terça-feira, 6 de setembro de 2011

César de Frias. A Afronta António Nobre. Parte II. «Livro após livro, numa produção diluvial e toda numa sequência de estampidos de morteiros, verruma-o o delírio de fugir ao esquecimento, essa suprema tortura dos artistas, mas para ele apenas o fantasma da ruína, o estancamento duma fonte de mandantes proventos»

Cortesia de sebodomessias

«Mas voltemos ao sério, que o caso serio é.
Demais tem sido a complacência de todos nós, leitores e escritores, velhos e novos, ante as suas arremetidas habilidosas de «jongleur», literário, complacência que já vai tomando visos de cobardia. Urge entravar-lhe o passo, pois mal irá a um povo que alarvemente se ri ou, pelo menos, não se indigna ao ver um funâmbulo no meio da praça esfarripar, caricaturar, cobrir de lama as memórias dos momentos mais altos da sua história e dos vultos tutelares e eleitos da sua estirpe! Urge despertar a consciência pública, por estas claras coisas ainda interessada, de modo a iniciar, a pôr em marcha, a intensificar um movimento de reprovação contra os processos literários do sr. Forjaz, que, obstinadamente, quase sem um eclipse, desde a sua estreia, se caracterizam pela falta de escrúpulo na escolha dos assuntos, pela carência de higiene moral, pela ostentação de cinismos e torpezas, pela ausência de superiores motivos de beleza, pelo ar artificiosamente «frondeur» das suas asserções perseverando no erro, tão abusado nas gerações últimas, de imbuir de pessimismo e descrença a mentalidade hodierna, condenável catequese que nele tem ainda a agravante de não ser espontânea, sincera, mas sim filha dum cálculo menos honroso. Livro após livro, numa produção diluvial e toda numa sequência de estampidos de morteiros, verruma-o o delírio de fugir ao esquecimento, essa suprema tortura dos artistas, mas para ele apenas o fantasma da ruína, o estancamento duma fonte de mandantes proventos. O que mais teme é que os milhares, verdadeiros ou fictícios, das suas edições encontrem um dia no indiferentismo público a eclusa que imobilize e estagne a massa limosa e pútrida da sua torrente : por isso, aos pinchos, aos urros, mantendo sempre viva ao redor de si a atmosfera vermelha do reclamo, tem conseguido, com provas medíocres de talento, galgar vertiginosamente os postos da hierarquia literária, onde hoje ostenta largos e doirados galões.

Cortesia de wikipedia

Pois bem:
  • erga-se de toda a parte um brado de indignação e de reprovação contra aquele autor, que vá arrancar as cataratas aos olhos dos que, por ausência de bom gosto e de ordenada cultura, vivem fanaticamente boquiabertos diante do seu malabarismo, e que, paralelamente, o force a parar e a arrepiar caminho, sob pena de ser exautorado, de se lhe arrancarem os galões que pavoneia;
  • ou aproveita as suas medianas qualidades de escritor em trabalho sério e dalgum modo belo, ou o público se desinteressará dele e das suas malas-artes, relegando-o para o charco em que chafurdam os literais sem mérito e sem vergonha.
Compreende-se, quase mesmo se desculpa, o exotismo das suas «Palavras Cínicas». Representam um «golpe de estado» literário para se apossar dum lugar a dentro do «cercle» da notoriedade, barrado hermeticamente pelos consagrados. Quase todos os novos sentem necessidade de dá-lo, em vista do já tradicional egoísmo daqueles, incapaz de se descerrar para acolher os recém-vindos. O sr. Forjaz deu o seu com um êxito pleno: as censuras e os aplausos silvaram à sua roda, foi discutido barulhentamente, decoraram-lhe o nome, compraram-lhe o livro. Assim, forçada a porta do destaque, impunha-se-lhe despir imediatamente a vestimenta vistosa e jogralesca do assalto e, compenetrado da linha fidalga da sua missão, deitar-se ao trabalho progressivo, a um trabalho pautado por normas do bom senso e inteligência equilibrada, seleccionando o pendor que lhe fosse próprio e construindo nesse terreno a sua catedral de beleza, com voadura de arcaria conforme ao sopro íntimo de sua inspiração. Não o fez, porém. E não o fez até hoje, como toda a sua obra o demonstra à sobre posse, porque descobriu naquela ruim espécie de literatura de escândalo um inesgotável filão de oiro.

 
Cortesia de livrariacentraleditora

Ora, o seu último livro «António Nobre» não só é disso mais um documento, como até ameaça de enveredar decidido por caminho que se lhe deve desde já tornar defeso, e onde decerto fará a mais estouvada destruição num património que é de todos nós: a lembrança venerada daqueles que, de entre a mole escura e rasurada da Raça se alçaram a atestar-lhe valores mais altos e iluminados de luz eterna, magníficas possibilidades de aquilates destinos, direitos incontestáveis à ressurreição do seu antigo e viril imperialismo, já nas energias da sensibilidade, já nas da acção.
Se o deixarmos sem freio, irá não sei a que vandálicas empresas. Esgotado o património nacional, correndo do campo literário para o scientífico e deste para o guerreiro, irá depois por todo o universo, talando, rasgando, ensanguentando, destruindo. Não ficará pedra sobre pedra. Estou em crer que já premeditou arrancar as barbas honradas de D. João de Castro, e consta-me que Aristóteles, assustado, lá do fundo da antiguidade, todos os dias implora de Jeová um raio que reduza a torresmos o Átila-anão.

É com o escopo de suscitar uma corrente de reacção contra tais processos que este livro se publica. Tem o significado dum protesto. É esse o seu fulcro, atravessando o pretexto de desafrontar a memória de Anto duma diatribe incoerente e especuladora. Assim, dividi o meu trabalho em três partes:
  • na primeira, digo da minha impressão ante a individualidade artística do Poeta do Só;
  • na segunda, foco em conjunto a vida literária, a única ao meu justo alcance e ao do publico, do sr. Albino Forjaz de Sampaio;
  • na terceira, faço a autópsia ao livro «António Nobre», a que este meu constitui réplica.
Tanto numa como noutra destas duas últimas partes não vou com o bisturi esgrimindo à laia de navalha, aceso na vesânia de só encontrar defeitos, manchas, falências, com a cegueira que dá a paixão da hostilidade. Mas, também não quebro o gume do instrumento, para suavizar o corte, para rombamente deixar indene muita fibra avariada, numa quebreira de piedade de que o atacado não tem necessidade, nem merece, nem me agradeceria, estou certo. Não tomo cenho de carrasco nem sorriso untuoso de asperzidor de água-benta. E a sinceridade que me intumece as veias do pulso na hora em que manejo a pena neste pleito é, pelo menos para mim, o bastante fiador da justiça que preside a estas páginas». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT