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Em Tempo dos Rouxinóis.
«Pressentia-o como uma lenda distante e inacessível. Um misto de herói cujos feitos desconhecia, mas cujo espírito se impunha à evidência sempre que se abordava a apatia da cidade face ao regime. Desconhecendo a figura, achei, no entanto, natural, quando, em terras longínquas me exigiram a troca do meu nome por um pseudónimo (por razões de segurança), e de imediato me ocorreu o seu apelido.
Regressei com o 25 de Abril já sem chama e encontrei as hostes e os exércitos da utopia, que parecia ter estado tão acessível, tão à nossa mão, já desmembrados e já descrentes. A realidade tinha sido mais forte que o sonho de uma juventude farta de guerras sem sentido e de futuros sem horizontes.
Naquele tempo, para mal dos seus pecados, tinham sido «desterrados» para a nossa cidade um significativo grupo de jovens médicos com os quais convivi e me relacionei. Guardo da maioria deles as melhores recordações e apesar das vicissitudes da vida inapelavelmente nos ter afastado físicamente, haverá laços de amizade que perduram na nossa memória, e serão, garanto, indestrutíveis. Foi através deste grupo que conheci o Dr. Feliciano Falcão. Que fascínio exercia este homem com idade para ser avô de qualquer um desses jovens médicos? Não seria só a do mestre e experiente médico em quem eles procuravam conhecimentos e conselhos em termos profissionais.
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No entanto ele era um pólo aglutinador de todos os que frequentavam a sua casa quase como um local de culto e ao mesmo tempo de acolhimento. Seria a sua vasta e eclética cultura que atraía a curiosidade de quem, num tempo efervescente de ideias e de saberes vários, queria estar a par, queria estar por dentro das coisas? É possível que tudo isto tivesse alguma influência, mas não esqueçamos que os jovens médicos eram naturalmente detentores de uma sólida bagagem cultural ou não fossem eles fruto de uma rica simbiose universitária que transitou do pré para o pós 25 de Abril.
Seria obviamente esse fascínio que irradiava da figura de Feliciano Falcão, a imensa bagagem cultural e a serenidade de quem tem por detrás de si um saber de experiências cavadas à sua custa.
O percurso da sua vida e obra mereceria uma reflexão mais profunda e oxalá o contributo desta edição seja apenas um despertar para outros trabalhos futuros que possam honrar a memória de tão distinto Portalegrense.
A lição mais bonita que Feliciano Falcão nos transmite é a da humildade. Ao contrário da esmagadora maioria dos homens nascidos em condições semelhantes, ele afirma as suas origens humildes e, ao longo da sua vida, criticando a miséria espiritual e material dos simples, é politicamente ao lado deles que se empenha.
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Distante na sua postura cultural e ética, compreende, no entanto, as razões daqueles que nunca viram a luz do espírito e reproduzem atavicamente formas humilhantes do ser enquanto humanos. «Evocação das Raízes», transcrito nesta obra, é um texto paradigmático do seu pensar e da sua intransigência para com a mediocridade. O seu conhecimento «in loco» do modo de vida das populações, completamente abandonadas à sua sorte, longe da evolução das ciências e da técnica, longe da assistência médica e medicamentosa, longe da assistência social, provocam-lhe uma natural revolta que expressa através de um texto intitulado «De Médico a Curandeiro em Terras Medievais», publicado pelo «República» em 1945 (transcrito nesta obra). A crueza do seu relato sobre a vida miserável nos campos terá suscitado fortes ódios por parte do regime. A sua coragem em tempos tão difíceis deverá ser dada a conhecer aos seus concidadãos e aos jovens primordialmente.
Está previsto um encontro de familiares, amigos e admiradores do Dr. Feliciano Falcão sendo apresentada esta obra que procura resgatar do esquecimento o exemplo da sua vida. O local é o «Café Alentejano». Foi aqui o nosso último encontro. Contava-me então da sua felicidade porque um rouxinol tinha cantado toda a noite junto da sua casa - «um rouxinol completamente maluco». Depois, e talvez por causa desse rouxinol, desabafou com um ar triste sobre a inevitável caminhada da vida para o seu término, onde não consta que se possa ainda fruir da companhia dos entes queridos, ou haja jardins à medida dos rouxinóis e das suas sinfonias». In Feliciano Falcão, Memória Viva, António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT