Cortesia do Instituto Camões
Com a devida vénia a António Costa Canas e ao Instituto Camões, publico algumas palavras.
A Arte de Navegar em Portugal começou por se basear em regras essencialmente práticas e empíricas. A formação dos responsáveis pela condução dos navios tinha um carácter eminentemente prático, sendo os conhecimentos necessários transmitidos pelos mais experientes aos «aprendizes» dessa arte. A literatura náutica daquela época, redigida quase exclusivamente por pilotos, é uma prova evidente desse pragmatismo, nela se indicando as regras para condução dos navios, nos mares que os Portugueses mais praticavam.
As bases matemáticas necessárias para a navegação eram bastante rudimentares, não sendo exigidos nenhuns conhecimentos especiais, nem grandes capacidades de cálculo, para levar a efeito as operações aritméticas necessárias para determinar a posição dos navios. Por esse motivo não existia em Portugal, durante o século XV e pelo menos na primeira metade do XVI, qualquer organismo institucional vocacionado para a formação dos pilotos. O «apoio científico» era garantido por astrólogos, que preparavam tabelas, prontas a utilizar, com coordenadas dos astros para serem usadas na determinação da posição dos navios.
Com o passar do tempo, as exigências de precisão, no que respeita ao conhecimento da posição do navio foram aumentando. No final da primeira metade do século XVI, a Coroa decidiu criar uma aula, do Cosmógrafo-mor, que tinha, entre outras incumbências, a de ministrar formação aos futuros pilotos e a outros homens ligados às actividades náuticas, como cartógrafos e fabricantes de instrumentos. Pouco se acerca das actividades deste funcionário régio nos primeiros anos, mas as suas aulas não teriam tido grande afluência, pelo menos durante o século XVI. Situação semelhante se verificou com a cadeira de matemática criada na Universidade de Coimbra.
Em 1574, o rei decidiu solicitar ao Jesuítas que instituíssem uma classe, no seu colégio de Santo Antão, em Lisboa, destinada a dar a formação matemática necessária aos homens do mar. Aproveitar-se-ia assim a experiência e a vocação para ensinar que os membros daquela ordem religiosa demonstraram desde a fundação da mesma. As lições aí ministradas ficaram conhecidas pela designação de Aula da Esfera. A origem desta designação está certamente relacionada com os inúmeros «Tratados da Esfera» redigidos na Idade Média, nos quais eram expostas noções de Cosmografia, base dos conhecimentos necessários para a Arte de Navegar.
Discussão das observações das fases de Vénus no manuscrito das aulas de G.P.
Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, 1615/16:
Vénus tem de orbitar em torno de Sol.
Cortesia do Instituto Camões
O objectivo inicial da Aula da Esfera era fornecer as ferramentas técnicas e matemáticas necessárias para os homens do mar. Por esse motivo, o seu ensino era bastante prático, e vocacionado para aquele objectivo concreto, pelo menos nos primeiros tempos do seu funcionamento. Uma característica importante desta aula é o facto de ele se afastar da prática definida para o ensino da matemática nos colégios jesuítas. Essa prática encontrava-se enunciada no Ratio Studiorum, onde se definia o plano estratégico a ser seguido pelos Jesuítas, em termos de ensino. Sendo o latim a língua culta da época usada na maioria das aulas ministradas um pouco por toda a Europa, não passou despercebido a um visitante italiano o facto de em Portugal serem dadas lições, na Aula da Esfera, em vernáculo, o que se percebe pelo facto de os alunos serem geralmente pessoas que não dominariam certamente o latim.
Com o passar do tempo, e a modificação de diversos aspectos da vida nacional, a referida aula sofreu também alterações mais ou menos profundas. O programa das aulas era definido pelo professor que as ministrava, razão pela qual se notam modificações nas matérias ensinadas cada vez que o professor mudava. Analisando os diversos sumários, e nalguns casos apontamentos das próprias aulas, que chegaram até aos nossos dias, notamos uma tendência para um ensino cada vez mais teórico, afastando-se portanto do seu objectivo inicial, que era o de dar formação de índole prática.
O interesse pela Arte de Navegar foi sendo cada vez menor, mantendo-se no entanto, o interesse pela cosmografia e pelo uso de globos. Nota-se por vezes, que os professores analisam os problemas que interessavam aos homens do mar, mas dum ponto de vista bastante teórico, propondo soluções sem qualquer interesse prático. Também o ensino da Geografia, que na época era conhecida como Hidrografia, foi desaparecendo, a pouco e pouco, das aulas.
Após a Restauração da Independência, em 1640, os programas da Aula da Esfera sofreram alterações significativas de forma a melhor servirem as necessidades que o país conhecia. Vivendo‑se então uma situação de confronto militar eminente com Castela era premente a construção de fortificações militares, especialmente nas regiões de fronteira.
Matérias como a Aritmética e a Geometria passaram a ser ensinadas na segunda metade do século XVII, fornecendo assim as bases essenciais para aqueles que mais tarde viriam a ser engenheiros militares. A inclusão no curso, por ordem régia, de lições de Arquitectura, é mais uma prova evidente da importância que na época se dava à formação de homens habilitados a construir e reparar fortificações.
Muitos dos professores que ensinaram na Aula da Esfera eram estrangeiros. A insuficiência de pessoal qualificado, em Portugal, para ministrar essas matérias é uma das explicações para esse fenómeno. Por outro lado, muitas das actividades de missionação da Companhia de Jesus ocorreram no Oriente. Na China essa missionação concretizou-se através de uma actividade científica intensa por parte dos padres jesuítas, que resolveram muitos dos problemas de ordem prática que os Chineses lhes colocaram. Sendo Lisboa a via pela qual esses cientistas chegavam ao Oriente, e pertencendo aqueles territórios à Província portuguesa da Companhia compreende-se facilmente que muitos desses estrangeiros destinados ao Oriente cá ensinassem, enquanto aguardavam a partida, ou quando de lá regressavam.
Embora possam ser apontadas inúmeras lacunas nas lições apresentadas na Aula da Esfera importa destacar o facto de esta ter sido o único local onde em Portugal se ensinou regularmente Matemática, numa época em que a cadeira universitária dessa disciplina não tinha praticamente nenhuns alunos. Além disso, devido ao facto de muitos dos seus professores serem estrangeiros, que tinham contactado com realidades diferentes da portuguesa, a Aula da Esfera foi a via de entrada de muitas das novidades científicas que iam surgindo um pouco por toda a Europa. Cortesia de António Costa Canas
Cortesia do Instituto Camões
Nos princípios do século XVII assistiu-se a um dramático debate cosmológico em que se defrontavam diversos sistemas do mundo. A visão geocêntrica, herdada de Ptolomeu (século II d.C.), aparece representada numa gravura da «Crónica de Nuremberga» de 1493. Ao centro aparece a Terra, cercada das sete esferas planetárias e do firmamento. No século XVI, esta visão foi posta em causa. Tycho Brahe (1546-1601) sugeriu um outro sistema, em que a Terra estava parada no centro do Universo. O Sol e a Lua rodavam em torno da Terra, e os planetas em torno do Sol. Galileu (1564-1642) defendeu o sistema heliocêntrico de Copérnico (1473-1543), representado numa gravura retirada do seu «Diálogo dos Grandes Sistemas do Mundo» (1632). Os matemáticos jesuítas perceberam que as observações astronómicas de Galileu, nomeadamente das luas de Júpiter e das fases de Vénus, tinham destruído o sistema de Ptolomeu. Mas não quiseram abandonar a visão geocêntrica e aderiram ao sistema de Tycho Brahe, que era também compatível com as novas observações.
Bibliografia:
- ALBUQUERQUE, Luís de, “A «Aula da Esfera» do Colégio de Santo Antão no século XVII”, Estudos de História da Ciência Náutica. Homenagem do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1994, pp. 533-579;
- LEITÃO, Henrique, “A periphery between two centres? Portugal in the scientific routes from Europe to China (16th and 17th centuries)”, in Ana Simões, Ana Carneiro, Maria Paula Diogo (eds.), Travels of learning. A Geography of Science in Europe, Dordrecht, Kluwer, 2003, pp. 19-46;
- LEITÃO, Henrique, “Jesuit Mathematical Practice in Portugal, 1540-1759” Archimedes, volume 6, Dordrecht, Boston, London, Kluwer Academic Publishers, pp. 229-247;
- Imagem: Tratado sobre a Esfera Material, Celeste e Natural, do padre Cristóvão Galo. Reproduzido de ALBUQUERQUE, Luís de, “A «Aula da Esfera» do Colégio de Santo Antão no século XVII”, Estudos de História da Ciência Náutica. Homenagem do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1994, p. 574.
Instituto Camões, 2003
Cortesia do Instituto Camões/JDACT