sábado, 1 de maio de 2010

António Nobre: Um eu forte, escorado na memória das paisagens e das gentes

(1867-1900)
António Pereira Nobre, mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere na corrente ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, (Paris, 1892), é marcada pela lamentação e nostalgia, imbuída de subjectivismo, mas simultaneamente suavizada pela presença de um fio de auto-ironia e com a rotura com a estrutura formal do género poético em que se insere, traduzida na utilização do discurso coloquial e na diversificação estrófica e rítmica dos poemas. Apesar da sua produção poética mostrar uma clara influência de Almeida Garrett e de Júlio Dinis, ela insere-se decididamente nos cânones do simbolismo francês.
A sua principal contribuição para o simbolismo lusófono foi a introdução da alternância entre o vocabulário refinado dos simbolistas e um outro mais coloquial, reflexo da sua infância junto do povo nortenho.

 
António Nobre nasceu na cidade do Porto mas passou a sua infância em Trás-os-Montes e na Póvoa de Varzim. Partiu para Paris, em 1890,  onde se licenciou em Ciências Políticas. Durante a sua estada em França familiarizou-se com as novas tendências da poesia e aderiu oao simbolismo. Em Paris teve encontros com Eça de Queirós, na altura cônsul de Portugal. Nesta cidade escreveu a maior parte dos poemas que viriam a constituir a colectânea Só, que publicaria em 1892.


Ai quem me dera entrar nesse convento.
Que há além da morte e que se chama a Paz!
António Nobre, Soneto n°18, in Só

Cortesia de Instituto-Camões

O livro de poesia Só, que seria a sua única obra publicada em vida, constitui um dos marcos da poesia portuguesa do século XIX. Esta obra seria, ainda em sua vida, reeditada em Lisboa, com variantes, lançando definitivamente o poeta no meio cultural português. Aparecida num período em que o simbolismo era a corrente dominante na poesia portuguesa coeva, diferencia-se dos cânones dominantes desta corrente, o que poderá explicar as críticas pouco lisonjeiras com que a obra foi inicialmente recebida em Portugal. Apesar desse acolhimento, a obra de António Nobre teve como mérito, juntamente com Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros, de influenciar decisivamente o modernismo português e tornar a escrita simbolista mais coloquial e leve.

Em todos os seus livros ( e os póstumos Primeiros versos e Despedidas), bem como no seu abundante epistolário, está presente um sentimentalismo aparentemente simples, reflectido nos temas recorrentes da sua obra: a saudade, o exílio, a pátria e a poesia. Este sentimentalismo ganha uma dimensão mítica, por vezes um certo visionarismo, na procura de um passado pessoal entretanto perdido pelo desenraizamento da sua pátria ou pelo sentimento de amargura a sua estagnação lhe causa, como se percebe no seu poema Carta a Manuel. Na sua obra poética, António Nobre procurou recuperar um pitoresco português ligado à vida dos simples, ao seu vigor e à sua tragédia, pelos quais sentia uma ternura ingénua e pueril. Nessa tentativa assume uma atitude romântica e saudosista que marcaria profundamente a literatura portuguesa posterior, aproximando-o de figuras literárias como Guerra Junqueiro e Almeida Garrett.

O Meu Cachimbo
Ó meu cachimbo! Amo-te immenso!
Tu, meu thuribudo sagrado!
Com que, bom Abbade, incenso
A Abbadia do meu passado.

Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae.

Vejo passar a minha vida,
Como n'um grande cosmorama:
Homem feito, pallida Ermida,
Infante, pela mão da ama...

Por alta noite, ás horas mortas,
Quando não se ouve pio, ou voz,
Fecho os meus livros, fecho as portas
Para fallar comtigo a sós.

E a noite perde-se em cavaco,
Na Torre d'Anto, aonde eu moro!
Alli, mettido no buraco,
Fumo e, a fumar, ás vezes... choro.

Chorando (penso e não o digo)
Os olhos fitos neste chão,
Que tu és leal, és meu amigo...
Os meus amigos onde estão?

Não sei. Tral-os-á o «nevoeiro»...
Os trez, os intimos, Aquelles,
Estão na Morte, no extrangeiro...
Dos mais não sei, perdi-me d'elles.

Morreram-me uns. Por elles peço
A Deus, quando está de maré:
E, ás noites, quando eu adormeço,
Phantasmas, vêm, pé ante pé...

Tristes, nostalgicos da cova,
Entram. Sorrio-lhes e fallo...
Deixam-se estar na minha alcova,
Até se ouvir cantar o gallo...

Outros, por esses cinco oceanos,
Por esse mundo erram, talvez...
Não me escreveis, ha tantos annos!
Que será feito de vocês?

Hoje, delicias do abandono!
Vivo na paz, vivo no limbo:
Os meus amigos são o Outomno,
O Mar e tu, ó meu Cachimbo!

Ah! quando for do meu enterro,
Quando eu partir gelado, emfim,
No meu caixão de mogno e ferro,
Quero que vás ao pé de mim.

Santa mulher que me tratares,
Quando em teus braços desfalleça,
Caso meus olhos não cerrares,
Embora! Que isto não te esqueça:

Colloca, sob a travesseira,
O meu cachimbo singular
E enche-o, sollicita enfermeira,
Com Gold-Fly, para eu fumar...

Como passar a noite, amigo!
No Hotel da Cova sem conforto?
Assim, levando-te commigo,
Esquecer-me-ei de que estou morto...
António Nobre, in «Só»

A obra de António Nobre está muito marcada pelas paisagens que conheceu, quer se trate do Douro interior e do litoral a norte do Porto, que conheceu na infância e na juventude, quer do Mondego e de Coimbra onde estudou. O escasso número de volumes da obra não exclui que ela constitua um marco de referência da Literatura Portuguesa (à semelhança de outros autores de obra quase única, como são Cesário Verde e Camilo Pessanha). Trata-se, de facto, em especial no caso de, de uma obra emblemática em si mesma e do fim-de-século português, combinando a herança romântica com a estética do Decadentismo e do Simbolismo, que o poeta bem conhecia (como aliás a geração coimbrã a que pertence). 
A sobreposição desses modelos, o seu universo pessoal e o seu talento de poeta fazem nascer uma voz original, tecendo o sábio trabalho sobre os tipos de verso e de estrofe mais diversos, sobre o ritmo e formas poéticas clássicas como o soneto ou outras, com destaque para o poema longo e de construção dialógica (por exemplo, em «António» ou «Os figos pretos»).
Do ponto de vista técnico, trata-se de uma poesia que parece muito próxima da oralidade, mas tal é desmontado quer por referências temáticas de requintada estesia, quer pelo uso de versos como o alexandrino e o decassílabo, a par de outras medidas, combinando com mestria ritmos sofisticados, ao modo simbolista, mas sem criar a opacidade que se pode ler em poetas seus contemporâneos (v.g. Eugénio de Castro), antes mantendo uma cadência cantabile, que qualquer leitor consegue acompanhar - o que não será alheio ao sucesso atestado pelas múltiplas reedições. Estes processos enquadram a construção de um sujeito dramatizado (especialmente visível no jogo de vozes em certos poemas) que se apresenta como narcísico e dândi, mas que, sob a máscara da ironia, esconde o pessimismo e o dolorismo de uma descrença individual que retrata a sua época.
No centro desse mundo está um eu forte, escorado na memória das paisagens e das gentes que foram cenário dos tempos felizes, muito vívidos mas sem possibilidade de retorno; os poemas tentam combater essa decepção procedendo ao inventário dos bens passados (lugares, figuras, nomes, circunstâncias), tentando, pela presentificação e pela hipotipose, ancoradas numa memória fotográfica, combater a desaparição de tudo isso no abismo da lembrança. Assim, o sujeito lírico sobrepõe a voz presente com os ecos do passado - o seu, pessoal ou mesmo familiar, e o dos tempos ancestrais, que o fundam como indivíduo e como Lusíada, epítome dos feitos heróicos da História nacional.
«O eu cinde-se entre o adulto, António, e Anto, sua face ora infantil, ora dândi, representando-se como herói e protagonista mas também como outro, distante de si, numa antecipação do eu fragmentado que os poetas modernistas viriam a trabalhar mais fundamente». O sujeito assume a carga simbólica de ser um avatar do povo português, o que virá a prolongar-se no protagonista do poema inacabado «O Desejado» (in Despedidas): Anrique, nome arcaizante, corporiza uma variação sobre o mito sebástico, pondo o mito em ruínas ao espelho do Portugal do fim de oitocentos. Herói derrotado, António é, no , o Princípe fadado para ser «poeta e desgraçado», narciso marcado pela memória deceptiva de tudo o que foi e não volta mais, só face a si mesmo e à sua excepcional condição de visionário. Uma leitura cuidada do Só mostra bem que a pretensa ingenuidade visível a uma primeira leitura é um logro: além do que no plano técnico atrás se assinalou, para isso contribui muito o labor poético visível no confronto entre as duas edições feitas em vida de António Nobre, em 1892 e em 1898, não deixando dúvidas a muito detalhada elaboração que sustenta esta poética e o seu universo de motivos, de símbolos e de mitos.

António Nobre no Penedo da Saudade
Cortesia de falcaodejade
Muito ousada para a época, a sua obra foi lida por alguns como nacionalista e tradicionalista, mas essas leituras estão hoje bastante relativizadas, valorizando a crítica mais recente aspectos como aqueles que acima se repertoriam. Não se trata de uma obra solipsista e ensimesmada, antes de representar um universo interior e um Portugal que epitomizam o sujeito finissecular e que expressam uma crise de valores que em breve, historicamente, há-de trazer mudanças de vulto. E é sobretudo, como já se esboçou atrás, uma das pedras de toque na gestação do sujeito moderno: a memória não permite recuperar o que se perdeu, os heróis parecem condenados à derrota, e Narciso tornou-se uma figura deceptiva; em lugar dessa felicidade perdida, o poeta visionário ergue a forma possível de resistência à ruína – a edificação da Obra, assegurando a permanência do seu nome e a do país que com tanta subtileza soube retratar.
Cortesia de Paula Morão, Instituto Camões.

Morre aos 33 anos de idade, após prolongada luta contra a tuberculose pulmonar.
Wikipédia/JDACT

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