Cortesia de mundolusiada
«Mas um outro episodio, semelhante a este, porque ao primeiro aspecto, o trágico, sucedera um segundo agradável, deu-se com o cão de bordo, um terranova comprado em Halifax, e que Halifax se ficou chamando. Numa volta de mar, que o arrastara, desaparecia o lindo bicho; uma outra devia porém tê-lo posto a bordo, porque mais tarde foram encontrá-lo, muito escondido com susto, no fundo do virador colhido. Negrão, quase ao findar do temporal, desconfiando, pela altura da vaga, que o navio tivesse caído muito e se achasse próximo do banco, foi ter com Antero para lho dizer.
Este continuava impassível a ler e a consultar os livros alemães, e olhou para o amigo na mais completa indiferença, sem ideia de qualquer coisa a recear. Apesar de isso o capitão preveniu-o de que talvez se achassem sobre o banco.
— E se lá chegarmos?... perguntou Antero.
— Desfaz-se tudo, não escapa nada.
— Pois então, quando você vir que isso está vai não vai para acontecer, venha dizer-mo, ou mande cá. Verdade, verdade, eu não ganho nada com isso. Mas venha sempre; talvez até eu -lá chegue acima. Depois resolverei conforme me achar.
E continuou a ler.
Negrão subiu ao convés. Vinha nesse momento tomar o leme um velho marinheiro que andara já à pesca do bacalhau e conhecia aquelas paragens. Quando passou pelo capitão, disse-lhe:
— Quem vê partir este mar há-de dizer que o fundo não está muito longe.
—Você está doido! bradou Negrão.
Qual fundo nem meio fundo! Quando eu julgar preciso, logo aviso.
— Peço perdão, senhor capitão.
Mas o desânimo já ia lavrando entre a marinhagem que até pensou em oferecer a vela grande à Senhora da Conceição. Pelas duas horas da manhã começou porém a abater o vento e a abonançar. Foram largando algum pano para impedir que o navio continuasse a cair. Por fim, virando o vento, meteram de todo ao mar e viram-se livres de perigo. Negrão descia novamente à câmara de Antero para lhe comunicar a boa nova.
—Amigo, desta escapamos nós.
—Está bem.
Tais foram as únicas palavras que o poeta pronunciou. «Evidentemente ele não tinha o menor receio da morte, como mais tarde demonstrou», diz-me Joaquim Negrão.
Nova York
Cortesia de artgeist
Parece que o nosso «patacho» atravessou de feito um ciclone, mas no seu ramo menos violento. Por quarenta graus de latitude, penso eu que essas tempestades não conservam já a energia atingida no seu ponto de formação, a zona tórrida, visto como ganham em amplitude à maneira que avançam. Mas a viagem realizou-se em Setembro e, nesse mês, mais ainda em Agosto e bastante menos em Outubro, é que as estatísticas registam maior numero de ciclones no hemisfério boreal. Além de isso, a descrição do capitão do navio parece concordar com o que o estudo da «Lei das tempestades» nos ensina a tal respeito. Julgo porém necessário dizer em breves palavras como se constitui um ciclone para se compreender a situação em que se encontrou o «Carolina».
Os ciclones, segundo se pensa, formam-se geralmente por 10 graus de latitude e são constituídos por uma espécie de furacão giratório, animado de grande velocidade, cujo centro segue uma trajectória parabólica, com vértice voltado a oeste, entre 20 e 30 graus de latitude. O movimento de rotação, no hemisfério boreal, faz-se por norte, oeste e sul, isto é, em sentido inverso do dos ponteiros dum relógio. O temporal em questão tem pois dois lados: o perigoso, ou da direita, para o observador que olha no sentido da sua marcha, no qual se adicionam as duas velocidades, de translação e de rotação; o «manobrável», (no tempo da navegação á vela o lado que hoje se designa por manobrável, era, ao que parece, chamado lado velejável), ou da esquerda, em que as duas velocidades se subtraem.
