo. Com tanta obra feita
entretanto... Era a mesma quantidade de degraus, o que me permitia continuar a repetir
a contabilidade que executava todos os dias ao chegar a casa. Porque seria que
eu contava os degraus, perguntei-me. A questão seria antes o porquê de o fazer neste
regresso e de como é que me lembrava desse tique, após quase um século passado?
Voltei ao presente devido à pergunta do funcionário e respondi-lhe que preferia
subir pelos degraus. Como fazia antigamente, não é?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Respondi-lhe que sim, enquanto reparava
nos pormenores de decoração da casa, sempre com a minha imagem espalhada a cada
canto. Eram estátuas, frases, poemas e desenhos. Uns meus. uns de outras pessoas
sobre mim, mas sempre em torno do mesmo tema: <b>eu</b>. Coisas em que não tinha reparado com tanto cuidado na minha visita
anterior à Casa Fernando Pessoa, às escondidas e ainda distante de ser quem vim
a ser. O funcionário aproveitava a minha demora para ir explicando o significado
do mobiliário novo e contava-me a sua história, mesmo que se notasse que estava
com alguma pressa em chegar a uma das salas mais adiante. De tão entusiasmado, não
conseguiu deixar de soltar uma pista.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Creio que no piso de cima vai
encontrar algo que o deixará surpreso e feliz.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não esclareceu qual seria a surpresa
e também não o pressionei. Afinai se a minha intenção era tomar posse da Casa, seria
conveniente que a olhasse bem nesta primeira visita como Fernando Pessoa. Aliás,
para que nada falhasse, olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e
aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter
sido. Estava a aproveitar este momento como mais nenhum outro na minha vida,
continuando o passeio em câmara lenta, como se fosse o espectador de um filme que
rodava depressa de mais para acompanhar o argumento». <b><i>In João Céu e Silva, A Segunda
Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-</i></b><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de AGePazEditores/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Fernando Pessoa, João Céu
e Silva, Literatura, Conhecimento,</span><span style="font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-91935245660555221172024-03-01T20:13:00.003+00:002024-03-01T20:13:56.577+00:00A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Pedi-lhe, então, que me mostrasse a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão que antes nos separava e deu início à visita guiada»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpDM6NpVKSTuU0N7Lx0jMRUHHHw3x1zhdtnmpMy18v_q4yRCelDkM9u7oYZRFO5OQHRPW4oMpt3HQKJt_ZP1vvIQyTJKzIKDNStXNNCuO_pTSy7qcVrJoyS2V3vHuAUtSA3w24FhlQCyUwMdYKPPD3LIDCLbVmEHlXkdRQaAF2t_IQnpIMQsI9JlPjaaPN/s179/fpessoa_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="179" data-original-width="124" height="179" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpDM6NpVKSTuU0N7Lx0jMRUHHHw3x1zhdtnmpMy18v_q4yRCelDkM9u7oYZRFO5OQHRPW4oMpt3HQKJt_ZP1vvIQyTJKzIKDNStXNNCuO_pTSy7qcVrJoyS2V3vHuAUtSA3w24FhlQCyUwMdYKPPD3LIDCLbVmEHlXkdRQaAF2t_IQnpIMQsI9JlPjaaPN/s1600/fpessoa_jdact.jpg" width="124" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p> </o:p></span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Era mais que certo que, ao bater
à porta da Casa Fernando Pessoa, iria revolucionar a minha vida e a do poeta para
toda a eternidade. Afinal, a ressurreição não está à mão de qualquer ser humano
que a reclame, nem o avanço da ciência a tornou mais fácil. Não me estou a referir
ao voltar à vida através de bruxarias, complexas cirurgias, processos de congelamento
ou outros progressos da tecnologia, daqueles que se vão ouvindo de vez em quando
nas notícias.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não, o meu caso é diferente e mais
difícil de compreender, mesmo que para o aceitar seja necessário crer em alguma
coisa. Porque para mim foi um passo dado sem dificuldade, quase natural, como o
de uma criança que começa a caminhar. Estou certo, repito, de que ao bater à porta
da Casa Fernando Pessoa irei revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a
eternidade. Afinal, o que vou dizer aos que estão resguardados pelas paredes grossas
daquela construção e que mandam na minha antiga morada não é o que escutam todos
os dias da boca dos visitantes que vão à procura das memórias de Fernando, nem
o que querem ouvir sobre o Pessoa que guardam oficialmente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">E como não desejo ser aquele
sobre quem existam dúvidas, tenho de lhes dizer toda a verdade, logo desde o
princípio, convencendo-os de que não sou um turista de passagem que apareceu neste
ano de 2010 por acaso, ou talvez um louco que decidiu fazer uma habilidade especial.
Antes, devo mostrar-lhes que a eternidade das palavras que têm por missão
preservar não está, como pensam, numa arca meio cheia, mas na parte meio vazia
da qual só eu tenho a chave.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Decerto que a novidade que lhes vou
dar não será a que esperam, mesmo que, passada a previsível grande tempestade, devam
ficar satisfeitos com a revelação. Não me custa pensar que assim será, porque os
últimos dias têm mostrado como é uma experiência complicada esta de certificar que
o poeta não morreu para sempre.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Que não é como o Luís de Camões, morto
e enterrado sabe-se lá aonde e cuja obra ficou esquecida por muito mais tempo do
que a de Pessoa. De uma coisa estou certo antes de bater à porta da Casa e de lhes
dizer ao que vou: não contem comigo para contar uma mentira. Tudo o que vai
acontecer nos dias que se seguirão foi montado aos poucos, como se eu observasse
uma casa a crescer desde as fundações até ao tecto. Foi assim que ficou
definida a minha missão, como se fosse uma segunda vida que <u>Vicente Guedes</u>
dá a Fernando Pessoa, depois de ter sido um heterónimo quase esquecido e substituído
pelo <u>Bernardo Soares</u> no Livro do Desassossego.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O que eu disse ao porteiro não o
surpreendeu. Olhou de alto a baixo e reconheceu-me. O que seria de esperar, porque
eu era exactamente como me têm descrito; bigode, nariz circunspecto, fato negro
e chapéu, tudo a combinar com a imagem das fotografias.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Bom dia, senhor Fernando Pessoa. Como
tem passado? Diria mesmo que foi mais educado do que eu poderia esperar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Poderia ter respondido torto e achar
que vinha reclamar o que era meu, deixando-o sem emprego. Ou pensar que,
portando-se bem, o manteria, pois nenhum poeta famoso dispensa um funcionário para
todo o serviço, como ele parecia poder vir a ser. Portanto, fiquei satisfeito com
a forma como decorreu a primeira situação, mesmo que tivesse antevisto vários
outros desfechos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Pedi-lhe, então, que me mostrasse
a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão
que antes nos separava e deu início à visita guiada». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In João Céu e Silva, A Segunda
Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-</i></b><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de AGePazEditores/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Fernando Pessoa, João Céu
e Silva, Literatura, Conhecimento,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-53439576378802420522024-02-29T18:03:00.000+00:002024-02-29T18:03:20.570+00:00 Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqQIh3vFJRze_CH0onL7YKfZOOj2E-VNkx33Bjyn4n9qGyxTCFCkKIhHEj7ch6RE96DGAqtbb1mCw6FXNYxKVQ_Ng11UxEEN-rPYtaD6LAbEtsVz-3gPXIw_ipbxRnZ_rlVba1fzCptjxCex7vFs4rh5zjDcMMi1ZRBig_7or9BFUoS4KenqG-gqTunCQI/s180/!%20jdact_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="136" data-original-width="180" height="136" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqQIh3vFJRze_CH0onL7YKfZOOj2E-VNkx33Bjyn4n9qGyxTCFCkKIhHEj7ch6RE96DGAqtbb1mCw6FXNYxKVQ_Ng11UxEEN-rPYtaD6LAbEtsVz-3gPXIw_ipbxRnZ_rlVba1fzCptjxCex7vFs4rh5zjDcMMi1ZRBig_7or9BFUoS4KenqG-gqTunCQI/s1600/!%20jdact_.jpg" width="180" /></a></div><br /><div style="text-align: center;">Cortesia de jdact e wikipedia</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">C</span></b></p><p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: 14pt;">«Luanda
começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na humidade
e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e
velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no
excesso de claridade trêmula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos
com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas
fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando
sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantes dos
beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir
verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Pássaros
brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da
Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais put… cansadas por
todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes de
gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de
tempos a tempos as ancas ao ritmo de <u>pasodoble</u><i>
</i>de uma angústia indecifrável. Alferes pequeninos e de óculos, com ar
competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos
na direcção de carruagens de gado que aguardavam num pontão coberto de detritos
e de limos, pontão da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos
aos pés da cidade, cães idosos que bolsam no capacho vómitos de lixo: em toda a
parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através
de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto
heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Sempre
apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao
escarro, escarro-busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de
Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita
definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto à
filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, tão rico de
ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebro exaurido por
raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim de conseguir
pensar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Apetece-lhe
outro <u>drambuie?</u> Falar em
ampolas bebíveis dá-me sempre sede de líquidos xaroposos, amarelos, na
esperança insensata de descobrir, por intermédio deles e da suave e jovial
tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do
círculo das emoções. Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o
consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento
vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, mas logo de
imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no
dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos
a caminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha
existência, tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena
matinal. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Nunca
lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a
aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo
tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa
alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre
nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no
trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Mas
talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que a metafísica
constitua apenas para si um incómodo tão passageiro como uma comichão efémera,
talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagar
numa cadência autónoma de berços. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Uma
das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a
inocência, não a inocência inocente das crianças e dos polícias, feita de uma
espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou da estupidez,
mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dos outros
e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregado que
se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crónico: uma vaga atenção
distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">O
comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida,
cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um
ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo». </span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">In António Lobo
Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.</span></i></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"> </span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia DomQuixote/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura
e Conhecimento, Escrita</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-78016446584332579402024-02-27T19:09:00.000+00:002024-02-27T19:09:47.194+00:00Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj65npLnT0i4aevW7IBzttXV8B00bonMD-k7nbtTysdB4Iuv4vBipaXIx08ozORU-6EPH2czs54FVJdxfYGgUTlIop134O3UuN_vchANYxdXaLqDmcIDnLGl47CREBBsAFvtk4FiNhphyphenhyphennti-YUed4qEFtXtC1wLKX6ROx-ATw9BP9WnwmXw82Um2SlwpaX/s143/as%20naus_2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="143" data-original-width="140" height="143" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj65npLnT0i4aevW7IBzttXV8B00bonMD-k7nbtTysdB4Iuv4vBipaXIx08ozORU-6EPH2czs54FVJdxfYGgUTlIop134O3UuN_vchANYxdXaLqDmcIDnLGl47CREBBsAFvtk4FiNhphyphenhyphennti-YUed4qEFtXtC1wLKX6ROx-ATw9BP9WnwmXw82Um2SlwpaX/s1600/as%20naus_2.jpg" width="140" /></a></div><div style="text-align: center;">Cortesia de jdact e wikipedia</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">B</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">As
senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os <u>visons</u><i> </i>da menopausa
distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de
Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico
de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de
garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus púbis fossem
de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas,
gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de
caracol na murchidão das coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro, comiam a sopa
com a ponta dos beiços tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no
vértice dos sofás, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de <u>bâton</u><i> </i>de que se evolavam
ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patrióticas, e
reencontrei-as no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-nos com
maços de cigarros <u>Três Vintes</u><i>
</i>e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se
articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão: Sigam descansados que
nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">E
com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes, em
relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas herniárias.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">E
depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada
vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos
e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto. O espelho
do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um <u>puzzle</u><i> </i>desarrumado, em que
a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Um
dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava aos arrancos em palpitações
irregulares de motor de táxi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a
atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas
com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes
em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na
distância num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves
e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto
de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Verão,
sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos
cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da
avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. Como quando
se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da
própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao
pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Ao
segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas
a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde.
A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos como corujas
na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de
vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância, quando
na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante
as caretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando
cada colher com uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento
gritava: Cantem o <u>Papagaio Loiro</u><i>
</i>que o miúdo está a puxar o vómito.</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Em
resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em
uníssono como no naufrágio do <u>Titanic</u>,
de beiços arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho
a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao
prato um roldão de massa e arroz que me obrigavam a engolir, desta vez sem
coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Agora,
percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor
do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do
Equador, mole e quente como as mãos do senhor Melo, barbeiro do avô, no meu pescoço,
na loja da Rua 1º de Dezembro, onde a humidade multiplicava o cromado das tesouras
nos espelhos canhotos, o que com mais veemência me apetecia era que, tal como
nesses tempos recuados, a Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino
num vagar feito da paciência da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados
pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os
fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam». </span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">In António Lobo Antunes, Os Cus de
Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.</span></i></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia DomQuixote/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif";"><span style="font-size: x-small;">JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura
e Conhecimento, Escrita, </span></span> </p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-33087164857035508942024-02-25T16:43:00.004+00:002024-02-25T16:44:43.787+00:00Idade Média. Umberto Eco. «… o pacto firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos, em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava. O domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna mais completo…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaR0AHjVIdx5ec5ZbxLcD372zdP5NDee6eCYIDhwXCYqwEYA5R6meUtEli8OLNOi4tsprEDf6VbkUM_6H9DT-Fq3_6pt2zPviBbh2saluVtL4xY9GC-97PntMmYNrEvWXa22DNzglwGGwtGU5OtIvaksG6pW-JA5YwTKThUVj4H3ZWln7cAjn41u7ih-27/s156/!%202.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="156" data-original-width="140" height="156" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaR0AHjVIdx5ec5ZbxLcD372zdP5NDee6eCYIDhwXCYqwEYA5R6meUtEli8OLNOi4tsprEDf6VbkUM_6H9DT-Fq3_6pt2zPviBbh2saluVtL4xY9GC-97PntMmYNrEvWXa22DNzglwGGwtGU5OtIvaksG6pW-JA5YwTKThUVj4H3ZWln7cAjn41u7ih-27/s1600/!%202.jpg" width="140" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Da
Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-weight: bold; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">A instalação dos bárbaros<o:p></o:p></span></u></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">«Diferente
é, pelo contrário, a génese dos reinos romano-bárbaros no território
continental. Estes reinos não surgem da ocupação por potências estrangeiras de
uma zona precedentemente imperial, mas estabelecem-se no território na
sequência de negociação de <u>foedera</u><i>,</i> instrumentos diplomáticos em uso
desde o alto império, por meio dos quais Roma se intromete nas questões internas
das tribos germânicas residentes fora das estremas imperiais. A partir da época
de Marco Aurélio (121-180, imperador desde 161), inicia-se, de facto, o costume
de acolher, no território do império, bárbaros <u>inquilini</u><i>, </i>isto é, cultivadores ligados à terra; no tempo
de Diocleciano junta-se-lhe o uso de os receber como <u>læti</u><i> </i>e <u>gentiles</u><i>,
</i>cultivadores semilivres, vinculados a obrigações militares e talvez
instalados em terras públicas e organizados, ao contrário dos precedentes, em
grupos etnicamente compactos. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">De
uma ulterior evolução destas práticas, que não constituíram, portanto, uma
inovação tardo-antiga, resultam os <u>foedera</u><i>
</i>do século V, que preveem a instalação da população bárbara numa determinada
zona do império, em que um soberano governa em vez do imperador e as tropas,
bárbaras, devem para todos os efeitos ser consideradas de <u>foederati</u><i> </i>romanos, em 451,
por exemplo, os visigodos combatem ao lado dos romanos contra Átila (?-435) nos
Campos Cataláunicos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">A
legitimação do poder do rei provém de uma delegação imperial que se concretiza
com a recepção não só do título de <u>rex</u><i>
</i>no interior das suas comunidades mas também de um cargo oficial romano que
era, em geral, o de <u>magister
militum</u><i>. </i>Estas realidades só são, pois, possíveis no interior
do império, onde o elemento bárbaro é sempre muito inferior numericamente ao
romano. E também as estruturas fiscais e administrativas romanas são, geralmente,
mantidas; a organização provincial, por exemplo, chefiada por <u>duces</u><i>, </i>mantém-se no reino
visigótico, conservando frequentemente nos seus postos os mesmos indivíduos, e,
de um modo geral, é dos cargos romanos de <u>dux</u><i> </i>e de <u>comes</u><i>
</i>que provêm os duques e condes francos e lombardos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Entre
os mais importantes <u>foedera</u><i>
</i>deste tipo são, certamente, de recordar: o que em 382 é negociado por
Teodósio I com os godos, a quem é permitido instalar-se na Trácia depois do desastre
de Adrianópolis; os dois pactos de 411 e 443, que dão origem aos dois reinos burgúndios;
o pacto que em 418 concede aos visigodos, que já em 413 haviam sido autorizados
a estabelecer-se na Gália Narbonense, a Aquitânia II, com a inclusão de alguns territórios
da Novempopulânia e da Narbonense I, com capital em Toulouse, de onde se expandem
até conquistar a Espanha sueva; o que em 435 é concedido aos vândalos, que depois
o violam ocupando três províncias da África setentrional; e, por fim, o pacto
firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos,
em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava.</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">O
domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna
mais completo e independente do poder imperial, que continua formalmente
superior no plano hierárquico: a autoridade dos <u>reges</u><i> </i>é-lhes delegada durante todo o século V pela
autoridade imperial. Isto vê-se, por exemplo, nas moedas e, em particular, na
de ouro: os <u>regna</u><i> </i>começam
mais ou menos imediatamente a cunhar moeda própria, mas fazem-no em nome do
imperador, e nem em caso de conflito com o império colocam nas moedas o nome do
<u>rex</u>; quando muito, substituem
o imperador da época por um dos anteriores, por exemplo, aquele que
estabelecera originalmente o <u>foedus</u>.
É o caso dos <u>solidi</u><i> </i>ostrogodos
de Totila e de Teia com o busto de Anastácio». <b><i>In </i></b></span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Umberto Eco,
Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote,
2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.</span></i></b><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;"><o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de PdQuixote/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Umberto
Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-56357396107549121562024-02-20T19:23:00.001+00:002024-02-20T19:23:55.702+00:00Idade Média. Umberto Eco. «Mas enquanto o império do Oriente permanece como Estado centralizado, embora com diversas vicissitudes e até com uma notável redução territorial no decurso do século VII…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1U6fPN3ZtiErkKk8YyzX4h8lSGwM4jf9cpw6QRDRGRYCYl2RbotFGMtcPLApRNwdfBmWRdrIoS0yO2K2vNdjjlTMJqIjbyTuUtB75-eB6py8jiZUNqZMJl-wkxIBqQ2jdzqhaJWaQRfsPi5nNSj0cWz1MZxoC6w1rOhII6BNbxeoVfFFZah67jZxkqkHL/s240/!!!%20idade%20media_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="224" data-original-width="240" height="224" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1U6fPN3ZtiErkKk8YyzX4h8lSGwM4jf9cpw6QRDRGRYCYl2RbotFGMtcPLApRNwdfBmWRdrIoS0yO2K2vNdjjlTMJqIjbyTuUtB75-eB6py8jiZUNqZMJl-wkxIBqQ2jdzqhaJWaQRfsPi5nNSj0cWz1MZxoC6w1rOhII6BNbxeoVfFFZah67jZxkqkHL/s1600/!!!%20idade%20media_.jpg" width="240" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Da
Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Tendências secessionistas</span></u><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></u></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">«São
sintomáticas deste estado de coisas as revoltas dos bagaudas, uma série de
movimentos de revolta que se prolongam, com diversas fases agudas, entre os
séculos III e V na zona gaulesa, da destruição de Autun (269) e intervenção
militar de Maximiano (c. 240-310, imperador desde 286) às explosões de
violência periódicas no século V e, por fim, o derradeiro episódio conhecido, a
sua derrota, infligida em 453-454 pelo visigodo Frederico.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">As
revoltas dos bagaudas são nitidamente de carácter étnico: o próprio nome parece
ter origem céltica, e o movimento caracteriza-se pela forte reivindicação de
uma identidade <u>indígena</u> e rural contraposta à cultura urbana romanizada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-weight: bold; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Reorganização do poder<o:p></o:p></span></u></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Além
disso, é frequentemente o próprio poder imperial que procede à repartição de territórios
por diversas figuras reinantes, embora em graus diversos, dada a dificuldade de
governar o império como uma unidade e de responder às especificidades, cada vez
mais acentuadas, de macrorregiões diferentes (torna-se, principalmente, forte a
diferença geral entre o Oriente e o Ocidente). Depois de a tetrarquia de
Diocleciano (243-313, imperador de 284 a 305) se ter ocupado desta repartição,
não só com a divisão do império em quatro partes mas também com a
reestruturação do sistema das províncias e a sua articulação nas dioceses e nas
prefeituras com o pretório, estrutura
piramidal que permite um melhor conhecimento das especificidades locais, quer
nas micro quer nas macro-áreas, Constâncio II (317-361, imperador desde 337)
decide nomear césares, primeiro, Galo e, depois, Juliano, consciente de que um
poder central é de gestão difícil e favorece o aparecimento de usurpações.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Em
seguida, Valentiniano I (321-375, imperador desde 364) é responsável por uma verdadeira
repartição do império ao associar ao poder o seu irmão Valente (328-378, imperador
desde 364), a quem confia o governo do Oriente para manter o domínio do Ocidente.
A historiografia mostra cada vez mais como esta repartição, que já prefigura a grande
cisão do império de 395, cria de facto duas verdadeiras realidades
institucionais, em que, por exemplo, a promulgação de uma lei numa das partes
não implica a sua automática validade na outra e os exércitos são transferidos
de uma parte para a outra em caso de necessidade, mas mediante um pedido
específico de ajuda, como se fosse outro Estado a pedi-la, conforme acontece
durante as invasões góticas de 378, quando o exército ocidental, conduzido por
Graciano, é mobilizado a pedido de Valente, mas não chega a tempo de impedir o
desastre de Adrianópolis. Convém, portanto, atribuir um peso muito menor ao
gesto de Teodósio (347-c. 395, imperador desde 379) que, prestes a morrer,
deixa o império aos seus dois filhos: o Ocidente a Honório (384-423, imperador
desde 393), o mais novo, sob a orientação de Estilicão, e o Oriente a Arcádio,
o mais velho (377-c. 408, imperador desde 383). A ideia de Teodósio não é,
pois, muito diferente da de Valentiniano, tanto mais que é dito explicitamente
que o império continua a ser apenas um, <u>divisis tantum sedibus</u><i>. <o:p></o:p></i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">O
que realmente assinala uma viragem é a falta de aceitação no Oriente da
supervisão de Estilicão, talvez desejada pelo próprio Teodósio sobre ambas as
partes, que cria uma situação de conflito, e até armado, entre as duas metades
e a ausência, deste momento em diante, de uma figura que reúna ambas as coroas
na sua pessoa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-weight: bold; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">A instalação dos bárbaros<o:p></o:p></span></u></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Mas
enquanto o império do Oriente permanece como Estado centralizado, embora com diversas
vicissitudes e até com uma notável redução territorial no decurso do século
VII, em consequência das invasões árabes, a desagregação é rápida no Ocidente.
Em 410, o ano em que as dificuldades políticas e militares do Ocidente conduzem
ao saque de Roma por Alarico (c. 370-410, rei desde 395), é decidido abandonar
a Britânia, que, entregue a si própria, não tarda a ser invadida por anglos,
saxões e jutos (a partir de 449); estes, recebidos talvez pelas populações
locais com base num <u>pacto</u> análogo aos que Roma firma na Europa
continental, facilmente podem instalar-se neste território privado de
autoridade estatal organizada». <b><i>In </i></b></span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros,
Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN
978-972-204-479-0.</span></i></b><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;"><o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de PdQuixote/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Umberto
Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-89497971032178440982024-02-20T11:14:00.003+00:002024-02-20T11:15:31.284+00:00Idade Média. Umberto Eco. «A própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras, das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa…»<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKilUEo2KI5mSt22-HtRLH1aOXXkcxK2YxSpz5u4WaClhdwKeWOpiXkxTzvclM54JfPq1IbDWcRLhDmt80B1mcV0HLNhLyzCZ7D-_QBBfyefFhdoPlyN9vACsI0W32bzMFFjcAKgSAf8ANWZdKPcYAv7bfn13n9ZuwCPLBSPKn0hYhPi0_1o6aCh7OyOF3/s240/!!!%20idade%20media_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="224" data-original-width="240" height="224" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKilUEo2KI5mSt22-HtRLH1aOXXkcxK2YxSpz5u4WaClhdwKeWOpiXkxTzvclM54JfPq1IbDWcRLhDmt80B1mcV0HLNhLyzCZ7D-_QBBfyefFhdoPlyN9vACsI0W32bzMFFjcAKgSAf8ANWZdKPcYAv7bfn13n9ZuwCPLBSPKn0hYhPi0_1o6aCh7OyOF3/s1600/!!!%20idade%20media_.jpg" width="240" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">Hipóteses para uma periodização da
Idade Média</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">«Especialmente
se considerarmos na sua totalidade o cadinho dos povos e das civilizações que
contribuíram para a formação inicial da Europa medieval, bem como os seus
contactos recíprocos, até os limites do continente nos aparecem móveis e permeáveis,
constituídos, como são, mais do que por barreiras, por zonas cujas partes mais
remotas estão implicadas em recontros cada vez mais esporádicos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">A
própria separação de Oriente e Ocidente, consequência das migrações bárbaras,
das expedições islâmicas, da separação e primado da Igreja de Roma em relação às
orientais, da distinção cada vez mais nítida da Europa em relação a Bizâncio,
que constitui um traço distintivo da primeira Idade Média, não foi, contudo, tão
nítida como se poderia crer por um exame que levasse em conta, principalmente,
a redução das vias de comunicação e do tecido urbano, a decadência dos portos e
do tráfego, o desaparecimento das escolas e o aumento das distâncias no plano
político e cultural. Basta pensar que Carlos Magno e até os otões se aperceberam
da necessidade de manter relações com Constantinopla, que os árabes, como é bem
sabido, transmitiram aos europeus o seu saber e o antigo, que os muçulmanos
foram por várias vezes chamados por cristãos a socorrê-los contra outros cristãos
e concordaram frequentemente com os poderosos locais em lutar com os seus
correligionários, que os mouros penetraram em vastos territórios, como a Península
Ibérica e não só, com forças reduzidas e confiados no apoio de populações
deprimidas e oprimidas e que não faltaram casos, alguns deles importantes, de
casamento entre fiéis de religiões diferentes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">É
exactamente nesta vertente que estão em curso os estudos talvez mais
inovadores, que se propõem mostrar a permeabilidade do islão e contribuir para
abater as barreiras religiosas e culturais hoje ventiladas, sem por isso
renunciar a reclamar o relevo da específica tradição europeia, baseada numa
particular pluralidade de formas sociais e políticas e na sua variabilidade.</span><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Da
Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno<o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-style: italic;">A
desagregação do Império Romano do Ocidente é o termo de um percurso histórico
de longa duração, já reconhecível no século III, de regionalização dos territórios
imperiais, que cada vez mais se configuram como zonas autónomas e não
integradas. A deposição de Rómulo Augústulo em 476 é apenas um momento, talvez
o mais visível no plano historiográfico, desta longa transição.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Tendências secessionistas</span></u><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;"><o:p></o:p></span></u></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">A
fragmentação política do Império Romano não é o resultado directo da deposição
do último imperador do Ocidente <u>em 476, data convencional do início da Idade
Média</u>. Com efeito, já dois séculos antes se manifestaram tendências centrífugas
na estrutura imperial: no decurso da crise do século III e em particular
durante o reinado de Galieno (c. 218-278, imperador desde 253), o império
encontra-se dividido em três grandes troncos autónomos. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">No
Oeste, a revolta de Póstumo (?-c. 269, imperador de 260 a 268) dá origem à
constituição de um império gálico (formado pela Gália, a Península Ibérica e a
Britânia) que dura 13 anos sob o próprio Póstumo, Mário (?-269, imperador desde
268), Vitorino (?-c. 270, imperador desde 268) e Tétrico (?-273, imperador
desde 271). No Oriente, pelo contrário, o poderio económico-comercial de
Palmira leva à constituição de um verdadeiro império centrado nas cidades
caravaneiras, primeiro sob Odenato (?-267, rei desde 258) e depois sob Vabalato
(? -273, rei desde 267), mas governado principalmente, segundo dizem as fontes,
por Zenóbia, mulher do primeiro e mãe do segundo (rainha de 267 a 273). Só
Aureliano (214/215-275, imperador desde 270) consegue recuperar os dois reinos secessionistas
em 273 e reconstituir a unidade do império. Mas já a partir desse momento, e
ainda mais durante o século IV, se mostra cada vez com maior evidência a presença
de ímpetos centrífugos e, mais em geral, de uma regionalização em zonas cada
vez mais autónomas umas das outras e menos integradas num conjunto. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;">São
disso prova as várias usurpações, cada vez mais ligadas a um determinado território.
O objectivo é, com frequência, a constituição de reinos secessionistas e o
reconhecimento de uma autoridade igual à dos imperadores já existentes: é o
caso, por exemplo, da rebelião de Caráusio (imperador de 286 a 293), que domina
a Britânia e a Gália setentrional, herdadas na sua morte por Aleto (?-296,
imperador desde 293) e depois por Constâncio Cloro (c. 250-306, imperador desde
293), mas também por Magnêncio (c. 303-353, imperador desde 350), Magno Máximo
(c. 335-388, imperador desde 383) e Constantino III (?-411, imperador desde
407)». <b><i>In </i></b></span><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos,
Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.</span></i></b><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt; mso-fareast-font-family: TimesNewRomanPSMT;"><o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de PdQuixote/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Umberto
Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"> </span><span style="font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-50767074965027930522024-02-17T18:50:00.003+00:002024-02-17T18:51:11.712+00:00A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e não trouxe cavaleiros, maldito seja!»<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_nSpm0z2Cvz0ks8pqjd2Bc2wpjWKq_qrOk-4kPWrUsuSA0Fac7F26tNAlCn6CMG2FMjdVRMatig0MSNQvlYYmi9kQm1H9LX_1G7TpeNwoRs_Edx6jIIbqSgOWUEGHFITplSS-K2d74kIcsTWEQZieXTOdkgXa-RrSVjr0Kld07-F7z8BKe0LyIhFaOC0I/s296/2%20(2).jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="296" data-original-width="220" height="296" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_nSpm0z2Cvz0ks8pqjd2Bc2wpjWKq_qrOk-4kPWrUsuSA0Fac7F26tNAlCn6CMG2FMjdVRMatig0MSNQvlYYmi9kQm1H9LX_1G7TpeNwoRs_Edx6jIIbqSgOWUEGHFITplSS-K2d74kIcsTWEQZieXTOdkgXa-RrSVjr0Kld07-F7z8BKe0LyIhFaOC0I/s1600/2%20(2).jpg" width="220" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">«Pero Mafaldo vivia no século XIII e
deve ser contado entre os trovadores alfonsinos da côrte castelhana. Escreveu
um serventês a despedir-se da verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a
famigerada Balteira. Pero Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e
mentindo. Toda a gente faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente
ganha com isso. Juro, pois, e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a
quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro que sou. Que hei-de eu
fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a minha honra? Dai-me um conselho,
por caridade. Assim vai a minha vida: Se minto ao meu amigo e ao meu senhor,
medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia: só medram
os malandros e os hipócritas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Um trovador desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa
inspiração, deixou-nos uma poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer,
contra o mundo e os homens. Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem
viu o mundo de antigamente e o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se
algures? Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">mesura</span></u><i> </i>e a grandeza? Onde
pára a verdade? Quem é leal ao seu amigo? Que se fez do amor e do trovar?
Porque anda a gente triste e sem cantar? Ainda assim, vivo por amor duma
senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a saber
porque não me <u>vou algur esterrar, / se poderia melhor mund’achar</u>. E este
pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação inapelável dos
tempos que já não são nossos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Até aqui, temos a impressão dum cortejo poético de velhos pranteadores.
Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e salta aos olhos, por exemplo,
na França do século XIX, mesmo entre escritores audazes e criadores. Alfred Musset
condenava a geração nova por ser inculta, <u>sans gaitê et sans amour</u>. Chateaubriand
escrevia, em 1831: <u>Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout
se détériore</u>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França
apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria. Eles não pressentiam,
entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do <u>frisson nouveau</u>
que depois faria estremecer Victor Hugo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: 14.0pt;">Afonso X e os Soldados<o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Afonso X, <u>o Sábio</u>, está no centro dum ciclo satírico, onde a
poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou,
atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos.
Às vezes, nada tão lúcido como o ódio.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e
dos peões <u>todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões</u>. Os versos do
rei valiam mais do que esta peonagem. E a sua indignação desafoga-se contra os
que recusaram acompanhá-lo na guerra, ao sul, contra os muçulmanos:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Nunca eu cinja espada em boa bainha, se Pero Espanha, ou Pero Galinha,
ou Pero Galego forem comigo! Outrem me acompanhará. Mendo Candarei pretextara
também qualquer dificuldade e não fora com ele. Fuão deixou-o sozinho na guerra
da Andaluzia e o rei sentia vontade de mandar ao demo a honra deste mundo, as
armas e o batalhar. O que faz chorar um homem não é brincadeira nenhuma! Chorar
e rir, por exemplo nesta sátira contra os guerreiros de menor categoria
(coteifes), alguns deles a tremer no meio do Verão, diante dos cavaleiros
mouros de Azamor:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">O genete<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">pois remete<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">seu alfaraz corredor:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">estremece<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">e esmorece<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">o coteife con pavor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">[…]<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Vi coteifes de gran brio<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">eno meio do estio<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">estar tremendo sen frio<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">ant’os mouros d’Azamor;<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">e ia-se deles rio<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">que Auguadalquivir maior<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Tem agilidade e graça, esta cantiga. Mas a que segue tem fúria: Quem
passou a serra e não quis servir a terra, maldito seja! O que levou dinheiros e
não trouxe cavaleiros, maldito seja! O que recebeu grande soldada <u>e nunca
fez cavalgada</u>, se é rico-homem ou há mesnada, maldito seja! Não se trata de
cantiga para rir.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Temos, aqui, uma invectiva, algo da
maldição dum profeta atraiçoado e sozinho. Invectiva cheia de troça, como aliás
noutra cantiga quase logo a seguir: Quem da guerra levou cavaleiros e foi
guardar dinheiros à sua terra; quem não dava pão a comer aos soldados; quem, por
medo, foi para casa beber vinho; quem fugiu da fronteira ou andou a roubar os
mouros e foi para a sua terra roubar cabritos, esse <u>non ven al maio</u>.
Quer dizer, não vem à revista da tropa, ao <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">alardo</span></u>. Iam para a guerra a fingir. E alguns levavam pendão,
mas não levavam caldeira. N<b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"> In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões,
1986.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: small;">Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: small;">JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto
Camões,</span><span style="font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-25562835228685452572024-02-17T12:29:00.002+00:002024-02-17T12:30:02.360+00:00A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí»<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjy_9VexqDcrYACsdn8Ww3nQvQvEVkD_G1SgRjwaDNHeQHyh8p7AiHKSsaSRANfAOxkQXphGcfGDyduwc1IqmPSgy29oLf56fd-Sd7Fg8KAAzjJkJ4Vr369U4Cu_CF7shOhjgsOzRtZPNarwuDkD-WJTrpmik_84pMgi5LDKwUmWh7YjwQqi-yBff1o_fb6/s240/1%20(2).jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="178" data-original-width="240" height="178" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjy_9VexqDcrYACsdn8Ww3nQvQvEVkD_G1SgRjwaDNHeQHyh8p7AiHKSsaSRANfAOxkQXphGcfGDyduwc1IqmPSgy29oLf56fd-Sd7Fg8KAAzjJkJ4Vr369U4Cu_CF7shOhjgsOzRtZPNarwuDkD-WJTrpmik_84pMgi5LDKwUmWh7YjwQqi-yBff1o_fb6/s1600/1%20(2).jpg" width="240" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14pt;">«As louvaminhas e cantares de galhofa recebem honras e poder. Nos
lugares onde nobres ditos se ouviam, vejo eu expulsar gente honrada. Os que
dizem mal, a esses acolhem-nos e louvam-nos com muito amor. Dantes dominava o
saber, tinham formoso lugar a paz e a cortesia, quando a alegria morava no
mundo. Mas ela foi-se embora, dizendo: dia a dia, hei-de ir faltando!</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Chegara a sua hora, fugia para se esconder. Bem mereceu este descordo
as honras de H. R. Lang, em <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">The
descort in old portuguese and spanish Poetry</span>,</u> e não menos de Luciana
Stegagno Picchio, em <u><span style="mso-bidi-font-style: italic;">Martin Moya.<o:p></o:p></span></u></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-size: 14.0pt; mso-bidi-font-style: italic;">Poesie</span></u><i><span style="font-size: 14.0pt;">. </span></i><span style="font-size: 14.0pt;">É a
revolta contra a decadência cultural e contra o triunfo mesquinho dos vícios, à
sombra de mecenas estúpidos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Adiante, num serventes, conta-nos o poeta uma <u>estória</u> que serve
de parábola: Depois de muito andar, entrei num sítio onde nem a lealdade, nem a
boa manha, nem o juízo nem o saber tinham apreço de ninguém. Aí só prosperava
quem gabava tudo o que o senhor da terra fazia, quem o lisonjeava, mesmo que o
visse andar a semear sal. Quem ali chegar, sem mentir nem trocar o mal pelo
bem, livre-se como eu me livrei. Ora, quando eu lá estava, sonhei muitas vezes
que uma cerceta agarrava a poupa pelo penacho da cabeça. A cerceta, que
significa ela? E como foi capaz de prender a poupa?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Quem poderá interpretar-me este sonho? Rodrigues Lapa faz deste sonho
um símbolo de como os grandes poderiam ser dominados pelos pequenos: a certeza,
mais forte, começou por arrancar a crista à pôpa, que acabou por vencê-la.
Teríamos um incentivo à luta dos fracos contra os fortes opressores. Propomos outra
hipótese. A cerceta (ave palmípede, mais pequena do que o pato vulgar, mas,
ainda assim, mais forte do que a poupa) segurou bem firme a <u>cresta</u> da
poupa e dominou-a. E esta última simboliza, talvez, os que se tiram porcamente
das dificuldades. Com efeito, ajeitam-se ao querer dos fortes e estes
prendem-nos pela gloríola da amizade e dos interesses, representados no lindo
penacho de plumas. Por isso aconselha Martin Moxa a que não se <u>desquitem
como eu vi quitar alguen</u>. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a
apologia de dignidade humana.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro
serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora: <u>ca vej’agora
o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí</u>. Que nele haja ou não
objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna
desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de
agora: Nunca vi andar assim o mundo. O outro era diferente e é desse que gosta
o meu coração! Nada me importa morrer, pois em nada acho gosto <u>nen sei amigo
de que diga ben</u>. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo protesto de
inadaptação à vida, na velhice: <u>ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que
nunca oí</u>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: 14.0pt;">É a angústia dum homem que ficou sozinho
no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos tempos novos,
repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo simples camponeses.
Os amigos morreram e os costumes são outros». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Mário Martins, A Sátira na
Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série
Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, 1986.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: small;">Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-size: small;">JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto
Camões,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-22860137835350743352024-02-12T18:31:00.003+00:002024-02-12T18:32:23.570+00:00A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé direito como para o beijar e, dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo…»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOl5pKw53sjYTNIq9BbRxFVKdDLhP3OaVBPi-pY5hRUfc-0q6Uyy6GNg3uY1hXO0HwATX0Gth9t5y81APfCK-EawlO9cKjkjqHyfHgno6C0QXrN8iRs2Z-YwGYhK65cYTmqKHnWHNFCJkT965bSua1uXOyKlxBFLU8pLJEqaQRDlZnC6dZdh2v7SxPIvMU/s157/entradacastelo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="157" data-original-width="140" height="157" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhOl5pKw53sjYTNIq9BbRxFVKdDLhP3OaVBPi-pY5hRUfc-0q6Uyy6GNg3uY1hXO0HwATX0Gth9t5y81APfCK-EawlO9cKjkjqHyfHgno6C0QXrN8iRs2Z-YwGYhK65cYTmqKHnWHNFCJkT965bSua1uXOyKlxBFLU8pLJEqaQRDlZnC6dZdh2v7SxPIvMU/s1600/entradacastelo.jpg" width="140" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A
Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Apresentados
todos e acabados de lhe beijarem as mãos, pareceu-lhes bem que se passassem a
casa de Sebastião Figueira, que era duas ruas acima. Foram, mas pelo muito tráfego,
não lhe pareceu bem a el-rei e pediu-lhes que se reunissem em rua mais escusa,
por via do perigo que todos corriam. Dirigiram-se então a casa de dom João Castro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Aquela
noite saiu o mar Adriático do seu leito e já corria por muitas ruas de Veneza.
Tiveram de fazer o percurso em gôndolas, pelas quais se distribuíram, que eram
muitos. Temos de prevenir frei Estêvão Sampaio, lembrou Nuno Costa sem
embarcar. Ide seguindo, que eu irei chamá-lo ao convento dos beneditinos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Na
gôndola da frente, com el-rei iam dom João e dom Cristóvão. Coisa nunca vista,
senhores!, dizia o gondoleiro. E isto é só o princípio. E olhai o prejuízo que
já está a causar!... Lojas alagadas, andavam os comerciantes, à luz de
archotes, a tentar salvar ricos panos de seda, telas, brocados, peças de cristal
finíssimo, especiarias... Isto é dano para mais de vinte mil cruzados. Podeis acreditar...
Achais que as águas ainda vão subir mais?, perguntou el-rei. Por este andar! Os
meus cabelos brancos não se lembram de cheia assim... E se chega ao tesouro da
basílica? Nem quero pensar...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">É
esta a casa, disse dom João. Quem me houvera de dizer, dizia o gondoleiro,
parando a uma porta, que havia de trazer a barca a navegar por cima de terra!
Tende cuidado ao sair, que a maré já está muito alta. Saltaram à água, que lhes
deu pela cintura, dom João e dom Cristóvão, fizeram Cadeira com os braços para
que el-rei se não molhasse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Arrivederci,
buon uomo</span></u><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">,
disse el-rei. <u>Arrivederci, signor</u>, respondeu o gondoleiro, olhando o homem
que de costas, sentado nos braços dos outros dois, se sumia casa adentro. Estas
palavras e esta voz!, murmurou persignando-se e afastando-se.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Assentou-se
el-rei ao lume e disse: Senhores. Sei muito bem que tendes uma lista dos sinais
naturais do meu corpo, trazida de Lisboa por um dos vossos companheiros.
Significa isso que vos quereis inteirar de ser eu ou não o vosso rei... Senhor,
nós..., ia a entremeter-se dom Cristóvão, mas um gesto de el-rei calou-o: Pois
Nosso Senhor foi servido de mos estampar no corpo, por eles se justificará a
verdade que minhas palavras por si sós não podem autenticar... e,
levantando-se, ante o espanto interdito de todos, despiu seu jubão, sua camisa,
suas meias-calças e mostrou honestamente o seu corpo. <u>Pôs-se de joelhos,
para que vissem que era mais curto da parte esquerda que da direita</u>...
Dai-me a vossa chinela, dom João... Dom João tirou a chinela do pé e
entregou-lha. <u>Meteu-a el-rei debaixo do joelho esquerdo e logo o corpo se
lhe endireitou</u>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Fez
menção de tirar os cueiros que lhe tapavam as vergonhas, para que nada do seu
corpo ficasse por vistoriar, mas não lho permitiu o respeito que os presentes
tinham à sua qualidade real. De dor e compaixão, alguns não continham algum
soluço abafado. Não nos tenhais, meu senhor, disse dom João Castro com a voz
embargada, por tão desconfiados. Nós estamos crentes da verdade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Cristo,
respondeu el-rei, para inteirar a um só homem, descobriu-se e levou-o a meter a
mão no lado chagado do seu peito. Então eu, um pecador, não hei-de dar
satisfação de mim a tantos de vós?... e, chamando um por um, tomava-lhes das mãos
e <u>levava-os a palpar-lhe as feridas recebidas na batalha: ... aqui... isso
sim... uma pelourada no bucho do braço esquerdo... não, não, não fiquei
aleijado... aqui na sobrancelha direita, de um golpe de cimitarra... aí, aí,
sobre a cabeça, da parte esquerda, de uma porrada com maça de armas que fez
amolgadela no casco... e a mão direita maior que a esquerda... os dedos longos,
unhas compridas... e o braço direito mais comprido que o esquerdo... e o corpo,
dos ombros à cintura, dobrado e curto, e da cintura aos joelhos alongado... e a
perna direita mais que a esquerda já sabeis... vede aí, no ombro esquerdo,
junto ao fio do lombo, um sinal... pardo, com cabelos, como um vintém... e no
direito, ao pé do pescoço... outro sinal, preto, como uma unha... e lentilhas
nas mãos e sardas... não se enxergam bem... e as pernas encurvadas...<o:p></o:p></u></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Tornou-se
el-rei ao lume e assentou-se entre aqueles seus portugueses radiantes, de
sorriso aberto. Dom João Castro ajoelhou-se-lhe em frente e descalçou-lhe o pé
direito como para o beijar e, <u>dissimuladamente, correu-lhe com a mão pelos dedos
e logo achou o calo que buscava, tão grande que parecia um sexto dedo</u>,
enquanto ia falando: Para quem tantos anos já não falava português, pronunciais
bem, meu senhor, embora com algum acento estranho, palavras que os estrangeiros
não conseguem pronunciar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Esforço-me
por recuperar a boa fala... Mas vejo que <u>no meu pé encontrastes o meu calo</u>.
Tendes ainda dúvida?... Oh, meu senhor! ... olhai aqui, dom João, e abria a
boca quanto podia, na queixada direita... dom João espreitava: <u>faltava a el-rei
um queixal</u>». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.</i></b><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de Difel/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Fernando Campos, História, Literatura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-735913877197015752024-02-12T17:48:00.000+00:002024-02-12T17:49:10.897+00:00Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… sem saber que com esse acto fundava uma estirpe nova e endiabrada, os Palma Lobo, brancos com sangue negro, marcados para sempre por enormes pénis, que ao longo das suas existências lhes iriam dar tanto profundas alegrias…»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOJO0sMKzdibL0bTMBvSkRaHjYvwsII_BuqYlMG_jsvDKRcs5_N8kltRhrvTwZcbc-iK5ZBXa6SwxuQFikE7SCEC8IhlQUh98CQlpxITx07pNk6Lsi9HxX_D3Pof1C_4_QjC6JgkcZwoM4SUbSlBj53O9G0iX-hJ6grKpeq8_tAxU2PDM2d-OVVOOoJnwW/s176/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="176" data-original-width="120" height="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOJO0sMKzdibL0bTMBvSkRaHjYvwsII_BuqYlMG_jsvDKRcs5_N8kltRhrvTwZcbc-iK5ZBXa6SwxuQFikE7SCEC8IhlQUh98CQlpxITx07pNk6Lsi9HxX_D3Pof1C_4_QjC6JgkcZwoM4SUbSlBj53O9G0iX-hJ6grKpeq8_tAxU2PDM2d-OVVOOoJnwW/s1600/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" width="120" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Ao terminar a leitura deste
caso, julguei que o contributo do médico inglês para a minha investigação
terminara ali. Engano meu. O caso seguinte era a descrição do recém-nascido, em
especial dos seus inesperados atributos físicos. Roberto Antunes, o primeiro homem
da estirpe dos Palma Lobo, era dotado de um pirilau enorme. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Há mais de vinte anos que
conhecia Salvador, e já o vira nu em muitas ocasiões, desde banhos de mar a
aventuras de grupo com mulheres. Portanto, sabia que Salvador era um privilegiado
da natureza. Julgo mesmo que a origem da sua felicidade era uma alegria primária
e básica que lhe vinha do facto de ter o sexo poderoso e generoso. Ao longo da
vida, desde a adolescência, Salvador aproveitara a vantagem que tinha sobre os
outros homens. O seu pénis era motivo de ciumeiras e zangas entre raparigas.
Houve épocas em que elas faziam fila para poderem tocar naquele magnífico
exemplar, naquele totem da virilidade. E ele satisfazia-lhes a curiosidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Sim, eu sabia disso. O que eu não
sabia era que esse património era hereditário, um sinal de família, um dote do
sangue e da genética. Só ao ler o relato do dr. Charles Scholes, descrevendo o
enorme e escuro membro de um recém-nascido que viera ao mundo em 1881, é que
compreendi a génese do orgulho sexual do meu amigo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O médico inglês, que seguira a
saúde da criança até ela ter três anos, idade com que foi enviada para Portugal
para casa de uma avó, ficara impressionado pelo tamanho invulgar do músculo
masculino do pequenino Roberto Antunes Palma Lobo. Descrevia-o como uma
anormalidade numa criança tão jovem. E acrescentava que dispunha de fáceis
reflexos, ficando erecto com rapidez.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Contudo, as novidades não se limitavam
a esta observação. O dr. Charles Scholes reconhecia que fora devido a este
inesperado facto que se esclarecera a misteriosa gravidez de Efigénia. Quando,
umas semanas depois da morte da mãe, voltara à casa para examinar a saúde do
bebé, o inglês ouvira uma criada negra, que amamentava o menino, comentar que com
um pénis daquele tamanho ele só podia ser obra do Kalanga, um criado que
trabalhava nos jardins da casa. O rapaz, um negro de vinte e tal anos, era alto
e viçoso, falava mal o português e começou por negar ao médico que tivesse
cometido qualquer pouca-vergonha com dona Efigénia, que Deus a tinha. Além
disso, o bebé era branco como a mãe, e, portanto, não podia ser filho de um
negro. Quem não ficou satisfeita com esta explicação foi a velha criada, que espremeu
o Kalanga até ele acabar por reconhecer o que fizera a Efigénia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Na noite da trágica morte de
Roberto Carvalho Lopo, quando ele chegara gravemente ferido a casa, Efigénia
passara várias horas desmaiada, devido à comoção. Ficara deitada na cama do seu
quarto, longe da sala, onde estavam os outros criados. A janela do quarto
estava aberta, pois fazia muito calor nessa noite. O Kalanga vira a patroa
deitada, seminua e sem sentidos, e subira-lhe uma urgência pelo corpo. Entrou
no quarto e, de forma apressada, baixou as calças e entrou dentro da patroa
desmaiada, que nem se mexeu. O acto foi rápido, mas pelos vistos suficiente
para deixar uma semente nas entranhas de Efigénia. O mistério da sua gravidez
impossível estava resolvido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Afinal, Efigénia não era uma
adúltera aldrabona, como o outro livro a descrevia, e fora mesmo violada,
engravidando enquanto estava desmaiada, e morrendo sem saber quem era o pai da
criança. Porém, talvez o dr. Scholes não tivesse contado oralmente a história
da mesma forma que a escrevera, pois o episódio comentava-se anos mais tarde
como uma anedota, sendo a senhora descrita na sátira local como a <u>Desmaiada</u>.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Pouco mais havia a fazer em
Moçambique. Aproveitei os últimos dias na cidade para visitar o cemitério onde
estavam enterrados Efigénia Palma e Roberto Lobo, lado a lado, como marido e
mulher que sempre foram em vida. Tirei umas fotografias à campa para juntar ao
meu trabalho e, na tarde desse mesmo dia, ainda consegui visitar a casa
apalaçada onde os trisavôs de Salvador tinham vivido e morrido, e cujos
proprietários eram agora uns sul-africanos. Fotografei o quarto de Efigénia, que
dava para o jardim, tendo em primeiro plano a grande janela por onde entrara o
furtivo Kalanga, para possuir em segredo uma mulher desmaiada, sem saber que
com esse acto fundava uma estirpe nova e endiabrada, os Palma Lobo, brancos com
sangue negro, marcados para sempre por enormes pénis, que ao longo das suas
existências lhes iriam dar tanto profundas alegrias como cavadas tristezas...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">São agora onze da noite neste
hospital de Lisboa, onde aguardo com tranquilidade a chegada do fim da vida do
meu melhor amigo Salvador. Está muito calor e não sei mais quanto tempo vou ter
de esperar. As enfermeiras de batas verdes vão passando por mim e dizem: Não há
novidades... Nada? Nada». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de
Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de OficinadoLivro/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Domingos Amaral,
Literatura, Amor,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-43734937102947199052024-02-12T13:24:00.003+00:002024-02-12T13:24:51.486+00:00Poesia. Dia do Mar. Sophia Mello B. Andresen. «Nasceram, como um fruto, da paisagem, a brisa dos jardins, a luz do mar, o branco das espumas e o luar»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmvfvTNW2FYri70_uW9q-fGHsvst2U_64dIem9SoiIk0pNv27jyQDDkDeOc0Jj3yI8ZBqVXIMCnQKovsI4rcW_tc5SYGQzsQTy2GwXetip_9thVkIS2w7k_S_FPcAtD-RO1Sr7l29Aaw4tA7LujqIDbrj68nGafzEj_KP4pMUAekABT-gxULCOtwakj49P/s335/04_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="335" data-original-width="260" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmvfvTNW2FYri70_uW9q-fGHsvst2U_64dIem9SoiIk0pNv27jyQDDkDeOc0Jj3yI8ZBqVXIMCnQKovsI4rcW_tc5SYGQzsQTy2GwXetip_9thVkIS2w7k_S_FPcAtD-RO1Sr7l29Aaw4tA7LujqIDbrj68nGafzEj_KP4pMUAekABT-gxULCOtwakj49P/s320/04_.jpg" width="248" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Dionysos</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Entre
as árvores escuras e caladas<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O céu
vermelho arde,<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">E nascido
da secreta cor da tarde<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Dionysos
passa na poeira das estradas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A abundância
dos frutos de Setembro<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Habita
a sua face e cada membro<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Tem
essa perfeição vermelha e plena,<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Essa
glória ardente e serena<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Que
distinguia os deuses dos mortais».<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Os
