«Nos arquivos e bibliotecas portugueses, sejam eles de carácter central ou local, pode encontrar-se um rico acervo documental que nos dá testemunho, nas mais distintas perspectivas historiográficas e socioculturais e religiosas, do «peregrinar», essencialmente durante a Idade Média, desta terra lusa até Santiago de Compostela.
Múltiplos têm sido os documentos que, sobretudo desde 1969, nos temos empenhado em recolher e descodificar, no âmbito desta mesma tendência histórico-religiosa, a partir do conceito braudeliano de história como factor social total. Com efeito, numa análise sucinta e tão alargada quanto possível do fenómeno dos «caminhos portugueses para Santiago», vimo-nos confrontados com informações do mais variado teor.
Partindo-se, assim, de uma premissa de carácter religioso, dado que todo o «peregrinar» envolvia, na sua essência, a prestação de culto, toda essa mobilização do binómio homem e espírito-religioso se via irmanada com toda uma série de sucedâneos. Tinham eles a ver, entre outras questões, com o que sucedia ao crente na sua peregrinação desde sua casa até ao santuário do túmulo do Apóstolo em Compostela, a forma como se deslocava, se vestia, alimentava ou comportava, ou, já no sentido do regresso, a forma como transportava esse mesmo ideal de culto medieval, ou se mantinha fiel, durante gerações sucessivas, a esse mesmo espírito religioso.
Traçado da «Estrada Mourisca» de Campo Maior a Coimbra,
por Assumar, Crato, Sertã, etc., e da sua paralela de Badajoz a Montemor-o-Velho.
Cortesia do institutoportuguesdopatrimoniocultural
Das vias por que seguiam os peregrinos e dos espécimes de folclore religioso e profano que entoavam
A todo o peregrino era dado acolhimento nos albergues ou hospícios situados nos caminhos por onde transitava. Dessas vias, espalhadas um pouco por todo o País, ganhava significativa nomeada, particularmente nas regiões a norte do Tejo, a que ligava Lisboa, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Soure e Coimbra. Aí esse percurso entroncava com dois outros: um proveniente de Lisboa e que passava por Santarém e Tomar; e aquele que, denominado «estrada mourisca», ligava as regiões centro-fronteiriças, nomeadamente as áreas de Elvas e Campo Maior, com a cidade do Mondego, passando por Assumar, Crato, Barca de Amieira, Cardigos, Sertã e Miranda do Corvo. Alguns dos nossos depoentes mais antigos ainda se recordam de, na sua meninice, terem assistido, por altura dos festejos de Sant'Iago na Galiza, no mês de Julho, à passagem dos romeiros.
Conquanto de Coimbra a Santiago de Compostela a via mais utilizada fosse a que ligava Porto, Póvoa de Varzim, Viana do Castelo, Caminha e Tui, não deixavam de existir outras, ditas alternativas. Com efeito, para lá daquela que habitualmente designamos por via do «noroeste português», tinham também uma significativa utilização as vias que do Porto seguiam por Vila Nova de Famalicão, Braga e Ponte de Lima, bem como a que ligava Régua, Vila Real, Chaves e Verim. Até à Régua e proveniente das Beiras, existia um outro percurso, que proveniente das regiões de Castelo Branco passava por Belmonte e Meda.
Vias romanas do Centro de Portugal, segundo Mário Saa
Cortesia do institutoportuguesdopatrimoniocultural
Apesar de a via do «noroeste português» se nos afigurar como a mais frequentada pelos peregrinos, a de Braga, que assentava sobre uma «geira» romana, não desfrutou de menor popularidade, superando-a mesmo numa perspectiva histórico-viária e datando já dos primevos tempos da Lusitânia. A estrada imperial da Geira foi, com efeito, para Domingos M. da Silva «o mais importante monumento da romanização, com suas dezenas de padrões ou marcos militares que, de milha a milha, iam marcando a distância a que ficavam de Braga, além das muitas inscrições dedicadas aos imperadores, cônsules e outras personagens da antiga Roma, pelo estreito convívio de cooperação entre os naturais vencidos e o vencedor, a que certamente a seu tempo obrigou esta extraordinária obra».
Em todos os caminhos conducentes a Santiago de Compostela, desde o século X aos tardios séculos XVII e XVIII, podiam-se encontrar os mais variados hospícios de acolhimento aos peregrinos. Aí prestavam valiosos serviços de assistência quer os membros das Ordens religiosas, quer outros indivíduos vocacionados para o efeito. Aí, em termos de prática clínica, de assistência social e espiritual, davam as mãos, para lá das medicinas hipocrática e tradicional, auxiliares de culto como a própria alquimia e a adivinhação». In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.
Cortesia de Instituto Português do Património Cultural/JDACT