Cortesia de leiloes
A corte de D. Manuel
«A conquista da Índia encheu de ambições o ânimo ostentoso do rei D. Manuel. Queria também figurar entre os primeiros soberanos da Europa, intervir de um modo conspícuo na política internacional, e para isso resolveu mandar a Roma uma embaixada, tão faustosa que deslumbrasse o mundo. Ao Salomão papal enviava o imperador de Sabá um tributo de cortesia, que era ao mesmo tempo um escudo de pretensões. Menos de quatro séculos andados tinham bastado para que o rei de Portugal, o antigo humilde vassalo da Igreja, se apresentasse hoje, não aos pés, mas em frente do trono papal, vestindo o manto roçagante de um império constelado pelas coroas do Oriente.
O rei de Portugal queria que se prosseguisse no Concílio de Latrão, na reforma dos abusos da Igreja, porque «desde o tempo do papa Alexandre VI havia na corte de Roma muita soltura de viver e se dava dissimuladamente licença a todo o género de vício, de maneira que grandes pecados se reputavam por veniais», diz Góis. «Amoestar o papa, continua, e pedir-lhe que quisesse pôr ordem e modo na dissolução de vida e costumes e na expedição de breves, bulas e outras coisas que em a corte de Roma tratavam, do que toda a Cristandade recebia escândalo», eis aqui a causa de uma embaixada anterior, e um motivo também da ostentosa missão de agora.
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Queria, porém, mais el-rei que se lavrasse entre os príncipes cristãos uma liga contra o Turco; queria ainda que o clero português contribuísse com uma colecta para as despesas da Índia; e que o padroado de todas as igrejas do Oriente ficasse à Ordem de Cristo, cujo mestrado andava com a coroa portuguesa. Sobretudo, o rei queria mostrar ao mundo o que valia e o que podia, ostentando a sua riqueza em Roma, aí onde o seu embaixador tinha de pagar tudo a peso de ouro, salvo os mártires. Miguel da Silva anunciava a oferta de uma canonização grátis.
A embaixada, confiada a Tristão da Cunha, partiu de Lisboa em Janeiro (1514), e foi recebida em Roma em Março. Era uma procissão magnífica, e o fausto espectaculoso do rei português conseguiu deslumbrar essa corte de Leão X onde se reuniam os primores da civilização da Europa.
Partiram, primeiro da porta del Populo, 300 cavalos guiados à rédea por outros tantos azeméis, vestidos de seda, e os cavalos cobertos por mantos de brocado com franjas de ouro.
Seguia logo a turba da criadagem, e após ela os portugueses de Roma, seculares e eclesiásticos. Depois iam os parentes dos embaixadores, ostentando o luxo desvairado desses tempos: chapéus de plumas bordados de pérolas e aljôfar, grossos colares e cadeias de ouro cravejados de pedras preciosas, armas tauxiadas com embutidos e lavores, sedas, veludos, rendas, anéis; montando cavalos de raça, ornados de fitas e jaezes de preço.
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Eram mais de 50 os fidalgos; e atrás do brilhante esquadrão via-se, primeiro, uma companhia de besteiros de cavalo, depois os oficiais da casa do papa, com a sua guarda de honra de archeiros suíços e lanceiros gregos, a pé. A cavalo, os músicos da embaixada portuguesa e trombeteiros e charameleiros do papa, reunidos, abriam a segunda metade, mais singular, do préstito capitaneada pelo estribeiro do rei, Nicolau de Faria, que montava um cavalo cujos arreios eram esmaltados de ouro cravejado de pérolas.
Um elefante recamado de xairéis preciosos levava, na sua torre, o cofre onde ía o pontifical oferecido por D. Manuel ao papa; e um naire da Índia, vestindo os seus trajes de seda, ía governando o animal dócil «tão formoso, sendo mui feio, que era coisa gentil de se ver». Depois do elefante, num cavalo da Pérsia, montado por um caçador de Ormuz, ía deitada na anca uma onça domesticada. Estes animais, 2 leopardos em carros, encerrados em gaiolas, e o pontifical magnífico eram as páreas que, dos seus domínios orientais, o rei enviava ao papa. Morreu noutra viagem o rinoceronte, destinado a representar a África, mas foi depois empalhado para Roma; não chegando porém lá as quintaladas de cravo, de pimenta, de canela, de gengibre, de malagueta, carregação da nau que naufragou em Génova.
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Depois das páreas, a embaixada formava um grupo deslumbrante de riqueza. Garcia de Resende, o secretário, era seguido pelo rei de armas de Portugal, com a sua cota vestida, e pelos maceiros do papa, que precediam os embaixadores. Tristão da Cunha a cavalo «tão posto e poderoso com seu chapéu de pérolas que matava todos de gentileza» vinha entre o duque de Bari e o governador de Roma; Diogo Pacheco entre o bispo Alberto Cáspio; e João de Faria entre o bispo de Nápoles e o sábio Guilherme Budeo, embaixador do rei de França. Depois seguiam os embaixadores de Castela e de Inglaterra, da Polónia, de Veneza e de Milão, de Luca e de Bolonha, cada um com com seu bispo ao lado, e marchando em coluna, aos pares.
Havia séculos, desde o antigo Império, que a Itália não vira um elefante, e a novidade espantosa, correndo por toda a península, trouxera gente de muito longe. Havia quem estivesse em Roma desde meses esperando o grande dia, e as ondas do povo alastravam o chão ansiosas: «Não sei contar a V. A. por onde vim, que eu não via outra coisa senão gente, sempre gente». O dia amanhecera chuvoso, mas aclarou depois, e nas ruas, nos palanques, nos telhados das casas, nos balcões, por toda a parte, o negrume do povo se estendia a perder de vista». In História de Portugal, Oliveira Martins, Europa-América edição nº 140823/5304, adquirido em Janeiro de 1993.
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