domingo, 16 de maio de 2010

Fernando Pessoa: Os Grandes Trechos. Parte I

Cortesia de Richard Zenith
Com a devida vénia a Richard Zenith na edição do Livro do Desassossego, obra essencial de Fernando Pessoa, publico um dos Grandes Trechos.

A DIVINA INVEJA

Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.
A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.
Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu - de alterar, mantendo-a mesmamente bela e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente - e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.
Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquitecto muito mais.
Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais – curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar.
O meu triunfo máximo no género foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos - curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um tecido arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade... In Livro do Desassossego, Richard Zenith, Assírio e Alvim, 3ª edição, edição 1060 Setembro 2008, pág. 383-384, ISBN 972-37-1121-4
Este livro é um só estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em todas as direcções (pág. 399).
Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo (pág. 353)
Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT