segunda-feira, 26 de julho de 2010

Navegações Portuguesas: Parte V. D. António de Ataíde

Com a devida vénia a Francisco Contente Domingues e ao Instituto Camões, publico algumas palavras.

Nasceu em 1567, segundo filho do segundo conde da Castanheira e de D. Bárbara de Lara, tendo herdado o título do quarto titular da Casa, o seu sobrinho D. João de Ataíde. Era neto e homónimo do primeiro conde, vedor da Fazenda D. João III, e um dos fantasiosos nobiliários da época faz mesmo remontar a sua linhagem a Egas Moniz.
D. António embarcou na armada do marquês de Santa Cruz que em 1582 foi enviada aos Açores a combater os partidários do Prior do Crato, e depois prestou em várias armadas da costa nos anos subsequentes. Em 1611 comandou a armada anual para a Índia, para o que não carecia de experiência de mar anterior, já que aos capitães-mor nada era requerido que exigisse conhecimentos náuticos, embora esta nomeação possa ter sido devida exactamente ao seu domínio da arte de navegar, já que foi encarregue pelo rei de comentar e sugerir alterações ao regimento padrão da viagem. A nau capitânea levava como piloto um dos mais experientes oficiais do ofício dessa época, com reputação estabelecida e longa prática do mar: Simão Castanho Pais. Em resultado de um desaguizado entre ambos, é o próprio capitão do navio que assegura a pilotagem e escreve o diário de bordo na viagem de regresso, uma situação a todos os títulos excepcional na Carreira da Índia e prova da suficiência de D. António, tornando-se patente que aprendeu os fundamentos da arte de navegar nos dois decénios que medearam entre a ida aos Açores e o comando desta armada.
Cortesia de salvador-nautico
Depois do regresso a Lisboa é provido no posto de coronel de infantaria, e em 1618 no de general da armada de Portugal, comandando a armada da costa, que aguardava os navios que se aproximavam do litoral para os proteger dos ataques de piratas e corsários. É nesta qualidade que procede em 1621 à criação do primeiro corpo de infantaria de marinha, o Terço da Armada Real, precursor dos corpos destinados ao embarque de tropas de combate em navios de guerra.
Logo no ano seguinte teve lugar um episódio que ficou nos anais da Carreira da Índia como uma das suas mais infaustas perdas. A nau «Nossa Senhora da Conceição» perdeu-se ao largo de Peniche, em resultado de uma explosão, depois do ataque de uma armada de dezassete vasos argelinos com a qual combateu rijamente durante dois dias, apesar de dispor apenas de 22 bocas de fogo.

D. António foi considerado culpado de perda da nau por não lhe ter acorrido a tempo, enquanto capitão-mor da armada da costa, cuja missão era precisamente a de defender os navios da Índia na sua aproximação à orla litoral portuguesa. Foi preso em casa, primeiro, e no Limoeiro depois. Foi tirada devassa do sucedido. O processo arrastou-se por três anos, acabando por se concluir que o acusado procedera afinal como o regimento preconizava, e procurara até perseguir os piratas, embora sem sucesso. D. António deu resposta longa e cuidada aos quesitos da sua suposta culpa, afirmando desde o início que tudo se devia à perseguição dos seus inimigos, nomeadamente do desembargador Manuel Coutinho, a ponto de nem sequer se ter esperado pelo seu regresso para dar início à tentativa de inculpação.
Finalmente ilibado, é feito primeiro conde de Castro Daire a 30 de Abril de 1625, alcaide-mor de Guimarães, senhor dos lugares de Paiva, Baltar e Cabril, gentil-homem de boca e mordomo-mor da rainha: uma compensação de desagravo pela injustiça a que fora sujeito. A partir desta altura, outros cargos e missões de importância atestam o alto merecimento de que sempre beneficiou junto de Filipe IV: foi conselheiro de Estado do Conselho de Portugal, presidente do Conselho de Aragão e presidente da Mesa da Consciência e Ordens. Chefiou a embaixada enviada ao imperador D. Fernando II em 1628-1630, da qual o seu secretário, Damião Ribeiro, fez um copioso relato que ainda se conserva manuscrito. No regresso é nomeado governador de Portugal, cargo que ocupa sozinho de Março de 1632 a Abril de 1633, em virtude do falecimento do conde de Vale de Reis, Nuno de Mendonça. A Restauração encontrou-o pois profundamente ligado à gestão dos Habsburgos, e talvez por isso não se livrou da prisão em 1641, por suspeita (infundada) de participação numa conjura pró-espanhola. Para a desconfiança política que com certeza suscitava junto da nova dinastia, deve também ter concorrido o facto de o seu filho mais velho, D. Jerónimo de Ataíde, ter ficado por Madrid depois do 1º de Dezembro de 1640; a presidência da Mesa da Consciência e Ordens foi-lhe retirada, mas D. António passou os últimos anos de vida em quietude, morrendo a 14 de Dezembro de 1647.

Cortesia de livrariaultramarina
D. António de Ataíde reuniu ao longo da vida a que foi sem dúvida uma das melhores bibliotecas privadas do seu tempo, no tocante à matéria naval, dada a riqueza e quantidade dos livros e manuscritos que a integraram. Conhecemos hoje alguns códices importantes que foram sua pertença, e de parte dos quais damos nota breve de seguida:
  • 1- Códices de Harvard. Conjunto de três códices pertença da Universidade de Harvard. O primeiro códice leva por título Armadas. Collecção de documentos, impressos e manuscriptos relativos às armadas de Portugal; Collecção de varios Documentos, e papeis Regios e administrativos, e contém materiais relativos ao período de 1588 a 1633. É o que contém mais informações relativas à construção e apresto de navios e armadas, como sejam as relativas a custos detalhados de construção, soldos e quintaladas, artilharia, boticas e similares. O segundo códice notabiliza-se pela inserção de impressos invulgares, a par de cópias manuscritas de documentos igualmente importantes. Tem um conteúdo algo diferente do primeiro, como o próprio título deixa logo entrever: Collecção de varios Documentos, e papeis Regios e administrativos respectivos, e abre com um documento raro: um dos dois únicos exemplares conhecidos, em perfeito estado, da relação da Armada de 1588 dada à estampa por Antonio Alvarez, em Lisboa, nesse mesmo ano. Finalmente, o terceiro volume é no essencial o copiador de D. António;
  • 2. Relação das Náos e Armadas da India. O códice Add. 20902 da British Library contém uma das mais interessantes relações de armadas da Índia, por na verdade serem duas, conforme notou Luís de Albuquerque na introdução da respectiva edição, tal a riqueza e detalhe dos comentários à margem. O códice foi compilado por ordem de D. António de Ataíde, que o anotou;
  • 3. Compilações de Diários de Bordo. Conhecem-se duas compilações de diários de bordo que estiveram na posse de D. António de Ataíde. A primeira, pertença da Academia de Ciências de Lisboa, reúne seis textos escritos entre 1595 e 1603, e foi publicada por Henrique Quirino da Fonseca. O códice está pouco anotado, ao contrário do que sucede por norma, mas é bem provável que tenha sido usado para preparar a viagem de 1611, como base de estudo prévio da experiência dos pilotos da carreira da Índia. O Arquivo Histórico Militar guarda a outra compilação, publicada por Humberto Leitão; sobreleva a anterior a vários títulos, nomeadamente pelas notas de D. António, autor do sexto e último diário pelos motivos já referidos, e bem assim porque todos eles vieram da mão de alguns dos mais reputados e experientes pilotos da época;
  • 4. Livro de marinharia de Gaspar Moreira. O original do livro de marinharia conhecido pelo nome de Gaspar Moreira (como sempre porque o seu nome é lá citado), que mereceu uma excelente edição de Léon Bourdon e Luís de Albuquerque; tem também notas de D. António. O seu possuidor julgava-se melhor piloto do que seria de facto: seguramente conhecia a arte, mas errou por três vezes nos comentários que escreveu no livro, evidenciando a distância que o separava dos profissionais;
  • 5. Códices da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Assinalados por Charles Boxer, não pudémos encontrar o primeiro. Quanto ao segundo, trata-se de uma miscelânea de manuscritos e impressos que dizem respeito à organização marítima e naval (não só espanhola), com informação vária sobre navios, pólvora e artilharia, entre outros assuntos, sendo quase todos os documentos datados da década de 1630;
  • 6. Codex Ataide (antigo Codex Lynch). Conhecido pelo nome do proprietário (Sir Henry Lynch) que o ofereceu ao King’s College, em Londres, em cujo arquivo se guarda. Contém documentação relativa à Companhia Portuguesa das Índias Orientais para o período de 1628-1633. Como é norma, está extensamente anotado. Cortesia de Francisco Contente Domingues
Terço da Armada, Regimento criado cerca de 1618 por D. António de Ataíde e cujos homens embarcavam nos navios como «gente de guerra». Terço, Unidade de infantaria dos exércitos, português e espanhol dos séculos XVI e XVII, de efectivo correspondente ao actual regimento. Uma das três partes iguais em que se dividiu um todo; terça parte; terça parte do rosário, formada por cinco dezenas de contas, usadas para rezar; parte da espada mais próxima do punho, que corresponde à terça parte do seu comprimento; uma das três partes de uma herança; parte média de uma verga. Os Fuzileiros Navais Portugueses têm origem directa na mais antiga unidade militar permanente de Portugal, o Terço da Armada da Coroa de Portugal, criado em 1621. De notar, no entanto, que já desde 1585 existiam tropas especializadas para guarnecer a artilharia e a fuzilaria nos navios de guerra portugueses. O Terço da Armada foi logo considerado uma unidade de elite, ficando inclusive responsável pela guarda pessoal do Rei de Portugal.

Bibliografia:
  • BOXER, Charles, Charles Boxer: "Um roteirista desconhecido do século XVII. D. António de Ataíde, capitão geral da Armada de Portugal", Arquivo Histórico da Marinha, vol. I, nº 1, 1934, pp. 189-200;
  • IDEM, "The Naval and Colonial Papers of D. António de Ataíde", Harvard Library Bulletin, vol. V, n. 1, 1951, pp. 24-50;
  • DOMINGUES, Francisco Contente, Os Navios da Expansão. O Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira e a arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Diss. de Doutoramento, Universidade de Lisboa, 2000;
  • DOMINGUES, Francisco Contente, e GUERREIRO, Inácio, "D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da Índia de 1611", in A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos Europeus em Homenagem a Luís de Albuquerque, org. de Francisco Contente Domingues e Luís Filipe Barreto, vol. II, Lisboa, Presença, 1987, pp. 51-72;
  • FONSECA, Henrique Quirino, Diários de Navegação da Carreira da Índia, nos anos de 1595, 1596, 1597, 1600 e 1603, Lisboa, Academia das Ciências, 1938;
  • LEITÃO, Humberto (Introdução e notas), Viagens do Reino para a Índia e da Índia para o Reino (1608-1612). Diários de navegação coligidos por D. António de Ataíde no século XVII, 3 vols., Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1957-1958.
Instituto Camões, 2002

Cortesia do Instituto Camões/JDACT