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Com devida vénia a Oliveira Martins, a Mckew Parr Collection e a Paulo Campos.
«A visita a Nancy faria então surgir o vulto de Carlos, o Temerário, neto, como Afonso V, de el-rei D. João I. A lealdade cavaleirosa daquele Príncipe pusera desde logo a nú as manhas e ardis de Luiz XI, que naquele próprio momento tinha a caminho em auxilio dos suíços, ligados com o duque de Lorena, um exército numeroso, desmentindo assim com os factos as palavras de paz e civilização, que encarregara o boníssimo Rei português de transmittir a seu primo co-irmão. A oposição entre os carácteres tão diversos de Luiz XI, do duque de Borgonha e do Rei de Portugal, assim colocados em frente uns de outros, e quando se aproximava o triunfo da astuta politica do primeiro; a perda da vida no campo da luta em Nancy e o irreparável desastre da causa do segundo; e finalmente a desilusão cruel de D. Afonso, e a sua fuga a ocultas para a Terra Santa, teriam, por certo, fornecido à pena de Oliveira Martins elementos para algumas páginas formosíssimas.
Não seriam estranhos à sua composição, além dos velhos cronistas, os escritos de Michelet, o historiador moderno, que maiores afinidades tinha com Oliveira Martins, e a cujos processos artísticos mais vezes o historiador português se amoldou, quer na concepção dos planos, quer nas qualidades do estilo.
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De Luiz XI dissera o grande escritor que ele possuira «de la vivacité et de l'esprit á faire trembler, point de coeur, ni amitié, ni parenté, ni humanité, nul frein. Il ne tenait á son temps, que par le bigottisme, qui, loin de le gêner, lui venait toujours à point, pour tuer ses scrupules». Caracterizando o seu adversário, Carlos de Borgonha, descrevera também Michelet este último, mostrando-o: «Fort de bras, fort d'échine, de bonnes fortes jambes, de longues mains; un rude juteur à jetter tout homme par terre, le teint et le poil bruns, la chevelure épaisse, houssue. . . Lisant insatiablement dans sa jeunesse les vieilles histoires des preux (como Nun'Alvares). Devôt, specialement de la Vierge Marie. On remarquait qu'il avait les yeux angéliquement clairs. Esprit três cultive mais avec ça peu de malice et de sens».
Era com estes dois Príncipes que tinha de tratar o nosso D. Afonso V, «esse» na frase de Filippe de Commines «pobre Rei de Portugal, boníssimo homem e Príncipe justo». Na excelência do seu ânimo chegara a imaginar possível, e até fácil, a empresa de conciliar os dois adversários, isto quando se encontrava iminente o desenlace da luta entre ambos, da qual pendiam os destinos e a sorte futura da França!
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Tudo seria esquecido e postergado, assim o supunha, com o fim quase único de favorecer os planos e lisonjear as ambições dele, Afonso V, ao trono de Castela! Tão longe chegavam a confiança simples, as ilusões cândidas do rei português acerca do seu régio Irmão de França, do qual Ruy de Pina escreve:
- «haver el-rei D. Afonso V entrado com um homem em quem nem havia virtude nem verdade»
e que, após a morte do duque de Borgonha, livre e despreocupado dos receios que este lhe inspirava «sem medo nem vergonha do que tinha promettido, desamparou o negócio de Castella, e entendeu do seu próprio, que foi haver e cobrar muitas terras da alta Borgonha e Picardia, que o duque havia tomado, e por seu falecimento ficaram sem resistência».
À narração desses sucessos seguir-se-ia a da aclamação de D. João II em Santarém, como Rei; o regresso súbito de Afonso V, e seu desembarque em Cascais; os atritos nos conselhos de D. João e voto nelles do duque de Bragança, que dissera ao Principe hesitante sobre a forma de acolher D. Afonso:
- «Como, Senhor, o recebereis, senão como a vosso Rei, como a vosso Senhor, e como a vosso pai?»
O tratado de pazes com a Espanha, negociado por intervenção da Infanta D. Beatriz, que para esse fim fora encontrar-se com os Reis Católicos; a profissão da Excelente Senhora, duramente tratada em virtude de uma suprema razão politica por D. João II.
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As tribulações de D. Afonso V e a sua morte em Sintra da peste de que viera fugindo e então grassava em Lisboa, completariam este segundo capitulo tão rico em episódios e contrastes, tão dramático e comovente no seu contexto e desenvolvimento.
Já de há muito, e bem antes da morte de Afonso V, vinha o governo sendo de facto exercido pelo Principe, só e principal ministro de seu pai, como o diz Ruy de Pina, acrescentando acerca das coisas do mesmo governo:- «... porque el-rey D. Afonso su padre de muyto anojado e envergonhado delas, de todas se escusou, e as leixou ynteiramente aa disposiçam e ordenança do Filho, a cuja vontade el-rei naquelle tempo mostrou ser muyto inclinado e sobgeito. Mas se o Pryncepe no comprymento destas cousas excedeo ho modo contra a Senhora Dona Joana, por ventura mais do que por razam, piedade, e temperança se lhe devia, e ysto pella gloria e contentamento que tinha do casamento do Ifante seu Fylho se nom desfazer, que nom era sem alguma esperança da sobcessam de Castella...».
Neste fragmento bem claramente se revela o primeiro plano de D. João II, a unificação da Península sob o espetro de Portugal, plano que tinha de falhar, mas que tão perto esteve da sua realização; bem como no trecho que em seguida transcrevemos do mesmo cronista transparece já o gérmen da luta que viria a culminar nas tragédias de Évora e Setúbal, pondo termo ao conflito levantado entre D. João II e a nobreza:
- «E depois da profissam da Excellente Senhora, porque El-Rey Dom AflFonso em Goymbra foy em ponto de morte como dysse, nunca mais foy allegre, e sempre andou retraydo, maginativo e pensoso, mais como homem que avorrecia as cousas do mundo, que como Rey que as estimava. Pollo qual no seguynte veram elle foy a Beja ver o Princepe seu filho, e a Princeza Dona Leanor sua molher, e ally tiveram o Pay e o Fylho antre sy praticas secretas, em que El Rey detriminou querer no fym deste ano, se vivera, fazer cortes geraaes em Extremoz; porque em Lisboa e Évora morriam; e leixar a inteira governança dos Reinos ao Princepe seu Fylho, e ele em abitos honestos de Leigo, e nam com obrigaçam de Relligiam, se retraer no Moesteiro de Varatojo junto com Torres Vedras, que elle de novo fundou para ally servir a Deos, e em sua vida temperar e remedear os ódios e discuçõoes, que já entendia, que por sua morte antre o Pryncepe seu Fylho, e os da casa de Bragança se nam podiam escusar».
Essa morte vinha a tempo. Das glórias triunfais com que Lisboa celebrara o regresso de Arzilla até ao leito do moribundo, que nos Paços de Sintra sucumbia à pestilenta enfermidade que dizimava a capital, o ciclo das desilusões completara-se.
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D. Afonso V fora, entre tantos, um exemplo mais de quanto são pérfidos os sorrisos da fortuna. No momento supremo, cercaram-o o filho e os netos, e foi então que O Africano, na frase do cronista Nicolau Dias:
- «... deitou a benção ao Princepe D. João seu filho, que reinou depois delle, e a dous Netos filhos do dito Princepe, hum legitimo filho da Princesa Dona Lianor sua molher, e outro bastardo que naceo estando elle já doente e muito mal, e quando lhe levara as novas de seu nacimento não poude mais por sua grande fraqueza, que levantar a mão direita e deitar-lhe a benção. Faleceo aos vintoito de Agosto de mil e quatrocentos e oitenta e hum, dia do glorioso Padre Santo Agostinho».
Era uma idade nova que surgia continuando a que havia sido iniciada com os filhos de D. João I. Afonso V fora apenas uin parentesis. A exclusiva ampliação de Portugal, pela conquista das regiões mediterrâneas da África, vinham suceder novamente as explorações audazes do Atlântico, que permitiriam afinal traçar a carta do grande continente negro, e deixariam erguidos, ao longo deste, padrões tendo inscritos no alto o brasão de Portugal e o nome de D. João II, e constituindo os históricos marcos miliários dessa triunfante derrota, que iria buscar à Índia Oriental, às Molucas, à China e ao Japão o seu termo glorioso». In Oliveira Martins, O Princípe Perfeito, 1896.
Continua.
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