Cortesia de guardadorderebenhos
Floresta de Sobressalto
Parte 2
«No bosque, «Lucus» abrandou o galope. O tempo húmido passara a aguacento. Escurecia. Embrenhando-se entre os primeiros carvalhos, Bernardo pressentiu a mudança de uma forma algo estranha. Além da escuridão, fortes rajadas de vento, que estranhamente soprava na vertical, começaram a fustigar o monge e a confundir a orientação de «Lucus», empurrando cavalo e cavaleiro para o solo. A ventania ateimava no restolho, deixando no ar novelos de pequenas folhas secas.
Por instantes, Bernardo estremeceu. Entre a teia de folhas, pareceu-lhe ver, diante de si, a imagem de Mendes Pais, qual Eolo enfurecido e com propósitos ferinos. Porém, logo após, o vento cessou, por obra das copas das árvores que, ardilosas, se fechavam devagar protegendo o espaço sob si. Tudo pareceu parar, num ambiente manso e claro. Mas a bonança acanhou-se, perante uma bátega torrencial, que picou, cruel, por entre as folhas das árvores. Teimava em cair, forte e espessa. O solo inundou-se, enlameando a pista sob os cascos de «Lucus». E a figura do hediondo abade persistia aos olhos de Bernardo, assumindo raias de diabólica provocação.
Porém, de um momento para o outro, a torrente de água amainou por intervenção das folhas das árvores. Alongadas, qual tecto protector natural, passaram a cobrir o espaço em redor de Bernardo e da montada. O ambiente aquietou-se, cedendo apenas ao calcar ruidoso das patas de «Lucus». Com a mudança, já não era a efígie do sátrapa galego que aparecia ao monge, mas uma imagem cândida, porém prisioneira, de Mafalda, a emanar harmonia e serenidade no meio circundante.
Cortesia de europaamerica
Contudo, o repto sobrenatural pesava sobre os magoados ombros do monge, agora sob a forma de um granizo dolorosamente medonho. Dir-se-ia que a abóbada celeste se havia desmoronado, estilhaçando-se no bosque com o fito voraz de massacrar os homens e a natureza. Mas, uma vez mais, o sortilégio, divino, diria Bernardo, fez os ramos das árvores distenderem-se à passagem do cavaleiro, proporcionando-lhe, de novo, uma aura protectora e benfazeja.
Furioso e interminável, o combate entre os elementos, personificado por aquelas duas criaturas de relação tão próxima e carácter tão diverso, Mafalda e Mendes Pais, parecia uma imagem do eterno combate entre o Bem e o Mal, mediado, ainda assim, com êxito, pela intervenção divina. Se o domínio do Inferno constrangia os elementos atmosféricos, encontrava, porém, na flora, um adversário à altura, capaz de deter os assaltos insanos do mundo das trevas.
«Tréguas», suplicara aos poderes sagrados quando a desordem atingira o auge. «Outra prova? Estarei sob nova exigência que me engana? Porquê?» Bernardo não encontrava explicação plausível. Perdido na demanda, optou por se refugiar no aconchego dos seus credos, em busca de soberana protecção espiritual.
Pouco depois, o ambiente sublime aquietou-se. Apenas algumas gotículas de água salpicavam o ar, à passagem do cavaleiro. O céu desanuviara e era agora claro entre o rendilhado da vegetação. Porém, a bonança era passageira.
Cortesia de arautos
Mais à frente, Bernardo apressou a montada entre líquenes e arbustos frágeis, ao frágil abrigo do dédalo arbóreo. Começou a chover. Daí a pouco, chovia intensamente, de tal forma que ocultava a claridade celeste. O bosque era tão cerrado que parecia engolir a vida. Ali perto, raros movimentos indefiníveis roçavam os troncos. «Lucus» passou a trepar, num trilho pedregoso, através de penedos graníticos. Os breves raios de luz, que se esgueiravam entre as árvores, confundiam-se com vultos sinistros, que pareciam agitar-se, como silhuetas gigantes entre uma cortina de chuva persistente. Um relâmpago, logo seguido do ribombar do trovão, acusou sombras dúbias e sinistras. Longínquas, naquele momento, todavia, cada vez mais próximas.
Bernardo quis atribuir-lhes identidades, mas mais não fez do que sobressaltar-se com a proximidade do cenário fantasmagórico, que crescia, ameaçador. Incitou a montada a imiscuir-se no arvoredo mais denso e escuro mas não logrou afastar de si a sensação de estar a ser perseguido. Voltou a apressar «Lucus». Uma vez e outra, enquanto o tropel do animal e a pressão do ar se tornavam violentos. Confundidas nas teias da vegetação, pareciam surgir formas humanas, contudo, de aparência animalesca.
Chovia copiosamente. À medida que a velocidade do cavalo aumentava, Bernardo chamava a si toda a destreza para dominar a montada. O torpor confundia-lhe o discernimento e tolhia-lhe os movimentos. Continuou, buscando repetidamente em redor. Figuras larvares pareciam querer subjugá-lo. Aparentemente talhe de cavaleiros, de silhueta sinistra, montados em não sanhudas feras. Alarmado, Bernardo grudou-se à montada. Soltou uma mão da rédea e procurou a espada, porém, sem sucesso. Na fuga, o estrépito das patas do cavalo sobre o restolho tornara-se feroz, o ruído do tropel ensurdecedor, o cenário medonho, impedindo movimentos precisos. Muito próximo, Bernardo vislumbrou chispas de ferro a fenderem o ar direitas a si. A proximidade de outras criaturas revelava-se autêntica. Sentiu um aperto no coração. Um temor desmedido apoderou-se de si, ante as aparentes investidas dos vultos. Porém, apenas de sombras se tratava. O suor misturou-se com os veios de água da chuva que lhe escorriam pelo corpo. Não havia descanso no difícil ensejo de escapar. Mas, um pensamento surgiu, singular, a lembrar-lhe o crucifixo de madeira!» In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, Publicações Europa-América 2010, edição nº 103583/9344.
Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT