sexta-feira, 1 de outubro de 2010

António José da Silva. O Judeu: «Há na Glória Padecer». Poeta, comediógrafo e advogado. Nasceu no Rio de Janeiro e veio a ser executado pela maldita Inquisição. É considerado o dramaturgo português mais importante entre Gil Vicente e Almeida Garrett.

(1705-1739)
Rio de Janeiro, Brasil
Cortesia de bndigital
Tão alegres que viemos,
E tão tristes que nos tornamos.
(Vida do Grande D.Quixote de La Mancha e do Gordo D.Quixote)

António José da Silva, O Judeu, constitui um caso singular na história do teatro português. Luis de Freitas Branco apelida-o de fundador da ópera nacional. Teófilo Braga considera-o um mártir da Inquisição. Há, por outro lado, uma evidente constatação: sem o Judeu, teriam decorrido trezentos anos da nossa história teatral (entre Gil Vicente e Garrett) sem dramaturgos com obra digna de relevo.
Cortesia de embaixada-portugal-brasil
O Judeu viveu numa época, primeira metade do séc. XVIII, que corresponde ao reinado de D.João V em período dos ideais barrocos, da luxúria e da ostentação. A Igreja constituía-se como um segundo poder dentro do estado e a Inquisição actuava impiedosamente sobre a heresia religiosa, perseguindo nomeadamente judeus e cristãos-novos.

«Originário de uma família de cristãos-novos, perseguida pela Inquisição, facto que lhe valeu a alcunha de "o Judeu", chegou do Rio de Janeiro a Portugal, com 8 anos, para o julgamento de sua mãe. Este incidente permitiu-lhe estudar em Lisboa e mais tarde em Coimbra, onde se formou em Direito (1728). Em 1726 foi preso pelo Santo Ofício juntamente com a mãe e libertado meses depois. Pouco tempo após a sua estreia no teatro, em 1733, o comediógrafo casou-se com uma prima judia de quem teve uma filha. Quatro anos depois, foi novamente encarcerado com a família, acusado de judaizante. A mulher e a filha foram libertadas e refugiaram-se na Holanda, mas A. J. da Silva foi garrotado e queimado em auto-de-fé, sob acusação de judeu convicto, negativo e relapso. As suas comédias foram escritas em prosa, embora com alguns recitativos poéticos, e destinavam-se à representação essencialmente por bonifrates. Situa-se a sua obra na transição da comédia espanhola para o melodrama italiano. Calderon, Tirso de Molina e Lope de Vega foram algumas das influências sofridas.
No Teatro do Bairro Alto foram representadas algumas das suas comédias, em que incluía números musicais: Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Labirinto de Creta (1736) e Guerras do Alecrim e Manjerona (1737)».

Bibliografia:
  • A Vida do Grande D.Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança (1733);
  • Esopaida (1734);
  • Encantos de Medeia (1735);
  • Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736);
  • Labirinto de Creta (1736);
  • Variedades de Proteu (1737);
  • Guerras do Alecrim e Manjerona (1737);
  • Precipício de Faetonte (1738);
  • Teatro cómico português (?) (1744);
  • Ninfa Siringa (?) e Obras do Diabinho da Mão Furada (?). Nota: Relativamente às três últimas obras citadas não há certeza da sua autoria, nem indicação da data das duas últimas.
António José da Silva. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-10-01].
Disponível na www: .

Cortesia de fclarunesp
Em 1726 é obrigado a interromper os seus estudos na Universidade de Coimbra, regressando a Lisboa onde o aguardava o seu primeiro processo inquisitorial. Em 13 de Outubro, António José da Silva é encarcerado nos Estais, sede da Inquisição (processo nº 3464), onde hoje existe o Teatro Nacional D. Maria II, sendo torturado. Do seu processo consta que «o réu, despojado dos vestidos que podiam servir de embaraço ao dito tormento, foi lançado no potro, e começado a atar, lhe foi notificado por mim, notário, em nome dos senhores inquisidores, que se naquele momento morresse, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos senhores inquisidores e mais ministros que foram na sua causa». Sai ao fim de 10 dias de tortura, os bens confiscados e condenado a pena de cárcere e hábito penitencial perpétuo e a ser instruído nos mistérios da fé.

Não há dados factuais que nos permitam reconstituir a sua vida do Judeu até 1733, «seis anos enigmáticos» quando abre o Teatro do Bairro Alto e nele se representa a sua primeira ópera, «A Vida do Grande D.Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança». Sabe-se apenas que morava no Socorro, paredes meias com o local mais movimentado, em termos teatrais, da Lisboa Joanina, o Pátio das Arcas. É por demais evidente que este terá sido um dos factos determinantes para que o homem de direito se tornasse num dos mais importantes dramaturgos portugueses.
O teatro de António José da Silva reflectia influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII, de  Lope de Vega e Calderon. Do primeiro, adopta O Judeu o rigor formal da obra poética e de Calderon «bebe» o espírito revolucionário mais de acordo com os ideais do Barroco, nomeadamente no que se refere à influência do melodrama e posteriormente da ópera que, surgida em Itália, rapidamente alastrava pelos palcos europeus. O Judeu é, pois, um homem do Barroco.

De que forma se reflectem esses ideais no teatro? «Através de uma representação exuberante, do recurso ao maravilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os espectadores e os surpreendem a cada passo. Surgem as cenografias ilusórias, as tramóias espectaculares com frequentes mutações de cena garantidas por sofisticados mecanismos. Animam-se as ondas do mar, as nuvens do céu, as trovoadas e os raios, constroem-se máquinas sonoras poderosas, fazem-se descer ao palco os deuses do Olimpo, na cena irrompem sereias e dragões, e tudo se funde ao serviço de uma arte espectacular, de um grande teatro da ilusão». In José Oliveira Barata, História do Teatro em Portugal (séc.XVIII).

«As cabeleiras de todos os fradalhões, desembargadores, e poetastros de todas as academias de Obscuros, Anónimos, Singulares, Generosos, Aplicados, estremeceram, eriçaram-se ao ver exposta ao ridículo das gargalhadas da plateia do Bairro Alto a sabedoria que acobertavam com tanto respeito. O catafalco carunchoso da Escolástica da idade média, levou aqui o seu primeiro solavanco...António José deixou a nu este ridículo do seu século, mas foi este acto de heroicidade um dos que mais contribuiu para a sua morte». In Teófilo Braga, História do Teatro Portuguez.

Cortesia de marionetasdelisboa
Pensa-se que António José da Silva era autor-ensaiador das peças que fazia representar com a sua companhia no Teatro do Bairro Alto. O Judeu escreveu e faz representar oito óperas em apenas sete anos. A companhia seria formada por cerca de 8 actores, número adequado ao desempenho de todas as personagens. 
Freitas Branco estima que «a orquestra do Teatro do Bairro Alto, na época em que o Judeu estreou as suas óperas, constava em geral de dois oboés, duas trompas, tímbales e instrumentos de arco». O êxito alcançado pelas óperas foi enorme. Um público entusiasmado enchia a sala do Teatro do Bairro Alto e aclamava as representações.
«…foi tão grande o aplauso e aceitação com que foram ouvidas as Óperas que no Theatro do Bairro Alto de Lisboa se representaram desde o ano de 1733 até o de 1738, que não satisfeitos muitos dos curiosos com as ouvirem quotidianamente repetir, passavam a copiá-las, conservando ao depois estas cópias com tal avareza, que se faziam invisíveis para aqueles que desejavam na leitura delas, uns apagar o desejo de as lerem, pelas não terem ouvido, outros renovar a recreação com que no mesmo theatro as viram representadas». In Simão Tadeu Ferreira, prefácio à 4ª reedição do Theatro Cómico Portuguez.
Cortesia de dojayanosapo
Não deixa de ser extraordinário que o Judeu tenha escrito as suas óperas para marionetas. Como se teria apaixonado por elas, como terá entendido que seriam os melhores protagonistas para o seu teatro, como terá adquirido os conhecimentos técnicos que lhe permitiriam realizar os espectáculos?
Na manhã outonal de 18 de Outubro de 1739, o majestoso cortejo do Auto de Fé sai ordenadamente do Palácio da Inquisição e serpenteia pelo Rossio, até entrar na Igreja do Convento de S. Domingos, do outro lado da praça. Atrás do flamejante estandarte do Santo Ofício vêm dezenas de guardas e inquisidores conferindo a necessária pompa ao cortejo dos 56 penitenciados. António José da Silva é o número 7 da lista dos hereges. Tem 34 anos. Vem desfigurado da tortura e com dificuldade encara a luz do dia, após dois anos e treze dias de cárcere escuro. Veste uma aviltante túnica branca com a sua cara toscamente pintada no meio de labaredas e diabinhos a mordê-lo. No rol dos penitenciados vêm também a sua mãe Lourença, o irmão André e a mulher Leonor. Já dentro da igreja, os réus ouvem penosamente a leitura das culpas e longos sermões que invocam a implacável ira divina para com os hereges.
Declaram o réu? António José da Silva por convicto, negativo, pertinaz e relapso… e como herege apóstata de nossa Santa Fé Católica o condenam e relaxam em carne…
Nova viagem descendo a encosta até ao queimadeiro, no Campo da Lã, junto ao Tejo, onde se encontra montada a improvisada cenografia da morte: tablados de madeira, para que o público tenha boa visibilidade, espessos mastros equipados de garrotes para que se proceda à morte sem efusão de sangue e monumentais pilhas de lenha.

«Post scriptum- Em época de fundamentalismos religiosos,a Oriente e a Ocidente, a história deste homem que, fiel à sua fé encarou com grande dignidade a morte, poderia servir de exemplo e memória para que barbáries semelhantes à Inquisição não voltassem a existir nesta Terra e para que a liberdade que a todos os homens assiste ,na sua fé e no seu pensamento, fosse o bem mais precioso». In João Paulo Seara Cardoso.

Que delito fiz eu para que sinta
o peso desta aspérrima cadeia
nos horrores de um cárcere penoso
em cuja triste, lôbrega morada
habita a confusão e o susto mora?

Cortesia de ruadajudiaria
 
Cortesia de wikipédia/Infopédia/Paulo Seara Cardoso/JDACT