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No Ribatejo
Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te fizeste?
E o magoado poeta prossegue:
Por ti o alegre prado
Me é penoso e duro;
Abrolhos me parecem suas flores.
Por ti do manso gado,
Como de mi, não curo,
Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entre a rama,
Nada me faz contente;
E sou já do que fui tão differente,
Que, quando por meu nome alguém me chama.
Pasmo, porque conheço
Que inda comigo próprio me pareço.
Ainda se ao menos a sua tão querida lhe ouvisse os queixumes!
Se aí no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio,
E d'arte te dissesse
O mal que passo agora.
Que pudesse mover-te o peito frio …
Porém o pobre poeta reconhece logo que é impossível a realização deste desejo, que não passa d'um desvario:
Oh quanto desvario,
Que estou imaginando!
Mas se não há outro remédio para o seu tormento, senão entreter assim a fantasia …
Já agora meu tormento
Não pode pedir mais ao pensamento
Que este phantaziar, donde, penando,
A vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.
Entretanto vinha rompendo o dia e o triste Almeno, vendo aparecer Agrário, outro pastor, resolve pôr termos aos seus queixumes:
Calar-me-ei somente,
Que o meu mal nem ouvir se me consente!
Como o monólogo em que Agrário vinha entretido se foi prolongando, o enamorado Almeno voltou ao seu devaneio, que agora reveste a forma duma alucinação:
Oh doce pensamento! Oh doce gloria!
São estes por ventura os olhos bellos,
Que têm de meus sentidos a victoria?
São estas, nympha, as tranças dos cabellos.
Que fazem de seu preço o ouro alheio,
Como a mi de mi mesmo, só com vê-los?
É esta a alva coluna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas,
Que eu nestes braços tenho e não o creio?
Mas a visão da bem-amada desapareceu num momento:
Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas!
Como a alçar-te tão alto assi me atrevo?
Tais asas dou-t'as eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo?
Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
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Entretanto Agrário, que tem ouvido os desatinos do pobre Almeno, vai-se aproximando e fazendo, ao mesmo tempo, varias considerações a propósito do «triste sucesso de amores» que a este aconteceu. Trava-se por fim o diálogo.
Agrário
Quero fallar com este, que enredado
Nesta cegueira está, sem nenhum tento.
Acorda já, pastor desacordado.
Almeno
Oh! porque me tiraste um pensamento,
Que agora estava aos olhos debuxando,
De quem aos meus foi doce mantimento?
Agrário
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e a vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
Almeno
Formosos olhos, ande a gente e ande,
Que nunca vos ireis desta alma minha,
Por mais que o tempo corra, a morte o mande.
Agrário
Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano,
Que corre por direita e justa linha?
Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não é por certo aviso;
É só doudice grande, grande engano.
Almeno
Ó Agrário meu, que, vendo o doce riso
E o rosto tão formoso, como esquivo,
O menos que perdi foi todo o siso!
……………………………………….
A sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lágrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas:
Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa della,
Não choro por razão, mas por costume.
E Almeno conta como «vivia livre» e «bem isento», rindo-se das paixões que inspirava, até que por fim o Amor o castigou:
Pouco a pouco me foi de mi levando,
Dissimuladamente, ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
Agrário, considerando o lastimoso estado em que se encontra Almeno, procura induzi-lo a que ponha «um freio a mal tão forte»:
Vejo-te estar gastando em viva fragoa
E juntamente em lagrimas, vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em agua.
Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emagrecem.
As tetas aos cabritos encolhendo.
Os campos, que co tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes.
Em te vendo, parece se entristecem.
De todos teus amigos e parentes.
Que lá da serra vêm por consolar-te.
Sentindo na alma a pena que tu sentes,
Se querem de teus males apartar-te.
Deixando a choça e gado, vás fugindo,
Como cervo ferido, a outra parte.
Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'um gesto lindo?
Nem as hervas das aguas desejadas
Se fartam, nem de flores as abelhas,
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
Quantas vezes, perdido entre as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas ?
Quantas vezes as ásperas mudanças
O namorado Gallo tem chorado,
De quem o tinha envolto em esperanças?
……………………………………………
Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
Que de Amor os desastres são de sorte,
Que, para matar, basta o mais pequeno.
Porque não pões um freio a mal tão forte,
Que em estado te põe que, sendo vivo,
Já não se intende em ti vida nem morte?
A tudo isto, porém, responde
Almeno:
Agrário, se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo,
Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas tem o oceano
Cos frios hyperboreos congelado;
Ou donde o filho de Climene insano.
Mudando a côr das gentes totalmente.
As terras apartou do trato humano;
Ou se já, por qualquer outro accidente,
Deixar este cuidado tão ditoso.
Por quem sou de ser triste tão contente:
Este rio, que passa deleitoso,
Tomando para trás, irá negando
A natureza o curso pressuroso;
( … )
Tornada em puro mármore não fora
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrara o rosto angélico algum'hora.
Foi bem justo o castigo rigoroso,
Porém quem te ama, nympha, não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
E Agrário, despedindo-se, promete cumprir os desejos do seu apaixonado amigo:
Tudo farei, Almeno, e mais faria.
Por algum dia ver-te descansado,
Se se acabam trabalhos algum dia.
Como se vê, se o poeta, por um lado, manifesta bem claramente o firme propósito de nunca esquecer a infanta, por outro lado revela também um profundo desânimo. Nas horas de reflexão surgiam as desoladoras perguntas: Porque ponho a boca onde não devo? Como me atrevo a alçar tão alto o pensamento? E a par destas interrogações, vinha também a lembrança de que estava desperdiçando inutilmente o «tempo e a vida»:
Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.
Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT