terça-feira, 7 de dezembro de 2010

As Forcas do Distrito de Portalegre. Parte I: «Passados 140 anos (em 2007) sobre este exemplar decreto, importa avaliar que memórias materiais ainda subsistem das forcas, na área do actual distrito. ... muitas forcas foram intencionalmente destruídas após a abolição da pena de morte, em 1867»

Cortesia de edicoescolibri

Com a devida vénia a Jorge de Oliveira e Ana Cristina Tomás

Abertura
Maledictus a Deo est, qui pendent in ligno
Deuteronómio, Cap. XXI

«Ao completarem-se (em 2007) 140 anos sobre a abolição da pena de morte em Portugal, pareceu-nos oportuno elaborar o levantamento das memórias materiais das forcas do distrito de Portalegre. Sabíamos, à partida, que poucos testemunhos iríamos encontrar, porque a maior parte das forcas eram de madeira e as poucas que se ergueram em alvenaria foram alvo de destruição, imediatamente após a abolição da pena de morte. Contudo, para além do registo dos testemunhos materiais, importava identificar, com precisão, o local onde se levantaram estes instrumentos de castigo, maioritariamente de origem medieval. Reconhecíamos que, passados 140 anos sobre a sua utilização e situando-se as forcas sempre nas imediações das velhas povoações, rapidamente o espaço que outrora ocuparam seria incluído nas novas malhas urbanas, perdendo-se para sempre a sua localização. Embora reconheçamos que Perpetuar a memória dos instrumentos da morte e da tortura não é tema agradável, reconhecemos, também, que eles fazem parte da história e, como tal, deverão ser estudados e preservados, para que os vindouros não esqueçam as terríveis formas de aplicar a justiça e que, igualmente, Portugal foi pioneiro na sua abolição.

Cortesia de edicoescolibri

Para a realização deste levantamento, socorremo-nos, maioritariamente, da informação oral junto dos mais idosos de cada povoação. Ao contrario do que supúnhamos, bastava procurar pelo jardim ou praça abrigada de cada terra e perguntar aos mais idosos onde se situava a forca, para, quase em coro, nos indicarem o local e, imediatamente, nos começarem a contar histórias relacionadas, ou com o sítio, ou com os que aí padeceram suplício. Haverá que reconhecer que as histórias sobre a pena de morte ainda estão bem presentes, sobretudo nos meios mais rurais e entre os que já ultrapassaram os setenta anos de idade. Verificámos, igualmente, que, para os mais jovens, a confusão entre forca e pelourinho era uma constante, garantindo-nos, múltiplas vezes, que a forca se situava na praça principal junto aos Paços do Concelho, onde, por norma, se ergue ou ergueu o pelourinho. Este, símbolo de poder municipal, servia para aplicação de outro tipo de condenações que não conduzissem à morte, embora, algumas vezes, os condenados sucumbissem junto ao pelourinho, perante a crueldade dos suplícios a que eram sujeitos.

Neste levantamento, foi possível identificar a forca, ou o local onde esta se situava, em 36 povoações do distrito de Portalegre. Até à reforma administrativa dos finais do século XIX, altura em que se extinguiram muitos concelhos por todo o País, o distrito de Portalegre estava subdividido em mais do dobro dos actuais concelhos. Em1762, o actual distrito de Portalegre, incluindo o território de Olivença, era formado por 39 sedes de concelho. Em tempos anteriores, ainda outros concelhos existiam, tais como, por exemplo, Monte Chamiço e Sourinho, hoje povoações já desaparecidas, ou Santa Eulália,Vila Boim, Ervedal, Benavila, entre outras, que, no levantamento de 1762, já não constam com autonomia municipal.

No decurso do levantamento de campo que efectuámos, verificámos que praticamente todas as antigas sedes de concelho tiveram forca. Estamos agora em crer que muitas destas forcas raramente foram utilizadas e outras nunca terão funcionado. Algumas forcas terão sido erguidas mais com função pedagógica e sobretudo como símbolo de poder, tal como o pelourinho, do que para aplicação da pena de morte. No distrito de Portalegre, a maioria dos concelhos foram fundados ao longo da Idade Média e inícios da Idade Moderna, remontando â essa época a maioria das forcas conhecidas.
Embora tenhamos identificado o local de 37 forcas, destas apenas três se conservam em pé, ainda que já muito arruinadas. Doutras, ainda foi possível reconhecer os seus escombros, fundações, patíbulos ou esplanadas. Pelo contrário, povoações existem que, seguramente, possuíram forca, mas da qual, ou do local onde se levantaram, hoje já não conseguimos obter informações.

Primeira página do decreto que estabelece a abolição da pena de morte em Portugal
(IANTT - Colecção de leis, Mç. 31, nº 64)
Cortesia de edicoescolibri
Incluem-se, neste caso, Ponte de Sor, Ervedal, Avis, Benavila, Vila Flor, Margem e Longomel. No entanto, se nalgumas povoações que seguramente tiveram forca não conseguimos identificar a sua localização, outra visitámos que, paradoxalmente, teve forca, sem que se conheça se algum dia foi sede de concelho. Referimo-nos à pequeníssima aldeia de S. Matias do Cacheiro, situada nas imediações de Nisa. Neste levantamento, incluímos também o território de Olivença, que, à data em que as forcas tiveram maior utilização, estava sob administração portuguesa. No território de Olivença, para além da forca desta cidade, existia outra em Taliga, pitoresca vila a Sul da cidade. EmTaliga, segundo informação oral, a forca situar-se-ia no topo do outeiro que se encontra à esquerda de quem entra na povoação, vindo de Olivença. Nesse local, encontra-se hoje instalado o depósito público de abastecimento de água.

A aplicação da pena de morte na forca encontra-se referenciada desde épocas muito recuadas. Nas civilizações do Próximo Oriente, encontramo-la referida no Código de Hamurabi e em vários textos egípcios. No Antigo Testamento, várias referências existem a este modo de aplicação da justiça. As civilizações grega e romana também a aplicaram, a par de outras formas de justiça final. Na história da Europa, a pena de morte na forca foi comummente aplicada, especialmente por crimes cometidos por pessoas de baixa condição social e, sobretudo, por crimes de sangue e heresia leve. Em Portugal, desde as Ordenações Afonsinas, passando pelas Filipinas, até 1867 encontramos múltiplos crimes sancionados com a pena de morte na forca.

Página do decreto onde se inscreve o Artigo 1º - Fica abolida a pena de morte em Portugal
(IANTT - Colecção de leis, Mç. 31, nº 64) 
Cortesia de edicoescolibri

Contudo, desde 1852 que e pena de morte já não era aplicada a crimes políticos. Por Decreto das Cortes Gerais do Reino, datado de 26 de Junho de 1867 e posteriormente publicado a 1 de Julho do mesmo ano, no âmbito da Reforma Penal e das Prisões, e pena de morte para crimes civis é abolida, em Portugal. Manteve-se, no entanto, a pena de morte para crimes militares, sendo esta abolida através da Constituição de 1911, mas restabelecida durante a Iª Grande Guerra, em 1916. Só após a Revolução de 1974 e a sequente aprovação da Constituição de 1976 é que a pena de morte foi totalmente erradicada da legislação portuguesa.
No Decreto de 1867, lê-se, no Título I, Artigo 1º: :
  • Fica abolida a pena de morte. No Artigo 3º, lê-se: Aos crimes a que pelo código penal era applicavel a pena de morte, será applicada a pena de prisão cellular perpetua.
Com a aprovação desta lei e, sobretudo, com a de 1852, que já abolia a pena de morte para crimes políticos, Portugal deu um exemplo ao mundo, levando Victor Hugo, em carta dirigida ao director do Diário de Notícias e publicada naquele jornal, em 10 de Julho de 1867, a escrever o seguinte:
  • Abolir a morte legal deixando à morte divina todo o seu direito e todo o seu mistério é um progresso augusto entre todos. Felicito o vosso Parlamento, os vossos pensadores, os vossos escritores e os vossos filósofos! Felicito a vossa Nação. Portugal dá o exemplo à Europa. A Europa imitará Portugal.

Cortesia de edicoescolibri
Passados 140 anos sobre este exemplar decreto, importa avaliar que memórias materiais ainda subsistem das forcas, na área do actual distrito de Portalegre. Inventariam-se, aqui, os testemunhos materiais que subsistiram ao passar dos anos e à justificável intenção de apagar da memória esta cruel forma de aplicar a justiça. Quer por acções individuais, quer por iniciativa das próprias câmaras municipais, muitas forcas foram intencionalmente destruídas após a abolição da pena de morte, em 1867. Os testemunhos que sobreviveram deverão ser hoje preservados e protegidos, porque de documentos históricos se trata, permitindo aos vindouros conhecer uma cruel e injusta realidade de cuja abolição Portugal se orgulha de ter sido pioneiro». In Jorge de Oliveira e Ana Cristina Tomás, As Forcas do distrito de Portalegre, edições Colibri, Novembreo de 2007, ISBN 978-972-772-767-4 (obra ofertada por JC e SB em Agosto de 2008).

A amizade de JC, SB e CM.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT