Cortesia de nunoanjospereira
Jangada e Pedra. Romance.
«A primeira fenda apareceu numa grande laje natural, lisa como a mesa dos ventos, algures nestes Montes Alberes que, no extremo oriental da cordilheira, compassadamente vão baixando para o mar e por onde agora vagueiam os mal-aventurados cães de Cerbère, alusão que não é descabida no tempo e no lugar, pois todas estas coisas, mesmo quando o não parecerem, estão ligadas entre si. Expulso, como foi dito, da pitança doméstica, e portanto forçado pela necessidade a recordar na memória inconsciente manhas dos seus antepassados caçadores para conseguir filar qualquer desgarrado láparo, um desses cães, de seu nome Ardent, graças ao finíssimo ouvido de que está dotada a espécie, terá percebido o estalar da pedra e, só não rosnando porque não pode, veio para ela, dilatando os narizes, de pêlo eriçado, com tanto de curiosidade quanto de medo.
A fenda, subtil, lembraria a observador humano um risco feito com a ponta aguçada de um lápis, muito diferente daquele outro traço com um pau, em terra dura, ou na poeira solta e macia, ou na lama, se com tais devaneios perdêssemos nós tempo. Porém, enquanto o cão se aproximava, a fenda alargou-se mais, tornou-se funda e avançou, rasgando a pedra, até aos extremos da laje, e depois para lá e para cá, cabia dentro a mão inteira, o braço em grossura e comprimento, se estivesse aqui homem de coragem para medir-se com o fenómeno. O cão Ardent rondava, inquieto, mas não podia fugir, atraído por aquela serpente de que já não se via nem a cabeça nem a cauda, e subitamente perdido, sem saber de que lado ficar, se em França, onde estava, se em Espanha, já distante três palmos.
Cortesia de ionline
Mas este cão, graças a Deus, não é dos que se acomodam às situações, a prova é que, de um salto, galgou o abismo, com perdão do evidente exagero vocabular, e achou-se do lado de aquém, preferiu as regiões infernais, nunca saberemos que nostalgias movem a alma de um cão, que sonhos, que tentações.
A segunda fenda, mas para o mundo primeira, aconteceu a muitos quilómetros de distância, para os lados do golfo da Biscaia, não longe de um lugar dolorosamente célebre na história de Carlos Magno e dos seus Doze Pares, Roncesvales chamado, onde morreu Roldão a soprar no Olifante, sem Angélica ou Durandal que lhe acudissem. Ali, descendo ao longo da falda da serra de Abodi, pela banda do noroeste, corre um rio, o Irati, que, nascido em França, vai desaguar no Erro, espanhol, por sua vez afluente do Aragón, o qual é tributário do Ebro, cujo finalmente levará e lançará no Mediterrâneo as águas de todos.
Ao fundo do vale, na margem do Irati, está uma cidade, Orbaiceta de seu nome, e a montante existe uma barragem, um embalse, como por lá lhe chamam.
É tempo de explicar que quanto aqui se diz ou venha a dizer é verdade pura e pode ser comprovado em qualquer mapa, desde que ele seja bastante minucioso para conter informações aparentemente tão insignificantes, pois a virtude dos mapas é essa, exibem a redutível disponibilidade do espaço, previnem que tudo pode acontecer nele.
Cortesia de portugalmundo
E acontece. Já falámos da vara do destino, já provámos que uma pedra, ainda que esteja afastada da linha de maré mais alta, pode vir a cair no mar ou regressar dele, agora é a vez de Orbaiceta, onde, depois da agitação salutar causada pela construção da barragem, há longos anos, a tranquilidade voltara a instalar-se, cidade de província navarra, adormecida entre montanhas, agora novamente agitada. Durante alguns dias Orbaiceta foi o centro nevrálgico da Europa, senão do mundo, ali se juntaram membros de governos, políticos, autoridades civis e militares, geólogos e geógrafos, jornalistas e mineralogistas, fotógrafos, operadores de televisão e cinema, engenheiros de todas as disciplinas, vedores e curiosos. Porém, a celebridade de Orbaiceta não durará muito, uns breves dias, apenas um pouco mais que as rosas de Malherbe, e como poderiam estas durar sendo de má erva, mas de Orbaiceta falamos, foi só até ter-se declarado, em outra parte, uma celebridade maior, é sempre assim com as celebridades. Na história dos rios nunca acontecera um tal caso, estar passando a água em seu eterno passar e de repente não passa mais, como torneira que bruscamente tivesse sido fechada, por exemplo, alguém está a lavar as mãos numa bacia, retira a válvula do fundo, frchou a torneira, a água escoa-se, desce, desaparece, o que ainda ficou na concha esmaltada em pouco tempo se evaporará». In José Saramago, Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 14ª Edição, ISBN 978-972-21-0289-6.
Cortesia Caminho/JDACT