Ora, atendendo ao que nos diz o capitão do «Carolina», este achava-se no lado «manobrável»; a maior dificuldade que teve a vencer resultaria pois da distância relativamente pequena a que estava do banco, quando o mau tempo o alcançou. Segundo a «Lei das tempestades», o navio, enquanto pudesse, devia fugir a sotavento para se afastar do centro do ciclone. Mas, nesse caso, era lançado sobre o banco onde fatalmente naufragava. Viu-se pois forçado a receber o vento por estibordo, e a aguentar-se por forma que caísse o menos possível para oeste, sem contudo fugir do temporal.
Joaquim Negrão
Antero de Quental
Cortesia de antoniocarneiro e lutadoresdarepublica
Eis o que parece depreender-se dos dados colhidos na narrativa do capitão e do pouco que se sabe acerca destes meteoros, que ainda assim vai muito além do que eu sei.
É certo que a extrema violência e a natureza desse temporal parecem confirmar-se pela seguinte noticia que encontro no «The Illustrated London News» de 23 de Outubro de 1869: On the 2nd and 3rd inst. a tremendous storm of wind and rain visited a large área of the United States. There were floods in all directions, from Washington to Philadelphia, Albany, and Syracuse. Landslips are also reported, and great damage has been done, bridges broken down, lines of railway urecked and swamped at different points, and houses and workshops thrown down».
Dir-se-ia que, conforme acontece muitas vezes com os verdadeiros ciclones, em terra e a certa distância do centro principal, se formou um centro ciclónico secundário que, desde Washington, caminhou também para norte até Albany e Syracuse, portanto entre 39 e 44 graus de latitude, ganhando sucessivamente em amplidão e perdendo-se por fim.
O enciclopédico «Larousse» diz-nos que, nas zonas temperadas, os ciclones perdem, a maior parte das vezes, os seus caracteres especiais, confundindo-se então com as tempestades dos respectivos países; á maneira que avançam, acrescenta, vão alargando e enfraquecendo. Não deixa porém de lembrar que eles pertencem aos fenómenos meteorológicos regionais e dependentes das estações. Por outro lado, é certo que o «Carolina» se encontrava na região percorrida por esses temporais e na estação em que eles mais se produzem.
Interessante, portanto, seria apurar, nos registos dos observatórios, nos diários de bordo, nos relatos de viagens e até nos jornais da América do Norte, tudo quanto se relacione com este temporal em que, por um triz, não naufragou o «patacho Carolina», capitão Joaquim de Almeida Negrão, levando a seu bordo Antero Tarquínio de Quental.
A partir desse momento, a viagem fez-se sem perigo, sem nada de maior, mas sempre com ventos contrários, o que a tornou muito longa e incómoda. Gastaram nela 52 dias ao todo. Em virtude da deslocação do trigo, inevitável apesar da divisória longitudinal do porão, o meio fio, e das precauções tomadas, o navio adornou, (O meu sempre modesto dicionário parece considerar, neste caso, o verbo adornar como corruptela de adernar, que define: meter-se debaixo de agua. Quero crer que assim seja e até gosto mais da segunda forma. A significação é que me parece trágica de mais. O navio, quando aderna ou adorna, apenas tomba para um lado, mas nem a borda mete dentro de água. Pelo menos, com estes ares é que tenho visto empregado o termo em questão) sempre um pouco para bombordo.
Antero continuava enjoado na câmara a estudar alemão. Só se levantou em Portugal, a não ser quando tomava banho. Chegara a tal magreza, por nunca reter os alimentos, que Negrão temeu um desenlace fatal. Recorreram por isso aos banhos rápidos de imersão em água salgada fria que lhe davam dois homens de bordo. Pegavam nele e levavam-no nos braços, completamente nu, até á banheira improvisada e, logo que o tiravam de dentro, davam-lhe uma fricção em todo o corpo «com mão de marinheiro».
Antero achava muita graça ao caso que parece ter-lhe aproveitado; de facto, ele só retinha a refeição, leite ou farinha, que tomava sobre o banho. Repunha todas as outras (56)». In António Arroyo, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2.
Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT