Cortesia de oslusiadas
Com a devida vénia à Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.
Prefácio
A Elaboração do Poema
Manuel de Faria e Sousa, cuja «reabilitação» na Europa cis e transpirenaica parece iminente, escreveu, como é sabido, duas vidas de Camões: uma impressa à frente de Os Lusíadas e outra à frente das Rimas Várias, muito modificada. (Deve dizer-se que nem em todos os exemplares das Rimas aparece esta Vida.) A primeira das Vidas é notável por diversos títulos, e ainda pelos dislates que aquele comentador acumulou sobre o início da redacção do Poema, pois diz (col. 35) «que el creerse que la mayor parte deste Poema (la mayor parte, note-se) iva escrito de Portugal quãdo passó a la India, no es difficil; i menos el ver que desde sus primeros años le comẽçó». E mesmo que tivesse começado o seu Poema aos 20 (concede Faria e Sousa), trouxe-o entre mãos trinta anos, pois tendo nascido em 1517 (Faria e Sousa mudou depois de opinião) e imprimido o Poema em 1572 ficam 55, e deduzindo os tais 20 ficam 30 «e quando menos 20». E se alguém argumentar que o Poema só poderia ter sido começado (ou, pelo menos, concebido) depois da leitura das duas primeiras Décadas de Barros e do primeiro livro da História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, por Castanheda, poderá objectar-se com Faria e Sousa que Camões poderia ter conhecido aquelas obras em manuscrito. Mas ainda que não fosse assim, havendo a primeira Década de Barros sido impressa em 1552 e tendo o Poeta partido para a Índia em 1553 «aun queda en pie lo que diximos de q el primero bosquejo se hizo en Portugal en este tiempo que corriò desde la impression de las Decadas a sua partida; o tres años primero que le imprimiese el de 1572; e assi quando menos, son veinte los que truxo consigo este Poema». Uma tão penetrante conjectura devia por força ter o auxílio da Providência. E teve! «O buen Dios, como favoreces las honestas ocupaciones!» E vieram ter-lhe às mãos, ao começar a impressão dos seus Comentários, dois manuscritos, um deles de primacial importância para o seu ponto de vista: «es una copia de los primeros seis cantos, escrita antes que el Poeta passasse a la India: con que me hallo mas contento que un ignorante; mas loco que un enamorado, i mas sobervio que un rico» (na corte de Madrid, acrescente-se). Eis como termina a cópia manuscrita: «Estes seys cantos se furtaraõ a Luis de Camões da obra que tem começado sobre o descubrimento, e conquista da India por os Portugueses: Vam todos acabados, excepto o sexto, que posto que vay aqui o fim delle, faltalhe hũa historia de amores que Leonardo
contou estando vigiando, que ha de prosiguir sobre a Rima 46 onde logo se sente bem a falta della; porque fica fria, e curta a conversaçam dos vigiantes, e o propio canto mais breve que os outros» (col. 37). E assim se fundamentava uma redacção incompleta do Poema, antes de o Poeta ter partido para a Índia.
Cortesia de poliscopio
À história de cavalaria de Fernão Veloso faltava a história de amores de Leonardo, esquecendo que no fim dos Doze de Inglaterra a «companha» pedia a Veloso mais histórias de cavalaria! (VI.69.5-8).
Na segunda Vida, à frente das Rimas, dirá Faria e Sousa no n.º 28:
- «En la vida del P. que escrivimos en los Comentarios a la Lusiada, desde el numero 16. hasta el 21. hemos procurado mostrar en que tiempos, y en que partes del mundo avia el P. escrito los más de sus Poemas; y despues hallamos que en mucho nos aviamos equivocado, porque tuvimos mejores noticias».
E mais não disse! Ora o n.º 16 referido é justamente aquele em que se ocupa das circunstâncias de tempo e de lugar em que redigiu Os Lusíadas!
Não há qualquer notícia de que o Poeta tenha tido a ideia de escrever um Poema sobre o descobrimento de Vasco da Gama antes de partir para a Índia. Pode supor-se, interpretando alguns versos líricos, que várias ideias heróicas lhe passaram pela mente quando estava ainda em Lisboa, mas não concretizou nenhuma. É certo que o primeiro livro de Castanheda estava à sua disposição desde 1551 e a primeira das Décadas da Ásia desde o ano seguinte. Mas a elaboração de um plano épico não dependia apenas de duas ou três leituras. Camões não ia escrever uma narrativa histórica; ia escrever uma obra de arte, servindo-se de um grande acontecimento histórico. Decidir-se a optar pela fábula pagã também não lhe teria sido fácil, mas, além do exemplo do Mantuano, havia em Camões uma verdadeira idolatria pela beleza do paganismo. Sobre esta matéria estava Camões bem informado ainda antes de partir para a Índia, mas faltava inseri-la num grande campo de acção, que só a experiência marítima lhe daria. E quando falo de experiência marítima não quero referir-me apenas à dura vida de bordo, nem aos grandes fenómenos presenciados, mas às imagens visuais e auditivas que a própria vida do mar pôs ao alcance da sua retina e do seu ouvido e que vieram a transformar-se em versos imortais, como o famoso:
Cortando o longo mar com larga vela
analisado por Tasso da Silveira. A est. 19 do Canto I, que marca o início da narração, só poderia ter sido escrita por um nauta que vê de bordo as outras naus recortando-se num poente solar:
Já no largo oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas,
Nem a alusão mitológica vem empanar a beleza do quadro. À sua experiência marítima pertence a tormenta do cabo da Boa Esperança, que lhe daria a inspiração para a tormenta (irreal) sofrida por Vasco da Gama.
Inseriram-se na sua experiência marítima os ecos surdos do mar, que depois foram transformados em arte:
Bramindo o negro mar de longe brada
Como se desse em vão (= no vão) nalgum rochedo ...
... e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Cortesia de palavrasquemetocam
Em minha opinião, e fossem quais fossem as meditações do Poeta sobre o assunto, o Poema, tal como o temos, começou a tomar forma em 1554 ou pouco depois. A Dedicatória a D. Sebastião foi redigida na hora de iniciar o seu Poema, portanto, por fins de 1554, quando chegou à Índia a notícia do prodigioso nascimento do neto de D. João III, em 20 de Janeiro de 1554. Não só o Poeta se dirige em toda a Dedicatória ao tenro infante «Vos tenrro & novo ramo florecente» (I.7); «Que nesse tenrro gesto vos contemplo» (I.9); «Que afeiçoada ao gesto bello & tenro» (I.16), mas, circunstância para mim muito importante, não procurou alinhá-la na esfera temporal com o ano em que acabou o Poema. A Dedicatória ficou como foi escrita, a marcar um acontecimento que teve foros de miraculoso para os Portugueses «maravilha fatal» - e só o poderia ter sido não longe de 1554. Os versos
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade,
marcam uma «segurança» presente, que acaba de surgir. Muito mais tarde, em 1575, dirá a D. Sebastião
Assi vós, Rei, que fostes segurança
da nossa liberdade ...
Eram já outros os termos dessa segurança, que o próprio rei, aliás, se encarregaria de destruir.
Não me resta dúvida de que foi por 1554 que o Poeta tratou de elaborar o plano da epopeia (poderia escrever-se um poema sem plano?) e de delinear os principais episódios que, entressachados no Poema, mas fazendo corpo com ele, o encheriam de atractivos estéticos. In Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.