Deuses<o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Nasceram,
como um fruto, da paisagem,<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A brisa
dos jardins, a luz do mar,<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O branco
das espumas e o luar<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Extasiados
estão na sua imagem».<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">In
Sophia Mello Breyner Andresen, Dia do Mar, Editora Caminho, 2009, ISBN<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>978-972-211-586-5-<o:p></o:p></span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de ECaminho/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Sophia Mello B. Andresen, Poesia, Cultura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-15577395981688584902024-02-12T13:03:00.005+00:002024-02-12T13:04:20.166+00:00Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar grávida do marido há mais tempo do que pensava»<p><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small; text-align: justify;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpmhEuyZCn-bWcwf1MV8OcyZRgCUxG3QXG8orDHJ493es-uuY6KsgzT_Vey4DXBWxdsrmjCycjo9G555mZbpfXzJK8D1BdIrRt7UOXTUr1vy9F7AQtg2LF7jUWGw6Yw0SzmSdSFyUcrFx_lvKomWGSxKm5Ai1uVYHQ5PBay363lEeEiQOxWoLv34kDW6Jq/s198/Amor_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="198" data-original-width="160" height="198" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhpmhEuyZCn-bWcwf1MV8OcyZRgCUxG3QXG8orDHJ493es-uuY6KsgzT_Vey4DXBWxdsrmjCycjo9G555mZbpfXzJK8D1BdIrRt7UOXTUr1vy9F7AQtg2LF7jUWGw6Yw0SzmSdSFyUcrFx_lvKomWGSxKm5Ai1uVYHQ5PBay363lEeEiQOxWoLv34kDW6Jq/s1600/Amor_.jpg" width="160" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Reflecti alguns minutos sobre o
que lera, e continuei depois à procura de outras referências, mas naquele livro
não encontrei mais. Abri então o segundo livro, uma descrição sobre a colónia
portuguesa que habitava a capital moçambicana nos últimos trinta anos do século
XIX. O português era um pouco gongórico e nem sempre muito objectivo, mas o
relato parecia-me fidedigno. No entanto, ao longo das primeiras cento e
cinquenta páginas não encontrei nenhuma referência útil. Até que,
inesperadamente, o autor se refere jocosamente à história de uma tal Desmaiada,
que morrera ao dar à luz um filho, e que jurava não saber quem era o pai da
criança.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Seria Efigénia a Desmaiada?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Umas páginas à frente, o cronista
voltava a falar na Desmaiada, desta vez no âmbito de um capítulo sobre
miscigenação com os locais. Segundo ele, uma senhora de nome Efigénia Palma,
casada com um pirata português que morrera assassinado, tentara convencer a colónia
de que não sabia de quem engravidara! O relato prosseguia, recordando que o
marido da senhora em causa morrera mais de nove meses antes do nascimento do
filho, e que ela sempre dissera que desmaiara na noite da morte do marido, e
que alguém, misteriosamente, a tinha engravidado, aproveitando-se do facto de
ela estar desfalecida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Como era óbvio, o cronista não
acreditava naquela versão, e acrescentava que, nove meses mais tarde, tornou-se
evidente que o pai dela era um criado de Efigénia. A criança tinha marcas de
raça negra, em locais pouco próprios, como reparara o médico, o sr. dr. Charles
Scholes. Fora ele quem, depois de interrogar os criados, descobrira ter sido um
deles, um tal Kalanga, que engravidara a senhora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Fiquei boquiaberto com a
descrição. Pelos vistos, aquele episódio era motivo de chacota na época, sendo
apresentado como exemplo de uma trapaça feminina. Efigénia era descrita como
uma mistificadora inventiva, que tentara esconder as suas relações adúlteras com
um obscuro empregado negro. O único pormenor que não ficava esclarecido eram as
<u>marcas evidentes de raça negra, em locais pouco próprios</u>. De que falava
o cronista? Nas imagens que vira de Roberto Antunes não existiam essas
evidências, e obviamente que aquela referência a locais pouco próprios era
sugestiva de que se tratava de marcas que provavelmente não seriam captadas pela
objectiva de nenhum fotógrafo...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Como desvendar esta nova questão?
Não havia mais nada nos dois livros que me pudesse elucidar sobre pormenores
desta natureza. No dia seguinte, devolvi ao professor Chivunga os dois
exemplares emprestados. Agradeci-lhe a ajuda, e fiz um pequeno resumo das
descobertas. Ao ouvir o nome do dr. Charles Scholes, o historiador franziu a
testa: Um inglês, não era? Dirigiu-se ao seu computador, enquanto ia dizendo: Esse
nome não me soa estranho. Deixe-me aqui fazer uma pequena busca... Sentou-se e
teclou o nome do inglês. Esperei até que ele exclamou: Cá está! O que
descobriu? Há um livro escrito pelo próprio médico. São os relatos dos casos
que tratou enquanto viveu em Moçambique. É em inglês, mas há um exemplar na
Biblioteca Nacional. Sabe onde é?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Na manhã do dia seguinte,
sentei-me na grande sala da biblioteca, com o livro do médico inglês aberto à
minha frente. Era um inventário dos principais casos que tinha tratado durante
a sua estada em Lourenço Marques, entre 1875 e 1885. Listava uma profusão de doenças
e centenas de pacientes. Malárias, cóleras, sífilis, tuberculoses e muitas
outras mazelas eram descritas com algum pormenor, bem como partos, apendicites
ou outras operações.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A dada altura, o dr. Charles
Scholes narra a morte de Roberto Carvalho Lobo, confirmando que ele sucumbira
na sequência dos ferimentos de balas, num pulmão e no abdómen, perdendo muito
sangue. Quando chegara a sua casa, já nada havia a fazer pelo pobre homem, a
não ser aguardar a sua morte. Numa curta nota final, o dr. Scholes referia que
uma comoção muito forte se apoderara da esposa, Efigénia, tendo ela desfalecido
e perdido os sentidos durante toda a noite.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Uns meses depois, uma nova
entrada no livro dedicava-se a Efigénia. O médico, cuja escrita espelhava a
surpresa que o episódio lhe deixara no espírito, fora chamado de novo à casa da
senhora, para certificar a sua inesperada gravidez. Efigénia, que andava de
luto, confessara-lhe que se tratava de uma gravidez impossível, pois ela não
dormira com o marido nos últimos meses antes da sua morte. Portanto, não podia
estar grávida! Embora espantado com aquele relato, o dr. Scholes confessava que
Efigénia lhe parecera honesta e profundamente perturbada por aquele estranho
facto, quase se comparando a Nossa Senhora, que concebera por milagre. Pedira-lhe,
aliás, o maior segredo, e parecia torturada de angústia, à beira de perder a
razão. Como explicação, o dr. Scholes avançava com a hipótese de Efigénia estar
grávida do marido há mais tempo do que pensava.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Trinta páginas à frente, o dr.
Scholes fazia o relato do parto da criança. Notando que fora uma gravidez
complexa, que enfraquecera muito uma mãe cujo espírito já estava debilitado
pela angústia de não compreender como concebera, o dr. Scholes relembrava a extrema
complexidade do nascimento da criança, que demorara muito tempo a <u>dar a
volta</u> dentro da barriga da mãe, provocando a esta várias hemorragias e
muita dor. Para mais, nascera com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, o que
quase a asfixiara e muito contribuíra para o enfraquecimento da mãe. Efigénia
foi vítima de inúmeras infecções e acabaria por falecer apenas vinte e quatro
horas depois do nascimento do filho, para grande desalento do dr. Scholes». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In
Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de OficinadoLivro/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Domingos Amaral,
Literatura, Amor,</span><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"> </span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-4614001478226127122024-02-12T11:47:00.003+00:002024-02-12T11:48:27.149+00:00Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «Próximo do Natal de 1880, o negociante zangou-se com os seus associados piratas, pois estes andavam-lhe a destruir os lucros, atacando os seus barcos em alto mar»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmhHm1sZDU2tKUKcn8md00XmT5yIMnkkFANs02KSoLo-j0mep9Yv0xbcJuAFCozbaEco2XT_CvI37HjtMGJlIdTWZGbu8mZTuxu3wpIGRNKvZaf9WFxDB2CEpC12pAIopGJqYLsTaNbQ0JxAopyiEsCe3XfWX8wvKRAWifwrY9E5ARWrhI7gTycM9tzr6r/s198/Amor_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="198" data-original-width="160" height="198" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhmhHm1sZDU2tKUKcn8md00XmT5yIMnkkFANs02KSoLo-j0mep9Yv0xbcJuAFCozbaEco2XT_CvI37HjtMGJlIdTWZGbu8mZTuxu3wpIGRNKvZaf9WFxDB2CEpC12pAIopGJqYLsTaNbQ0JxAopyiEsCe3XfWX8wvKRAWifwrY9E5ARWrhI7gTycM9tzr6r/s1600/Amor_.jpg" width="160" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Recordei as palavras de Salvador
naquela tarde em Grândola: Há quem duvide de que o meu trisavô fosse o pai da
criança... Provavelmente, a suspeita nascera devido a este estranho registo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Pedi a dona Fátima que me
fotocopiasse as três certidões, não sem antes reparar num pormenor. Nos três
registos, a testemunha era a mesma, um tal dr. Charles Scholes, decerto o
médico que assistira àquelas situações extremas. Era costume os registos serem
feitos por um médico naqueles tempos?, perguntei a dona Fátima. Não sei, meu
filho.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Contei-lhe a história e ela
sorriu e fez um ar matreiro. Debruçou-se no balcão, rechonchuda e alegre,
aproximou a sua cara da minha e disse-me, baixando a voz, como se me fizesse
uma confidência secreta: Sabe, meu filho, não eram só as pretas que
engravidavam dos brancos, às vezes as portuguesas também tinham filhos dos
pretos... Para mais, o marido morrera... Ergueu as sobrancelhas: Podia ser um
empregado da casa. Acha, perguntei. O que lhe valeu foi ter morrido ao dar à
luz, comentou ela. - Caso contrário, teria sido uma escandaleira...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Dona Fátima deu uma gargalhada
divertida e lá foi, bamboleando as suas formas redondas, até à máquina
fotocopiadora. Quando regressou, entregou-me as fotocópias e desejou-me sorte. Se
precisar de alguma coisa mais, meu filho, volte cá, que eu estou sempre às
ordens!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Saí do edifício excitado. A
acreditar no registo oficial, o primeiro dos Palma Lobo não era na verdade Lobo,
pois não era filho do marido de Efigénia, mas sim de um negro, o que fazia
nascer naquela família uma linhagem bastarda e, tal como Salvador insinuara,
vagamente pecaminosa... A lenda dos Palma Lobo arrancava com um episódio
arrasador, espectacularmente picante! Apeteceu-me de imediato telefonar para
Portugal, para relatar ao meu amigo as novidades, mas ele pedira-me que não
actuasse assim, e portanto fui nessa noite sair em Maputo, sozinho e
bem-disposto, com a sensação de que estava na posse de um verdadeiro segredo de
família. Mal eu sabia que era apenas o primeiro de muitos...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Quem seria o misterioso Kalanga
que colocara a sua semente no ventre da trisavó Efigénia? Passei a noite às
voltas na cama, a pensar neste intruso. Nas cartas do bisavô Roberto, que lera
em Lisboa, não existiam referências a nenhum Kalanga. E, nas fotografias que
vira, não notara nas suas feições nenhum vestígio da raça do seu suposto pai.
Era moreno, mas não tinha a tez especialmente escura, nem traços fisionómicos
que indicassem ser filho de um negro. Seria possível que nunca se tivesse
sabido quem era o seu verdadeiro pai? Mas, então, como explicar a vaga suspeita
de Salvador? Quem descobrira o <u>pecado original</u> dos Palma Lobo?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A meio da manhã do dia seguinte,
recebi um telefonema do professor Agostinho Chivunga. O historiador
explicou-me, na sua voz forte e pausada, que descobrira alguns livros que me
podiam interessar e sugeriu que passasse pelo seu gabinete da universidade a
meio da tarde. Assim fiz. Quando lá cheguei, aquele homem enorme entregou-me
dois antigos livros. O primeiro intitulava-se <u>Relato das Ocorrências
Marítimas nas Costas de Moçambique, 1860-1890</u>, e o segundo tinha como
título <u>A Vida Social e Política na Colónia de Moçambique entre 1870 e 1900</u>.
Agostinho Chivunga explicou que ambos os autores eram portugueses que tinham
vivido em Lourenço Marques na época e, portanto, os relatos deviam ser
fidedignos. E acrescentou: Penso que nos dois casos há algumas pequenas
referências à família Palma Lobo. Regressei ao hotel e deitei-me na cama do meu
quarto, decidido a devorar os dois manuscritos. Comecei pelas ocorrências
marítimas. Tratava-se de uma descrição do comércio nas costas da colónia, com
referências às embarcações, à actuação dos barcos de guerra dos variados
países, e também aos piratas. Pude confirmar que a sua presença era habitual, e
que produziam elevados estragos à navegação. A dada altura, o meu coração
agitou-se quando se me deparou uma referência a um contrabandista famoso
chamado... Roberto Carvalho Lobo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O trisavô de Salvador era um
mercador que vivia em Moçambique, por volta de 1880. Negociava com os
pescadores, com as tribos da costa, com os alemães da Tanzânia e os bóeres da
África do Sul. Numa prosa nada abonatória, o autor do livro relatava que
Roberto se metia em trafulhices e escaramuças e era muito dado à bebida. Com
pouco mais de trinta anos casara com uma portuguesa nascida na Beira, chamada
Efigénia, de quem não tinha filhos. Viviam em Lourenço Marques, mas Roberto
andava quase sempre no mar, nos seus <u>comércios</u>. Próximo do Natal de
1880, o negociante zangou-se com os seus associados piratas, pois estes
andavam-lhe a destruir os lucros, atacando os seus barcos em alto mar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Já em 1881, o conflito agrava-se.
Certo dia, Roberto Carvalho Lobo sai de casa armado, acompanhado por um grupo
de colaboradores, aparentemente para desafiar os piratas. Três dias mais tarde,
de noite, regressou a casa ferido e a sangrar, em grande sofrimento. Segundo o
livro, o médico foi chamado de urgência, mas quando chegou já eram poucas as
esperanças de salvar Roberto. Tinha os pulmões perfurados por balas e morreu às
primeiras horas da madrugada do dia 28 de Janeiro, pondo fim a uma proveitosa
carreira de contrabandista, pois, como o cronista relatava, vivia num belo
palacete na zona sul da cidade, comprado com os ganhos dos seus lucrativos
comércios». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de OficinadoLivro/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Domingos Amaral,
Literatura, Amor,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-15984919254246506532024-02-11T18:26:00.004+00:002024-02-11T18:27:35.810+00:00Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… a indicação era a de que o seu pai biológico não era Roberto Carvalho Lobo, mas sim um tal Kalanga, certamente um africano e personagem de quem nunca ouvira falar»<p><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small; text-align: justify;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhuINfSHVLGnlf4h-6_7bxgjNYAPmXqQJ1VeFkm3P4d1mqAbjPfJwnI_l97Bjzw2FnHwqlL4ojmuaQZux13xRiksXTM7Rj0Mm1n2MeWdET-Rw4SWtfETcpKohp6CTCGwNufkazEyNPiPla5p0xYduDiAtgMeJB-suMdHIOXbMgw8WvUUoYT6jxpaF3XmqFZ/s176/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="176" data-original-width="120" height="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhuINfSHVLGnlf4h-6_7bxgjNYAPmXqQJ1VeFkm3P4d1mqAbjPfJwnI_l97Bjzw2FnHwqlL4ojmuaQZux13xRiksXTM7Rj0Mm1n2MeWdET-Rw4SWtfETcpKohp6CTCGwNufkazEyNPiPla5p0xYduDiAtgMeJB-suMdHIOXbMgw8WvUUoYT6jxpaF3XmqFZ/s1600/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" width="120" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«Isso é muito interessante. Ao
longo do século XIX, a costa de Moçambique era regularmente atacada por
piratas. Tinham o seu covil na ilha de Madagáscar, e actuavam em todo o oceano
Índico, desde a Etiópia até à África do Sul. Eram de muitas nacionalidades.
Havia ingleses, franceses, holandeses, espanhóis, portugueses, mas também
muitos negros, indianos e até chineses e malaios. A maior parte eram bandidos
fugidos do seu país natal, e viviam em comunidades sem leis nem regras.
Atacavam as costas de África e os barcos de mercadorias, pilhando e saqueando,
para terror das populações e dos viajantes. A marinha inglesa, a alemã e até um
pouco a portuguesa tentavam dar-lhes luta, mas aquelas paragens não eram
prioritárias para a defesa de nenhum império, e só os abalos no comércio
marítimo é que provocavam alguma preocupação nos governos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">É perfeitamente possível, se ele
fosse um mercador, que tivesse entrado em confrontos com os piratas... Subitamente,
levantou-se e caminhou na direcção de uma estante. Há qualquer coisa escrita
sobre os piratas... Vi-o examinar as lombadas de alguns livros, mas depois
parou e olhou para o relógio. Vou ter de procurar à tarde, agora não tenho
muito tempo, tenho um almoço marcado...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Prometeu que me falaria, mas saí
da universidade sem entusiasmo. Não avançara nas minhas buscas. Regressei ao
hotel para almoçar e, depois de mais um banho refrescante na piscina, apanhei
um táxi para a Conservatória Central de Maputo, onde iria procurar as certidões
de nascimento do bisavô de Salvador, bem como as certidões de óbito da sua trisavó,
Efigénia Antunes Palma, e do seu trisavô, Roberto Carvalho Lobo, todas datadas
de 1881.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A Conservatória ficava num
edifício cinzento e sombrio, com uma arquitectura de linhas planas, em estilo
soviético, influenciado pela ligação do regime de Samora Machel ao comunismo
depois da independência de 1974. Nas paredes exteriores ainda se podiam ver alguns
buracos de balas, vestígios da guerra civil que assolara o país nas décadas de
80 e 90, e que colocara frente a frente a Frelimo e a Renamo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Havia pouca gente nos corredores,
e descobri a sala dos registos através dos sinais nas paredes. Entrei e
dirigi-me ao balcão, onde algumas pessoas esperavam para ser atendidas. Quando
chegou a minha vez, uma funcionária negríssima, muito gorda e muito simpática, informou-me
que se chamava Fátima.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">O que você deseja, meu filho,
perguntou. Anotou num pequeno papel branco o ano de 1881 e sumiu-se por uma
porta, não sem antes me dizer: Espere um pouco, meu filho. Quinze minutos
depois, dona Fátima voltou carregada com dois velhos livros de capa castanha,
que cheiravam a mofo e estavam cobertos de pó. Meu filho, há muitos anos que
ninguém lhes tocava. Por sorte não se perderam com a guerra. Ainda bem...<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Abriu o primeiro livro à minha
frente. Agora, meu filho, você procura. Depois, se precisar, eu tiro umas
fotocópias... Dona Fátima afastou-se e foi atender outro homem, a quem também
chamou <u>meu filho</u>. Comecei a examinar o livro das certidões de óbito de
1881. A primeira a aparecer foi naturalmente a do trisavô de Salvador. Roberto
Carvalho Lobo falecera a 28 de Janeiro de 1881, e a causa do óbito assinalada
era <u>ferimento mortal com arma de fogo</u>. Nada era dito sobre as restantes
circunstâncias da morte.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Marquei a página e prossegui
folheando o livro. No dia 31 de Outubro, nove meses e três dias após o óbito do
marido, Efigénia morria também em casa, devido a <u>complicações depois do
parto de um nascituro do sexo masculino</u>. Nada de novo, portanto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Passei ao segundo livro, o dos
nascimentos de 1881, e confirmei que, no mesmo dia em que a mãe morrera, 31 de
Outubro de 1881, nascera o bisavô Roberto Antunes Palma Lobo, o primeiro onde
os dois nomes, Palma e Lobo, se haviam juntado. Só que, se quanto ao nome da
mãe não havia novidade, era filho de Efigénia Antunes Palma, quanto ao nome do pai
havia uma surpresa. O que lá estava escrito era Kalanga. Assim, sem mais nem
menos. Embora o rapaz tivesse sido registado com o novo nome de família, Palma
Lobo, a indicação era a de que o seu pai biológico não era Roberto Carvalho
Lobo, mas sim um tal Kalanga, certamente um africano e personagem de quem nunca
ouvira falar». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN
978-972-461-802-9.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de OficinadoLivro/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Domingos Amaral,
Literatura, Amor,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-30583322461122719872024-02-11T17:19:00.003+00:002024-02-11T17:20:40.094+00:00Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «Só quando referi que o trisavô de Salvador tinha sido morto por piratas é que ele se alvoroçou: Piratas? Sim, piratas. Foi assassinado»<p><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small; text-align: justify;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_I-DfLUYubNTLQ5bysS-mA91A_whyAlf9WsIMqYg2CKgS5R2nXK-iVac1jAuDNm9yYIoX8DzhIloJAeMpuJ-Q1jYM9NrNdfQWqFtt89ze_kgx9ZIF2EPJ8A6nES3YTPyEqRd9wNQvXA2viE-tqUgF2jaGq7ioOLU0FSf-wVYjVe0kq5zkdgtY74b0n4qW/s176/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="176" data-original-width="120" height="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_I-DfLUYubNTLQ5bysS-mA91A_whyAlf9WsIMqYg2CKgS5R2nXK-iVac1jAuDNm9yYIoX8DzhIloJAeMpuJ-Q1jYM9NrNdfQWqFtt89ze_kgx9ZIF2EPJ8A6nES3YTPyEqRd9wNQvXA2viE-tqUgF2jaGq7ioOLU0FSf-wVYjVe0kq5zkdgtY74b0n4qW/s1600/Ja-Ninguem-Morre-de-Amor_jdact.jpg" width="120" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Roberto
Antunes Palma Lobo, 1881-1916</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«O meu amigo pousou as
fotografias na mesa e recomeçou a abrir caixotes. Passámos as três horas
seguintes separando o que interessava e me seria útil. Fizemos três montinhos.
