Cortesia de pea
A Torre
«A carta que o rei Afonso IV escreveu então ao seu primo rei de Castela, Afonso XI, foi em muitos sentidos o primeiro acto do seu governo. Ela coincidiu com toda a ordenação regimental das Cortes de Évora realizadas já no fogo da Primavera. A carta exprimia ao primo o júbilo de o ver reinar como filho de rainha portuguesa e pedia-lhe finalmente que, por motivos de vária ordem, não desse asilo a seu meio-irmão Afonso Sanches. É provável que a carta tenha sido redigida num dos átrios do palácio de Évora, onde o rei recebia à arde os procuradores e os senhorios.
Afonso XI tinha acabado de chegar a uma maioridade forçada e recebeu essa carta, escrita talvez por entre a cal fresca das paredes da cidade de Évora, no meio das atribulações do seu sucesso. Tinha apenas catorze anos, mas raramente abandonava a sua cota de ferro ou o seu montante. Tinha-se criado na labareda do desastre que tinha sido a morte de seu pai em 1312,logo seguido da mãe em 1313. A regência do reino foi a história acidental de algumas mortes, uma das quais a da sua própria mãe. Mas, a regência do reino foi também a persistente ascensão dum nome: o de João Manuel, fidalgo castelhano, nascido em Escalona em 1282. O pai deste fidalgo era filho de Fernando, o Santo, e era por isso irmão de Afonso, o Sábio, compilador dum cancioneiro poético em galaico-português, que reinou de 1252 a 1284. Este parentesco tão chegado a Afonso X deu a João Manuel uma imagem tutelar, de que nunca mais se libertou. A importância da estrela de João Manuel era já de tal ordem que, depois das Cortes de Valadolid, que tiveram lugar no Verão infernal de 1325, onde se confirmou o filho de Fernando IV no trono de Castela, Afonso XI pede ao fidalgo, ainda seu parente, a mão da filha, chamada Constança.
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Constança, filha do primeiro casamento de João Manuel, tinha na altura onze anos incompletos, ainda que as suas ancas tomassem perfil, um perfil bem avolumado, no tule acetinado do vestido. A mulher era nesse tempo, sobretudo antes de casar, um sério trunfo diplomático. Podiam-se fazer ou desfazer reinos consoante a existência ou não existência dum certo tipo de mulheres. Conferia-se à mulher um poder simbólico, que, apesar de aparentemente vazio, tinha mais efectividade que qualquer outro. Passiva, silenciosa e a maior parte das vezes ausente, a mulher aparecia-nos como um ser contemplativo que mudava o mundo consoante a sua própria sorte. Não tinha o dom frontal da palavra, o que a afastava dos lugares de Estado, nem o dom da força, o que lhe vedava desde logo os lugares da guerra, mas tinha a irrequieta beleza das coisas intemporais, que a levava por vezes a ser o bojo desconhecido de todos os destinos. Pode-se comparar; nesse tempo, a mulher com uma flor ou com um pássaro. Ela, a mulher, estava entre o estuque das paredes como numa gaiola não de vidro, mas de oiro, e o seu poder era imenso.
Cantava em segredo, no recôndito dos quartos e dos seres, como um enigma, uma diferença que todos admiravam. A própria homossexualidade lhe era homenagem, um pudor que lhe era consagrado. Constança Manuel tinha estado já, apesar da idade, e talvez por isso mesmo, prometida em casamento. A promessa de casamento era, no fundo, uma promessa de aliança, aliança entre duas casas, entre duas famílias ou até aliança entre dois reinos. Trocava-se uma tal promessa como se troca, na vida civil, um contrato menos rendoso por outro mais vantajoso. É claro que um tal contrato tinha na época uma rentabilidade que não passava propriamente pela moeda. A moeda era um emblema, um brasão, um distintivo, um sinal e até uma sabedoria; e não uma forma de multiplicação. A moeda não estava ainda vulgarizada e deve ser mais vista como um objecto a ser estudado pela heráldica, do que pela economia. A facilidade com que se trocavam contratos era também a facilidade com que se podia cair em desgraça. Quando João Manuel, o fidalgo de Escalona, aceitou o pedido de Afonso XI, estava no seu palácio de Toledo, cidade que tinha na altura o mais rico simbolismo peninsular. Ele não pode, porém, imaginar que João, «o Torto», a quem Constança Manuel tinha estado prometida, fosse envenenado. Eram não só os casamentos que se desfaziam como atilhos, mas também as vidas.
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Conta-se que foi justamente para iludir a aliança entre João Manuel e João, «o Torto», que o rei pediu Constança em casamento. E conta-se ainda que no Inverno frio, que desceu sobre os penhascos da Mancha, João, «oTorto», teria avistado ao fundo, no sopé duma pequena encosta um belo castelo com janelas de ouro torres de diamante. A Mancha é, de facto, propícia a essas aparições fantásticas, que diferem substancialmente daquelas que é possível conceber a partir do mar. A pobreza da terra, uma terra que vive sobretudo da transumância, cria aí ilusões, que se reconvertem constantemente em cinza. Foi por isso um péssimo sinal essa labareda destilada ao poente e rapidamente humedecida em cinza. É típico do ibérico da meseta perseguir essas visões, até à perigosa derrocada de todas as suas torres. Tudo se desfaz, ficando apenas, nesse último instante, o presságio íntimo dum encontro perdido.
O casamento não era ainda o matrimónio. O primeiro era assistido por um inumerável conjunto de circunstâncias, que faziam dele mais um acto diplomático do que propriamente uma questão de paixão. O segundo requeria já menos razão mais paixão e era, pensava-se, o laço necessário que uniria, depois de vinculados pela igreja, o homem e a mulher. Foi no fim do Verão desse ano de 1325 que o jovem rei Afonso XI recebeu a bênção do casamento com Constança Manuel. Valadolid é uma cidade triste, onde desembarcam, como que chegados do infinito, as mais poeirentas carroças da meseta. O mar biscainho fica suficientemente longo para não se dar por ele e só a poalha da terra sopra por entre as apertadas ruas da cidade; Constança Manuel era uma adolescente, com a luminosidade própria da idade, e não propriamente uma menina. Repare-se que uma menina não tem memória de qualquer espécie, enquanto uma adolescente olha para o passado e sente, talvez pela primeira vez, uma indefinida melancolia, que é o limiar mesmo da memória. Constança entrançava o seu cabelo louro, dispunha dum conjunto de coifas, que não cabiam quase no quarto, e usava já uma cinta para o busto. O adiamento do matrimónio, se a deixou aparentemente indiferente, despertou--lhe no íntimo uma esperança, que lhe alimentava ardentemente os dias. Viu o jovem Afonso XI entre as colunas do átrio do palácio de Valadolid, quando este despedia os homens dos Concelhos. Avistou-o, mas ficou, só por isso, vivamente impressionada. Um fogo abrasado passou-lhe a subir ao rosto quando, no sossego do seu quarto, com a janela aberta sobre a Meseta, pensava nele. Quando se pensa em alguém que se não conhece mas se deseja o coração parece dar o sinal do que se requer. A exaltação é sempre um estado de ânsia e de desconhecimento, que mistura em si a água, isto é o mistério, e o fogo». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.
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