Cortesia de shahid
Com a devida vénia a Sheila Moura Hue, publico algumas palavras referente à obra camoniana no século XVI.
Alguns apontamentos sobre a recepção da obra camoniana no século XVI.
«A tradição regista que Camões enfrentou a inveja e uma espécie de preconceito dos poetas seus contemporâneos. É essa tradição que está presente, por exemplo, no poema de Jorge de Sena intitulado «Camões dirige-se aos seus contemporâneos», em que os poetas da época são acusados de terem roubado as ideias e as palavras do poeta, e também de não o terem citado, suprimindo-o e aclamando «outros ladrões mais felizes».
Há alguns testemunhos da época sobre esse movimento de hostilidade, que são alusões não muito esclarecedoras, mas que descrevem um clima geral de inveja e ataque da obra camoniana. Esses testemunhos, no entanto, não nomeiam os inimigos de Camões. Sobre essa hostilidade, há estudos de alguns críticos portugueses do nosso século que, estes sim, dão nome aos bois:
- Os inimigos de Camões, segundo esses críticos, seriam os poetas que gravitavam em torno de Sá de Miranda, poetas que queriam escrever uma epopeia portuguesa, e que nutriam uma forte repulsa por Camões.
A recepção da obra camoniana começa antes mesmo da publicação de «Os Lusíadas» No final do século XVI, as obras poéticas corriam principalmente através de manuscritos. A recepção da obra de um poeta dessa época dava-se através das cartas que os poetas escreviam uns aos outros, dos poemas que trocavam, e dos cancioneiros que então registavam a produção contemporânea. Foi somente na década de 1590 que começaram a sair as primeiras edições da poesia lírica dos autores da época. É interessante observar que nunca António Ferreira leu Sá de Miranda ou Diogo Bernardes num livro impresso.
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As obras desses poetas eram conhecidas dos leitores unicamente através da circulação de manuscritos.
Mesmo antes da publicação de «Os Lusíadas», a obra de Camões já estava a ser lida e avaliada pelos seus contemporâneos. E se houve uma avaliação negativa por parte desses contemporâneos, esta começou a se formar através da leitura de manuscritos que então deviam circular no Oriente, onde o poeta passou 17 anos, e também em Portugal.
O público leitor conhecia a sua poesia através de cartas ou de cancioneiros, como o de Luís Franco Correia, que começou a recolher poemas em 1557, e que, além da produção lírica de Camões, traz também o primeiro canto de Os Lusíadas numa versão diferente da impressa em 1572. No final da cópia desse primeiro canto encontra-se uma nota que diz: «Não continuo porque saiu à luz», isto é, a cópia é interrompida porque Os Lusíadas tinham sido publicados e não havia necessidade de copiá-los.
Ainda a respeito dos cancioneiros manuscritos que então veiculavam a obra de Camões, há que observar o facto de ao existir uma grande quantidade de poemas camonianos, é a afirmação de que além dos lendários inimigos do poeta, também existiam grandes admiradores da sua obra.
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No entanto, vejamos alguns dos testemunhos da época que registam ter havido uma forte corrente contrária a Camões antes de sua morte e glorificação. Uma das imagens mais fortes é mostrada por Fernão Álvares do Oriente, um dos primeiros a reconhecer Camões como mestre. No seu livro Lusitânia Transformada, o autor mostra dois pastores que, após uma peregrinação, chegam ao Templo da Poesia, que encontram inteiramente destruído. A ideia é a de que a poesia, na época, está em decadência, praticamente em ruínas. A única estátua no Templo que se encontra íntegra e de pé é a estátua de Camões.
O primeiro poema a ser impresso saiu em 1563, em Goa, na primeira edição de «Colóquio dos Simples e Drogas da Índia», de Garcia de Orta, e era justamente uma ode, em louvor do então Vice-rei da Índia, ode que figura entre onze páginas de homenagens e elogios a Garcia de Orta e a seus protectores. A segunda vez que um poema lírico de Camões é impresso ocorre em uma situação similar, também no espaço reservado aos elogios de praxe. Desta vez, trata-se de um soneto e de um poema em tercetos publicados no livro «História da província de Santa Cruz», de Pêro de Magalhães de Gândavo, impressa pelo mesmo editor de «Os Lusíadas».
António Ferreira
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Nestes autores que citam Camões, como fazem Fernão Álvares do Oriente e Magalhães de Gândavo, assim como naqueles que lhe encomendam poemas laudatórios para homenagear seus protectores, como Garcia de Orta, temos uma espécie de primeira recepção da obra camoniana, uma recepção que podemos chamar de positiva. Outro dos raros autores quinhentistas a citar Camões é André Falcão de Resende, autor de uma sátira dedicada ao poeta, em que critica aqueles que não sabem admirar a alta cultura e em que ilustra a pobreza do poeta em Lisboa, sátira contemporânea da publicação de «Os Lusíadas».
Portanto, se de um lado temos esses homens que admiraram a obra de Camões publicamente, temos, por outro, a história dos inimigos de Camões, história delineada pelas interpretações de críticos do nosso século. José Maria Rodrigues, em «Fontes dos Lusíadas», é quem mais vivamente levanta o enredo dessas inimizades.
No capítulo sobre António Ferreira e Camões, Rodrigues interpreta poemas do próprio Ferreira, de Andrade Caminha e de Diogo Bernardes, enxergando em certos versos farpas agudas contra o poeta. A ideia geral de José Maria Rodrigues é a seguinte:
- Em cartas a vários amigos poetas, António Ferreira incentiva-os a escrever uma epopeia sobre os feitos portugueses, e, sabendo que Camões está a escrever a sua, e julgando-o abaixo do valor dessa tarefa, quer que alguém de seu grupo o faça antes, de modo a inutilizar o que Camões vinha escrevendo. Um dos destinatários dessas cartas é Pêro de Andrade Caminha, que ficou para história mais pela sua lendária inimizade a Camões do que por sua produção poética.
António Ferreira, deu duas alcunhas a Camões:
- A de pomposo Quérilo, que é um nome simbólico de mau poeta épico na tradição humanista;
- A de Magálio, em que parece criticar a mania de grandeza do poeta.
Diogo Bernardes que, segundo José Maria Rodrigues, também fazia parte do grupo dos inimigos, é um caso a parte. Se num primeiro momento, ele se encontrava neste grupo, num segundo momento, posterior ao seu cativeiro em Alcácer Quibir, ele aparece entre os que louvam Camões, como atesta seu soneto publicado na primeira edição das Rimas, em 1595.
No entanto, ainda sobre esse primeiro momento de hostilidade, Américo da Costa Ramalho parece ter uma prova concreta da indisposição de Diogo Bernardes contra Camões.
Não cantarei aqui fábulas vãs
De novidades sempre tão amigas,
Que vem a converter homens em rãs,
E tornam a fazer homens em formigas.
Verdades contarei, verdades chãs
E vistas por meus olhos, não antigas,
Da jornada que fez o bom Carneiro
Dos Alcáçovas tronco verdadeiro.
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Diogo Bernardes parece acompanhar o percurso da recepção da obra camoniana no século XVI, hostilizando-o antes de 1580, e louvando-o depois, quando as exigências do tempo já eram outras. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontade». In Sheila Moura Hue.
Cortesia de Américo da Costa Ramalho/José Maria Rodrigues/JDACT