Um para o bisavô, outro para o avô e outro para o pai de Salvador. Em cada um
havia fotografias, livros de despesas do monte, cartas recebidas, agendas de
vários anos, postais, escrituras. Os montinhos mais pequenos eram o do pai de
Salvador, pois vivera pouco tempo no monte, e o do bisavô. O do avô Álvaro era
enorme.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Do meu pai, há mais coisas em
Lisboa. Amanhã vamos lá. Sugeri que podíamos começar por ler as cartas
recebidas pelo bisavô, mas Salvador foi peremptório na negação. Não queria que
eu estivesse com ele enquanto fazia o meu trabalho. Vais ler e investigar e só
quando acabares é que falamos. É assim que tem de ser.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Regressei nesse dia a Lisboa com
a mala cheia de caixotes velhos, carregado de memórias dos Palma Lobo.
Sentia-me como uma espécie de arqueólogo de papel. Nessa mesma noite, li com
curiosidade as cartas que o bisavô Roberto tinha recebido. A maioria eram de
pêsames, a lamentar a morte da mulher, Josefina. Havia uma ou outra, provavelmente
de comparsas políticos, que referiam a esperança de que, estando viúvo, ele regressasse
a Lisboa e às lides da República.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Contudo, não existiam naquelas
missivas informações relevantes sobre o nascimento do primeiro Palma Lobo.
Teria mesmo de viajar até Moçambique.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Os oito dias que passei em Maputo
trouxeram descobertas surpreendentes. Instalei-me no Hotel Polana e apanhei bom
tempo, conseguindo mesmo dar uns mergulhos na piscina todas as tardes, enquanto
bebia um gin tónico. Não tinha as expectativas elevadas quanto aos resultados
da minha investigação histórica. Afinal, o nascimento de Roberto Antunes Palma Lobo
acontecera no longínquo ano de 1881, e era improvável que conseguisse encontrar
registos dessa época. Talvez as certidões de nascimento e de óbito dos seus
pais, eventualmente as campas no cemitério, mas esperava pouco mais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Para compreender Moçambique no
final do século XIX, decidi procurar um historiador que me pudesse descrever os
hábitos da colónia portuguesa, e telefonei para a Faculdade de História da
Universidade local. Sugeriram-me que falasse com o professor Agostinho Chivunga
e passaram-me a chamada. Uma voz grossa apareceu do outro lado da linha.
Cordial, o professor acedeu a receber-me no dia seguinte, ao final da manhã, no
seu gabinete. Era um homem muito alto e esguio, talvez com cerca de um metro e
noventa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Levantou-se para me cumprimentar
e parecia desengonçado, com dificuldade em controlar os seus longos braços e
pernas, como se fosse uma marioneta. Devia ter mais de sessenta anos e era
quase careca, apenas com alguns vestígios de cabelo grisalho nas patilhas e na
nuca.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Expliquei o que me trazia ali.
Simpático, o professor Agostinho Chivunga fez-me um resumo da situação política
da colónia e da sua economia incipiente e primária na segunda metade do século
XIX. Quando lhe perguntei onde poderia encontrar referências sobre os Palma
Lobo, confessou que o nome não lhe dizia nada. Não haviam sido pessoas famosas
na época, nem tinham ocupado cargos na administração portuguesa da colónia.
Sugeriu que eu procurasse na Conservatória Central de Maputo, e prometeu fazer
uma pequena busca na biblioteca.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Só quando referi que o trisavô de
Salvador tinha sido morto por piratas é que ele se alvoroçou: Piratas? Sim,
piratas. Foi assassinado». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de
Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.<o:p></o:p></i></b></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia de OficinadoLivro/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT, Domingos Amaral,
Literatura, Amor,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-589055325021188810.post-34712995001809114892024-02-10T19:00:00.003+00:002024-02-10T19:01:19.618+00:00A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «É o senhor dom Cristóvão, filho segundo de vosso primo o senhor dom António I, Prior do Crato, que Deus tenha em sua glória. Olhou-o atentamente: Meu primo dom Cristóvão»<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEijipwOS7__hnxYIe32U1OZOzBuTKKOl3bDIfxRBJtGTwgjt2L5QsZ87Ff683lZFwYdGarmlO5mcuVTQ-i-QRiR4n36hrsYV9aLnL6JgNQChxSSK68an8Pbjx40-oRTTEyq_ej-bIJcVZJFd6ZXbFY73tbFTA1ReC-9X2ESLiVj9t4v3wqE4FhNvK1ELfyk/s205/!%20pontedossuspiros_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="205" data-original-width="140" height="205" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEijipwOS7__hnxYIe32U1OZOzBuTKKOl3bDIfxRBJtGTwgjt2L5QsZ87Ff683lZFwYdGarmlO5mcuVTQ-i-QRiR4n36hrsYV9aLnL6JgNQChxSSK68an8Pbjx40-oRTTEyq_ej-bIJcVZJFd6ZXbFY73tbFTA1ReC-9X2ESLiVj9t4v3wqE4FhNvK1ELfyk/s1600/!%20pontedossuspiros_.jpg" width="140" /></a></div><div style="text-align: center;">jdact</div><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">A
Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo</span></i></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">«A
Deus graças, que a tarde foi de festa. A música que não se fez ouvir na capela
cantaram-na os anjos nos corações dos noivos. Umas boas centenas de cruzados
farão a alegria da boda, doces e vinho no himeneu. Que sejam felizes... Vê se dormes...
As chaves na porta? A estas horas?... A luz das tochas iluminou a quadra. O
prisioneiro levantou-se, entravam os juízes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Não
protelemos, disse um deles para Marco Quirini. Lede-lhe a sentença. O juiz leu
a sentença. Que dentro de vinte e quatro horas se saísse da cidade e dentro de
três dias abandonasse para sempre os estados de Veneza, sem réplica, sob pena
de galés perpétuas. A quem o descobrisse e prendesse em contravenção davam mil
cruzados. Poderia a sua vida correr risco daquela hora por diante. Que se fosse
em boa hora... Os juízes fizeram vénia, viraram costas e saíram. Tomai as
vossas coisas, disse o carcereiro, e vinde comigo. Vou acompanhar-vos até à
saída.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Por
uma pequena porta dos baixos saiu às traseiras do palácio ducal e da basílica
de São Marcos. Eram dez horas da noite, soprava um vento crespo que encrespava
as águas dos rios, que quase transbordavam. Caminhou lesto em direcção a San
Beneto. Quando lá chegou, já a água começava a alagar as margens e a atingir as
soleiras mais baixas e o rés-do-chão da casa não tardaria a estar inundado.
Jerónimo Migliori e as filhas, com a ajuda de Marco Túlio, andavam a remover
para cima os principais trastes... Subia o pajem as escadas com um pote ao ombro
esquerdo e outro na mão direita, quando o viu entrar. A largueza das espáduas,
acentuada pela extrema magreza, a pele sobre os ossos, o cabelo e a barba
tamalavez crescidos, os olhos metidos, as maçãs das faces levantadas, o nariz
comprido e um pouco afilado, os beiços delgados, o de baixo ressaindo, de
começo Marco Túlio não reconheceu o seu senhor. Mas, quando el-rei sorrindo: Marco
Túlio!, disse. Tão atarefado vos faz andar à água?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Meu
Senhor!, pousou ele os potes num degrau e desceu açodado a tomar-lhe as mãos.
Meu Senhor! Deixaram-vos sair! Ninguém sabia. Subi, subi. Estão na sala alguns
senhores portugueses..., e nomeava-os... À entrada da sala, o pajem, na grande
expectativa do encontro, ficou especado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">El-rei
parou também no limiar. Ao fundo uma grande lareira acesa lampejava clarões de
luz e bafos de calor no aposento. Em redor, alguns sentados, outros de pé,
conversavam em voz repousada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">É
isso que pensais, senhor dom Cristóvão? A Senhoria não pode, perante tão fortes
pressões e influências..., de tanta banda e tão altas pessoas... Espanha não dorme.
… amanhã ou depois... E porque não hoje?, disse da porta el-rei. Todos se voltaram
àquela voz. Senhores, disse Túlio solene: Sua Alteza! Ergueram-se dos assentos
e olharam a figura que avançava para eles, como visão, alumiada pelo luar das
chamas. Meu rei e senhor! rojava-se-lhe aos pés dom Cristóvão, já os outros se
curvavam em vénias e procuravam beijar-lhe as mãos. João de Castelobranco
inclinou levemente a cabeça duvidoso, não o reconhecendo, levantava el-rei dom
Cristóvão: Senhores, tende calma. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Meu
senhor, dizia João Castro, que magro vindes! Sentai-vos aqui à lareira. Marco,
trazei alguma colação para Sua Alteza. Não desejo comer, disse, sentando-se.
Tenho pressa de sair da cidade... e contou-lhes o teor da sentença. O
embaixador de Espanha, disse João Castro, conseguiu ainda botar veneno em tão
agra sentença que só o ânimo de Vossa Alteza o consegue suportar. As barbas
encanecidas, mas lembro-me muito bem de vós, dom João, e lançava os olhos em
redor. Folgo de ver que saístes com vida da batalha... E vós, tão jovem,
sois..., fitava dom Cristóvão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 14.0pt;">Foi
dom João quem respondeu: É o senhor dom Cristóvão, filho segundo de vosso primo
o senhor dom António I, Prior do Crato, que Deus tenha em sua glória. Olhou-o
atentamente: Meu primo dom Cristóvão. Muito grato em ter-vos comigo. Sabeis que
sois parecido com vosso pai e com o infante dom Luís vosso avô? Permita Deus
que nas obras os semelheis também». <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.</i></b><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">Cortesia
de Difel/JDACT</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman", "serif"; font-size: small;">JDACT,
Fernando Campos, História, Literatura,</span></p>JDACThttp://www.blogger.com/profile/01258397710060081066noreply@blogger.com