Cortesia de mundolusiada
A Viagem de Antero de Quental à América do Norte
A António Sérgio, filosofo, poeta e lobo do mar
.... Os seus temperamentos eram muito dessemelhantes. Antero ingénuo, leal e arrebatado; Germano por vezes áspero, mas sempre penetrante, e aproveitando cruamente as fraquezas ou ingenuidades do adversário. Entre o cajado de Antero e o florete de Germano, aparecia porém a Senhora da Graça, o João de Deus, a serenar os combatentes.
À mesa do hotel as questões eram de outro género e intensidade. Entre os comensais encontrava-se o snr. Mateus, homem muito eloquente e possuidor de copiosos conhecimentos, sofregamente absorvidos no celebre Manual enciclopédico de Monteverde. Sabia-o todo de cór. Este estranho personagem, de tão intensa madureza, respeitava enormemente o Antero, tinha por ele verdadeira veneração e, sempre que se lhe dirigia, tratava-o por V. Exa, snr. dr. Antero. Não fazia porém o menor caso de João de Deus, que morria a rir de prazer. Na ausência, chamava-lhe: «O outro, o que faz versos. Aquilo não rende nada». E, voltando-se para Negrão, acrescentava:
- Se o snr. quer fazer fortuna, eu dou-lhe uma carta para um primo que tenho em Africa e verá o que aquilo é. Versos, não caia nessa, isso não rende nada.
Quando alguém, quasi sempre de propósito, fazia uma afirmação absurda, ele intervinha logo:
- Perdão, perdão, isso não vem no Manual.
Mas ás vezes não saía espontaneamente e era necessário chamá-lo a debate, encargo este que competia a Negrão. Porque, como o homem não tomava João de Deus a serio, e Antero, na sua qualidade de centro nobre, estava naturalmente reservado para as grandes soluções finais, só restava em actividade armada o Joaquim Negrão.
Joaquim de Almeida Negrão
Retrato feito em Londres em 1870, meses depois da viagem à America do Norte
António Carneiro
O homem falava um dia no movimento da Terra e este objectou-lhe que isso era uma mentira empregada para facilitar o ensino na escola.
- A verdade, que aliás toda a gente sabe, continuou Negrão, é que a Terra está imóvel. Se ela andasse com a velocidade que você diz, nem as aves se atreveriam a levantar vôo, porque não poderiam regressar ao ninho, nem a pedra que você deitasse ao ar voltaria ao sitio de onde fora lançada.
O pobre diabo embatocou com o velho e fradesco argumento. Antero porém acudiu era seu auxilio:
- Não se perturbe com a observação.
Em garoto atirava eu ao ar muitas pedras que vinham sempre cair no mesmo ponto de onde eu as arremessava. É certo porém que este mundo se compõe de muitos garotos e que se não pode saber ao certo de qual era a pedra. Ha sempre duvidas a este respeito.
- Perdão, snr. Doutor, peço perdão desta vez, apressou-se o homem a observar, se bem que muito a custo. É que eu tinlia uma tia que me dava todas as suas luvas velhas; e, quando atirava pedras ao ar, envolvia-as primeiramente na pele das luvas, cosia-as e escrevia-lhe o meu nome por fora. E elas vinham cair-me aos pés.
- E o senhor afiança que a pedra tinha sempre o seu nome? perguntou Antero solene e aparentemente surpreendido pela singular objecção.
- Sim snr., afirma o homem, categórico e preciso.
- Nesse caso, confessa por fim Antero depois de reflectir um momento, não sei o que hei-de responder! ...
Cortesia de paulocampos
Mas o mais interessante de todos esses episódios deu-se entre os três escritores : - Germano, Antero e João de Deus. O redactor do Janeiro, necessitou de passar alguns dias numa aldeia próxima do Porto e pediu a João de Deus que o substituísse no serviço da redacção. Este anuiu, mas aproveitou o ensejo para aplicar uma tareia no Bispo, cujo partido politico Germano defendia nas colunas do jornal.
Então só se pensava em dar cabo do deficit, reduzindo os ordenados aos funcionários públicos e lançando novos tributos. E João de Deus, indignado com a forma que havia sido empregada na aplicação de certas contribuições, dizia ao Alves Martins que ele poupara os abades e os seus passais porque lhe tocava pela port ; que só fora rigoroso com o alheio.
Volta Germano e zanga-se com o poeta «que o entalára»; ao mesmo tempo, passa o encargo ao Antero e parte de novo para a aldeia. Mas este tratou. logo de escrever um artigo pavoroso, de caráter pelo menos francamente socialista, no qual zurzia todos os .bandos políticos.
Germano regressou de vez, riu-se e reconheceu que não podia sair do Porto.
Cortesia de lutadoresdarepublica
Terminado o carregamento. Negrão foi ao Governo Civil declarar que levava um passageiro a bordo. Não deu porém o nome. Naquele tempo, as prescrições que se observavam em tais casos eram menos rigorosas do que as de hoje.
O patacho estava ancorado defronte da Alfandega Velha. Mas, como a maré fosse tarde, levou-o o rebocador para fora da barra, fundeando o navio ali, á espera da entrada do capitão e do passageiro no dia seguinte. Em terra, na Cantareira, ficara um escaler para os levar a bordo.
No dia seguinte, de manhã cedo, João de Deus, Antero de Quental e Joaquim Negrão, com a bagagem do primeiro, tomavam uma carruagem e mandavam bater para a Cantareira. O mar estava o mais chão possível e na foz do rio notava-se apenas uma suave ondulação. Entretanto João de Deus, fitando-a atentamente, perguntou:
- Mas olha lá, o escaler tem de transpor aquelas ondas?
- De certo, não pode deixar de ser, respondia Negrão, algo surpreendido.
- Pois então, meu amigo, não vou!
Cortesia de trintanosdepois
O capitão ainda teimou com ele. Mas, como Antero lhe fizesse vêr o estado do João, nervoso, pálido e com o olhar espantado, e lhe pedisse para não insistir, calou-se. E ia voltar ao Porto, a dizer que o passageiro não seguia a bordo, quando Antero lhe perguntou se ele, no Governo Civil, dera o nome de João de Deus.
- Que não; indicara apenas um passageiro.
- Nesse caso, se você não tem duvida, vou eu em logar do João.
Negrão anuiu e os dous poetas regressaram juntos ao Porto. Antero, logo em seguida, voltava só para a Foz, com a sua bagagem ... e embarcava.
In António Arroyo, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto.
Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT