sábado, 22 de janeiro de 2011

Recensões. Cataldo Parísio Sículo: Parte I. «Numa das cartas que formam o conjunto dos 73 textos da Cataldi epistolarum et quarundam orationum secunda pars, saída em Lisboa certamente em 1513 num volume impresso em caracteres góticos, endereçada a D. Álvaro (irmão do Duque de Bragança D. Fernando, condenado em 1483), o humanista italiano que, chamado por D. João II, já se encontrava em Portugal em 1485...»

Cortesia de leituragulbenkian

Recensões
Cataldo Parísio Sículo, Epístolas. II Parte. Fixação do texto latino, tradução e notas de Américo da Costa Ramalho e de Augusta Fernanda Oliveira e Silva, col. «Estudos Gerais. Série Universitária», Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, 233 pp. + fac-símiles

«Numa das cartas que formam o conjunto dos 73 textos da Cataldi epistolarum et quarundam orationum secunda pars, saída em Lisboa certamente em 1513 num volume impresso em caracteres góticos evidenciando um razoável cuidado tipográfico, aquela que ocupa o 42º lugar, endereçada a D. Álvaro (irmão do Duque de Bragança D. Fernando, condenado em 1483), o humanista italiano que, chamado por D. João II, já se encontrava em Portugal em 1485, confessava: «Non soleo, natura mea, longas conscribere litteras nisi ubi maxima urget necessitas» (p. 132) = «Não costumo, por minha natureza, redigir uma carta longa, senão quando urge uma necessidade muito grande». A frase deixa transparecer a faceta auto-valorizadora de Cataldo, espelhada em diversificados momentos da sua obra e, portanto, deste corpus, efectivamente caracterizado pelo predomínio quase absoluto de textos curtos.

D. João II
Cortesia de wikipedia
No volume quinhentista em causa, textos longos são as duas orationes nº 45 e 59, já anteriormente publicadas com estudos e tradução (p. 145, n. 172; p. 177, n. 214), textos que, por definição, não poderiam ser breves sob pena de incorrerem no menosprezo do género e da própria situação em que haviam sido proferidas, a carta dirigida a D. Pedro de Meneses, conde Alcoutim (nº 64, p. 188), que é a dedicatória do poema cataldiano Martinho, Verdadeiro Salomão, objecto já, há três décadas, de uma edição e tradução orientadas pelo Prof. Costa Ramalho, e cuja extensão se compreende dessa perspectiva enunciativa e finalmente a referida carta a «D. Álvaro, presidente de Portugal» (D. Álvaro foi regedor da Justiça e chanceler-mor do reino, n. 149), que não deixa de ser também a manifestação caracterizadora da imagem que Cataldo busca dar de si mesmo ao longo deste conjunto de textos.

D. Isabel
Cortesia de wikipedia
Numa outra carta, inscrita na 57ª posição (p. 172), recorre à imagem banal em escritos do tipo laudatório como são predominantemente os textos desta II Parte, para manifestar a sua dor face à «repentina desventura» de saúde que afligira D. João de Noronha, a qual não poderia ser escrita «numa folha de papel por longa 224 Recensões que fosse»; mas a carta é, em si mesma, de pequena extensão.
E qual a razão para a angústia de Cataldo nessa circunstância?
O destinatário, pertencente à família dos Meneses (era irmão de D. Pedro de Meneses), incorporava em si o exemplo de cavaleiro letrado que Cataldo transforma em elemento central da imagem que pretende fazer passar para o leitor ao longo deste conjunto de textos.

Na verdade, tanto nesta carta, «E não é por seres um cavaleiro muito excelente e essa excelência emanava da actividade militar na guerra contra os árabes, nas praças do Norte de África, que tanta honra dera aos Meneses que hás-de desprezar a língua latina», porque, para além do mais, ela «ser-te-á útil» para aquelas situações de convivialidade social junto do príncipe, onde convinha «não só falar de armas mas também de Letras» (p. 172), como naquela outra antes referida, dirigida a D. Álvaro reportando-se à personalidade dos dois filhos do fidalgo, faz sobressair o mais novo pela sua beleza e, sobretudo, pela sua propensão para o estudo («Natus ad eloquium, doctrinas natus ad omnes qualis adhuc nullus traditur esse puer»), mostrando uma «seriedade» própria de «um ancião», contrastando com a maneira de ser do mais velho, «entregue aos cavalos e às caçadas de lebres», afastando-se «do estudo das Letras».

D. Álvaro
Cortesia de albergariadosfusos
Cataldo deixa patente o modelo de formação da juventude aristocrática que orientava a sua actuação como preceptor humanista na corte joanina e manuelina. Era um modelo de origem italiana, de facetas modernizantes que deviam suscitar o interesse de uma nobreza que pretendia ser ela também mais moderna, por diversas razões, entre as quais se devia contar essa aludida utilidade das Letras para o cavaleiro que tinha de estar, nesse sentido forte de «estar junto, de assistir», «quer perante o César, quer perante os restantes grandes homens» (p. 173) – na companhia do monarca, como conselheiro prudente e virtuoso, conforme toda esta literatura não se cansava de sublinhar. Um modelo que bem podia situar-se como oferta muito mais valiosa do que esse outro modelo da dignitas do fidalgo fundada na prosápia genealógica sustentada pela violência belicosa identificada com o figurino do cavaleiro proposto nos livros de cavalaria.
O empenhamento com que Cataldo enaltece as virtudes das Letras na educação da juventude aristocrática mais próxima do rei não podia estar alheado de uma intenção polémica, que passava tanto pelas pessoas em si mesmas, e o feitio de Cataldo, como sempre vincou o Prof. Costa Ramalho nos seus trabalhos, não era marcado pela suavidade, nomeadamente no que dizia respeito a outros mestres de latinidade, como por uma outra literatura marcada pelo atractivo da ficção romanesca e por isso tão procurada.

O valor da obra cataldiana não emana propriamente da sua qualidade intrínseca em termos literários, o que não autoriza a que se desvalorize a sua importância no quadro da expressão em latim renascentista. Mas, exceptuando alguns momentos mais felizes, em que o discurso ganha em vivacidade expressiva, em regra bem se lhe pode aplicar o juízo que, na introdução à presente edição, se tece a Via Spiritus 13 propósito dos Poemata do humanista (um primeiro conjunto saído em 1502-1503 e um segundo cerca de 1513, portanto em momento coincidente com a Secunda pars):
  • «O valor poético de muitas destas observações não é grande, mas o seu interesse documental é incalculável» (p. 16). Trata-se de facto de uma obra vasta e multifacetada e incontornável para um conhecimento menos apoiado em lugares-comuns que vagabundeiam (aproveitando a sugestão do sintagma «influências vagabundas» já usado por alguém) pelos manuais a propósito dos tempos de D. João II e de D. Manuel, tempos também do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e de uma boa parte da produção dramatúrgica de Gil Vicente.
Ora, como mais de uma vez o Prof. Costa Ramalho evidenciou, as relações entre esses três grandes conjuntos são mais reais e significativas, do ponto de vista documental, do que se poderia imaginar há umas décadas atrás.

Cortesia de wikipedia
Neste enquadramento, atentemos no volume saído talvez nesse ano de 1513 como II Parte das cartas e de alguns discursos de Cataldo Sículo, que a presente edição disponibiliza ao leitor actual, fornecendo-lhe não só um texto latino crítico no sentido de cientificamente fixado tendo em atenção que os hábitos de leitura e de empaginação não são os mesmos de há 500 anos, mas também uma tradução rigorosa, conforme na introdução se explicita. O cuidado que marca a edição levada a cabo por Américo da Costa Ramalho e por Augusta Fernanda Oliveira e Silva fica ainda patenteado tanto pela inclusão das notas, índices e bibliografia. Ambas as impressões quinhentistas, pelas suas características materiais, partilham daquilo que se poderia designar como o livro manuelino, isto é, uma linguagem tipográfica que participa na projecção dignificadora do príncipe, no quadro de uma linguagem ostentatória do reinado do Venturoso que corresponde sobretudo ao período ao seu casamento com D. Maria, rainha que, não fora certamente a grande discrição que parece tê-la caracterizado, devia surgir aos nossos olhos como uma figura bem mais influente e culturalmente importante (quiçá até para a actividade de Gil Vicente) do que podemos pensar». In Américo da Costa Ramalho e Augusta Fernanda Oliveira e Silva, Cataldo Parísio Sículo, Epístolas. II Parte, Estudos Gerais. Série Universitária.  

Cortesia da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005/JDACT