Cortesia de makewparrcollectio
A Vida de Nun'Alvares
O Prior do Hospital«Meia légua, ou pouco mais, para o norte do Crato, em meio d'essa charneca dilatada que vem das Beiras, e, transposto o oásis do Alto Alentejo, se alonga até às serras do Algarve, está a Flor da Rosa, ladeada a nascente pelos montes de Portalegre, levantados contra a fronteira de Castela. As torres quadrangulares e maciças da nova igreja do Hospital, alvas de mocidade, mordem o céu com os dentes das ameias, abrigando na sua sombra poderosa as choças humildes dos caseiros, a quem o prior vai aforando terra, para criar em torno da fundação um núcleo de moradores, como tantas villas que n'esses antigos tempos constantemente nasciam do solo requeimado do Alentejo.
Cortesia de makewparrcollectio
Os reis, os monges militares, os donatários: todos, estavam apostados, ainda no ultimo quartel do XIV século, a consolidar, povoando-a e arroteando-a, a metade agreste do reino alcançada das mãos dos mouros à custa de mil combates, devastada e nua, ressequida e deserta, após séculos de incessantes guerras: cemitério de ruínas onde a esteva e o tojo encobriam as pedras dos muros derrocados; porque as raízes das antigas árvores, os pavimentos das estradas e os restos das vilas romanas havia muito que, ou se tinham dissolvido no pó da charneca, ou jaziam soterradas n'elle com o perpassar constante do tropel das guerras. Destruída a vegetação, expulsa a gente, sumiu-se a água para o sub-solo, formaram-se as torrentes com o precipitar das chuvas, abriu chagas a pele da terra; e o sol, secando o ar e o chão, pôde estender o seu império absoluto sobre a amplitude nua do deserto: nua como a ilimitada campina azul do céu, também ermo de nuvens.
Cortesia de mckewparrcollection
O Crato era a capital dos estabelecimentos hospitalários portugueses. O prior, D. fr. Álvaro Gonsalves Pereira, fundara, em 1356, na Flor da Rosa uma igreja e mosteiro torreado, para aí dormir o sono eterno sob o patrocínio de Nossa Senhora das Neves, ao lado de seus pais, o arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, e Tareja Pires Villarinho, a salamanquina, que já repousavam à sombra dos muros espessos da igreja acastelada, como cumpria n'essa região de fronteira, sacudida sempre por algaras e devastações de inimigos. Ainda, porém, ao cabo de dezesete anos, em 1373, quando o prior resolvera enviar à corte o seu filho, Nuno, que apenas contava treze anos: ainda então, a traça das construções não se achava terminada; e do Crato à Flor da Rosa áa com frequência o prior, já velho, antegostar o sossego do túmulo que escolhera, desejoso de que a morte o não surpreendesse antes de ver terminado o monumento, que devia dar testemunho da sua passagem pelo mundo.
Cortesia de wikipedia
D. fr. Álvaro, homem poderosíssimo que já privara com el-rei D. Afonso IV, e depois com el-rei D. Pedro-o-crú, era uma das figuras eminentes do tempo de D. Fernando. Os seus anos, os seus serviços, o seu saber e entendimento davam-lhe essa preferência: sobretudo as artes da astrologia, em que punha um minucioso cuidado, nas suas demoradas práticas com mestre Thomaz, o astrólogo da casa, traçando os vaticínios do tempo, a luz tenuissima que n'essas épocas de barbárie lobrega anunciava o despontar da claridade racional. N'uma atmosfera de sombra e medo, n'um tempo de incerteza e crueldade, o esforço pessoal e a superstição divinatória, eram as duas armas com que os homens conseguiam atravessar pelas brenhas da vida, em combates incessantes.
Sábio e valente, o prior era celebrado pela magnânimidade do seu coração, pela largueza do seu espirito, pela generosidade da sua alma. «Partia grandemente o que havia». Quando a existência depende do esforço humano e não da estabilidade da maquina social, o homem, com os impulsos do seu instinto voluntário, pôde expandir à larga os dons que a natureza lhe deu, como árvore bracejando livremente no ar; e mostrar-se qual nasceu e o fizeram, ou na grandeza incoerente de herói, ou na abjecção monstruosa de malvado. D. fr. Álvaro pertencia à familia dos primeiros. Deixada a natureza ao seu livre curso, não há moderação, nem caracteres temperados: esta mediania que é a regra nas sociedades bem ordenadas, onde cada qual, ao nascer, encontra preparado o molde a que tem de sujeitar-se desde o berço até à cova. Ai, d'aquelles que vieram fadados para excêntricos voluntariosos; ai, também, dos que, nas idades tempestuosas do mundo, nasceram sem trazer nos músculos a tempera da energia.
Cortesia de wikipedia
Era um grande braço, era um grande cérebro, era um grande coração, D. fr. Álvaro; e tudo isto era espontaneamente, à lei da natureza, levado pelos impulsos da vontade, pelos assomos do orgulho fidalgo, pela violência de um temperamento carnal. Na sua longa vida, apesar dos votos proferidos antes dos dezoito anos, que foi quando o fizeram prior do Hospital, teve muitos amores, e trinta e dois filhos, machos e fêmeas (1).
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(1) D'estes trinta e dois filhos, os que aparecem mencionados nas crónicas são:
1. Pedr'alvares, n. de Maria Domingues Brandão, solteira; legitimado em Portalegre a 26 de Agosto (E. 1395) 1357. Prior do Crato; e em 1384, Mestre da Ordem de Calatrava, em Castella. f. em Aljubarrota.
2. Rodrig'alvares, n. de Iria Vicente; legitimado na mesma ocasião. Morgado de Agoas Bellas, senhor de Souzel e de Cerveira.
3. Fernand'alvares, n. de Iria Gonsalves do Carvalhal ; idem. Alcaide-mór de Elvas.
4. Lop'alvares, idem, leg. em Portalegre, a 24 de Julho (1399) 1361.
5. Gonçalo Pereira, idem, id. Atouguia, a 1 5 de Setembro (1405) 1367.
6. Vasco Pereira, idem, id. Coimbra, a 8 de Setembro (1407) 1369.
7. Ruy Pereira, idem, id. Villa Viçosa, a 8 de Janeiro (1413) 1375.
8. Fernão Pereira, idem.
9. Affonso Pereira, idem ?
10. Diog'alvares, idem ?
11. Nun'alvares, idem, id. Portalegre a 24 de Julho (1399) 1361.
N'esta lista parece faltarem dois filhos, pois Nun'alvares era o 13º. Vê-se porém que foi legitimado conjuntamente com seu irmão Lopo; e a julgar pela ordem das legitimações, pelo menos trez irmãos seriam mais novos. Fernão, diz-nos a crónica que o era, o que faz quatro; e sendo Nun"alvares o 13º filho, os varões seriam pelo menos dezesete.
As filhas de que há noticia são:
12. Izabel, c. com Gil Vaz da Cunha, senhor de Basto;
13. Joanna, c. com o Almirante Pessanha;
14. Maria ou Ignez, c. com Pedro, ou Rodrigo, Afonso do Cazal.
15. Violante, c. com Martim Gonsalves de Lacerda;
16. Mecia, c. com Vasco Martins de Altero.
17. Estephania, c. com Álvaro Gil de Carvalho;
18. Violante, filha de Iria Gonsalves do Carvalhal, c. com Martim Fernandes, ou Gonsalves de la Cerda.
19. Leonor, c. com Lourenço Mendes de Vasconcellos.
20. Beatriz, c. com Joanne Mendes de Vasconcellos.
21. Theresa, c. com Gonçalo Rodrigues de Abreu, alcaide-mór de Elvas;
22. Anna, c. com José Gonsalves de Basto.
23. Maria c. com Ruy Lopes Cerveira.
Se os varões foram 17, as filhas deviam ser 15: faltam pois 3.
Cf. a Mon. lusit. VIII; liv. XXIII, 3. Santos, errando n'um dia, põe o nascimento de Nun'alvares a 25 de Junho; quando o computo exacto, pelo que Lopes diz, na sua Chron. de D. João I, dá o dia de S. João, 24.
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Cortesia de wikipedia
O mais velho chamava-se Pedro: Pedro Alvares (filho de Alvaro) ou Pedr"alvares, e foi quem lhe sucedeu no priorado; entre os menores estava Nuno, Nuno Alvares, ou Nun'alvares, que nasceu em 1360, dia de S. João, como precursor também, no castelo do Bomjardim, filho duma criada da corte, por nome Iria Gonsalves do Carvalhal. Quando esta aventura teve o seu desfecho com o parto de Iria do Carvalhal no mosteiro do Bomjardim, o pai e o astrólogo, D. fr. Álvaro e mestre Thomaz, apressaram-se a tirar o vaticínio do recém nascido, e o oráculo disse que o novo bastardo seria invencível. Vinha ao mundo com o Precursor; os signos afirmavam um prodígio; o pai exultava, e a mãe sorria, amorosa e melancólica, para o fruto do seu amor sacrílego. Não é crível que, por grande que fosse a soltura dos costumes (e não podia ser maior) nas consciências enevoadas do tempo não acordasse vislumbre de remorso por pecados tão contra a letra expressa da lei de um Deus, de quem os mais atrevidos tremiam como varas verdes. A prova é que a amante do prior levou a penitenciar-se o melhor da sua vida, sem comer carne, nem beber vinho, durante quarenta anos, fazendo grandes esmolas e jejuns.
Cortesia de carmelnet
Mas o pecado teve sempre uma teoria complicada. Sem penitência não se ganha o céu, e sem pecado não há motivo de penitência. Superior às forças humanas, fatalidade inevitável da natureza, para todo o pecado há perdão: o caso está em fazer por ele! E pecados há, dignos de benção, desde que foram resgatados. O pecado de amor estava em tal caso, n'um tempo em que a força das coisas levava a reclamar tudo do vigor do braço, da energia do temperamento, da exuberância das paixões. Era a idade áurea da bastardia.
E gerar nas minhas entranhas um herói, pensaria a mãe; espada invencível como a de Galaaz, o glorioso bastardo de Lançarote do Lago!. . . E vir á luz no próprio dia do Baptista, o precursor de Christo!. . . Se não fosse, também, o pecado de Eva, nunca o mundo teria commungado no sangue do Redentor. . .
Cortesia de formactiva
O prior, por seu lado, exultava abertamente. Não o assaltavam as dúvidas que perseguem a consciência mais subtil das mulheres. Tomava a vida como o tempo a fazia. Ele próprio, bastardo era também.
Fora seu pai o arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, que além jazia na campa da Flor da Rosa, quem o destinara para monge cavaleiro, fazendo-o proferir os votos e alcançando-lhe o priorado do Hospital. Fora ele que, sendo deão da sé do Porto, expulsara o bispo, e depois o banira de Lisboa. Fora homem de grandes ódios, e de maus fígados. O bispo chamava-se fr. Estevam, frade franciscano menor, e era o trigésimo na sé do Porto, sagrado em 1309.
Dera ao deão D. Gonçalo a igreja e o mosteiro de S. Salvador de Canedo, na terra da Feira, propriedade do cabido, quando ao tempo viviam na melhor intimidade. O cabido protestou, a câmara do Porto interviu, reclamando ambos a expulsão do bispo, mas quem partiu com um cónego para Avinhão, a pedir a Clemente V a exautoração de fr. Estevam, foi o próprio deão D. Gonçalo: d'onde se vê quanto aliava a arte para vencer lances difíceis, ao amor entranhado pelas grandezas da terra». In Oliveira Martrins, A Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da dinastia de Avis, LIvraria de António Maria Pereira, Editor, 1893.
Cortesia de Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies University, 1961/JDACT