quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Livro de Cale. Carlos Cordeiro: Parte 1. «Por isso, Bernardo exultava, sentindo no corpo um estranho formigueiro, aliado a lágrimas esparsas. «Que júbilo! Que felicidade ter sido acolhido com afecto no seio de Vallado, estrear-se no combate, ser reconhecido pelos pares e ter, também, a natureza corno testemunha»

Cortesia de wikipedia

Floresta de Sobressalto
Parte 1
«O espírito de Bernardo, desencadeara-se uma pira de expectativa, alimentada pelo apoio evidente que a águia, qual entidade divina e protectora, lhe havia prestado. Invadido por laivos de uma memória longínqua, Bernardo reconheceria a presença da águia no seu percurso dos últimos anos. Acontecera no breve encontro com Mafalda, durante a aprendizagem em Vallado e, havia pouco, na Garganta da Mina. A águia abençoara o amor no lago, havia sido cúmplice durante o tirocínio no mosteiro e sua aliada na peleja transmontana.
Tal como o Céu havia contrariado o Inferno, assim a águia vencera a serpente. Bernardo, cristão, derrotara Yusef, infiel. Para o monge, este credo era óbvio. No entanto, iria mais longe nas suas especulações. A águia, acompanhara os seus mais recentes ritos de passagem, estando presente nos momentos decisivos em que assumiria novas atitudes e melhores comportamentos. Por isso, Bernardo exultava, sentindo no corpo um estranho formigueiro, aliado a lágrimas esparsas. «Que júbilo! Que felicidade ter sido acolhido com afecto no seio de Vallado, estrear-se no combate, ser reconhecido pelos pares e ter, também, a natureza corno testemunha», pensava Bernardo.


Cortesia de wikipedia e europaamerica

Bafejado pela fortuna destas reflexões, Bernardo prosseguiu à mercê do terreno cada vez mais acidentado. Ao longe, havia deixado a bucólica seara transmontana, pintada de ocres e acastanhados, tingida por raros veios azulados de água límpida e serena. Algumas nuvens, ali e acolá, decoravam o infinito celeste, parecendo imóveis, pouco acima das copas de raros carvalhos. O ar adensava-se, pejado de humidade e prometendo um dilúvio.
Bernardo trilhava agora terrenos sobranceiros ao Douro, porventura mais seguros do que os do isolado planalto transmontano. A cada colina que transpunha, bosque que ultrapassava e riacho que fendia, ganhava outro alento, ciente do seu destino cada vez mais próximo. Inspirador, o ocaso tórrido indicava-lhe simultaneamente o seu lugar de origem e, agora, de destino. Bernardo conseguia vislumbrar uma ou outra aldeia e, por momentos, algumas habitações penduradas nas falésias durienses. Contudo, queria manter-se afastado o mais possível de eventuais encontros com os aldeãos.
Ao cair da noite, Savoredo estava à vista do cavaleiro, um lugar antes ocupado por berberes, expulsos pelos barões portucalenses havia pouco tempo. Do castelo restava apenas um pano de muralhas, pouco extenso, e uma torre semidestruída.
«Lucus» trepou alguns penedos, que antecediam escadas cavadas na rocha da antecâmara da torre. Do interior, apenas o esvoaçar desordenado de um bando de morcegos, alertados pelo barulho dos cascos do cavalo, alterou a calma do lugar. Da ruína, era possível avistar algumas léguas em redor. No cimo da torre, um silêncio profundo. «Ideal para pernoitar», pensou Bernardo ao reconhecer que «Lucus» estava extenuado. A noite caiu brandamente. O sono revelou-se justo.
Estátua de Vimara Peres, na cidade do Porto
Cortesia de wikipedia

Já a manhã abrasadora tinha dado lugar à tarde sufocante, quando Bernardo levantou as pálpebras, indolente e alheio às nuvens que manchavam um céu de chumbo. Ergueu-se, cambaleante, e foi direito ao bornal pendurado no dorso de «Lucus» remexeu o interior e atirou-se a uma côdea dura de dias. Com três dentadas, esgotou o alimento que o saciaria até ao entardecer. Abeirou-se de uma fonte e passou água pela cara. Depois, pegou no manuscrito de Cale e encostou-se ao tronco de um grande castanheiro. Pousou lentamente a folha e suspirou, talvez de ansiedade, porventura de cansaço, que o sono não banira do corpo magoado da jornada do dia anterior, das léguas de xistos sob um sol abrasador.
A leste, entardecia. Levantou-se vento e o manuscrito dobrou-se caprichosamente. Seria um sinal para partir. Bernardo sorriu, agradado. Voltou a enfiar o volume no bornal e levou a mão ao bolso da capa. Rebuscou, confirmando que o outro documento, cuidadosamente enrolado e laçado, se mantinha guardado. Levantou-se devagar, espreguiçou-se e respirou fundo. Pegou na capa, juntou o bornal e aproximou-se de «Lucus». Prendeu-lhe o saco e afagou-lhe a crina. Vestiu a capa, calçou as luvas e saltou para o dorso do cavalo. Perscrutou o horizonte, virou as rédeas a poente e desceu até, ao arvoredo que cobria um outeiro do outro lado do vale. Quando se fez ao caminho, Bernardo tinha apenas por companhia a canícula que se colava ao corpo». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, Publicações Europa-América 2010, edição nº 103583/9344.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT