Cortesia de livrariacentral
«Poderiam elas ter vindo a lume mais cedo, visto o livro do sr. Forjaz circular no mercado há já meses. Poderiam, mas não deveriam, acho eu, se bem que a maior parte desse atraso se deva apenas à circunstância de só tardiamente eu ter tido conhecimento da essência da obra do sr. Forjaz, pois preocupado com outras fainas instantes no momento em que ela surgiu, mal tive tempo de lhe ler o título, ficando-me na presunção de que se tratava duma rememoração simpática, duma análise inteligente, duma homenagem enternecida a um dos mais originais e delicados Poetas da nossa Terra. Isto, apesar do pouco, mas bastante para formar tal juízo, que conhecia da bagagem escritural daquele autor não me autorizar robustas esperanças nas suas aptidões para trabalhos dum tal jaez, requerentes, acima de tudo, de identidade poética e delicada ao serviço duma especial acuidade crítica.
Semanas depois, o acaso da leitura dum jornal atirou-me para debaixo dos olhos com o registo do aparecimento do opúsculo, registo de aberta censura, e desvendou-me, então, o seu criminoso miolo. Dando razão à anemia daquelas esperanças e arruinando a presunção que o seu título traiçoeiramente me impusera, o livro em debate, em vez de simpatia, compreensão, admiração, vinha só polvilhado de inveja, de insensibilidade e do desejo escuro de diminuir o renome de António Nobre. Renegando subitamente a instância das fainas em decurso, procurei-o e li-o dum fôlego. E, ao cabo, compenetrado de que no seu autor se acentuava cada vez mais uma aguda crise de mercantilismo literário, cujos alarmantes sintomas já vinham de longe, e necessário era, portanto, opor-lhe um imediato e enérgico antídoto, lancei-me a prepará-lo. Folheei livros e jornais e revistas, investiguei e até me impus o pesado sacrifício de ler toda a obra do sr. Forjaz de Sampaio, evitando precipitações, sempre temíveis em casos tais, e recrutando e coordenando com segurança todos os seus elementos.
Cortesia de falcaodejade
E, a este respeito, julgo que me será lícito o orgulho de supor que não realizei obra leviana, peca e falha de documentação. Fica assim justificado o atraso, e a quem praticamente conheça as canseiras e o fatal consumo largo de tempo a que tarefas desta natureza obrigam, decerto até ele parecerá exíguo.
Sairá daqui mal ferido o sr. Forjaz? Não me regozijo com isso, creiam, nem o procurei, pois, aparte o meu desapreço pela sua obra, não me galvaniza qualquer particular sentimento de animosidade contra ele. Respondem estas palavras aos que, entre o gentio que lhe estrondeia batuques cultuais, queiram insinuar que vim aqui saldar rancores antigos. Pessoalmente, creio que nunca vi o sr. Albino Forjaz de Sampaio. Literariamente, estou até na convicção de que lhe devo uma fineza: a dumas referências, curtas mas elogiosas sem parcimónia, que, a propósito dum trabalhito meu em verso, publicado há uns três anos, A Luta inseriu então, e que, embora não assinadas, me deixaram convencido, pelo toque, de que eram do seu punho. Já vêem...
Quero ainda fazer notar a esses mesmos que padecem de fanatismo pelo sr. Forjaz que não abrigo a ingenuidade de esperar que ele, acossado por esta condenação, se vá pôr em fuga do campo das letras. Não, não é a vez primeira que esse gentio vê, com alma apertada, o seu manipanso fortemente zurzido. E ele, ora coxo, ora zarolho, ora manco, honra seja feita à sua indefectível valentia, jamais se arredou uma polegada da senda trilhada. Desconfio mesmo que já calejou e que as pancadas, metaforicamente falando, claro está, que lhe caem no lombo já lhe não fazem móssega alguma nem arrancam um pio sequer. De quatro tundas formidáveis me recordo agora. Uma, quando da morte de Silva Pinto. Outra, a que o sr. Avelino de Sousa, sem dó nem piedade, lhe aplicou a propósito do fado, «O Fado e os seus censores». Ministra-nos ali conhecimentos interessantes sobre a nativa pecha do sr. Forjaz de não ter uma opinião sua e fixa sobre os assuntos-temas dos seus escritos, sempre acomodatícios ao momento que passa, na busca torturada de efeitos mirabolantes, numa lógica de pé-coxinho, que, de contínuo brigando consigo própria, já não consegue crédito em espíritos rectos.
Cortesia de livrariacentral
Depois, temos a tunda mestra que o ilustre jornalista sr. Adelino Mendes lhe infligiu por ocasião da sua famosa negociata da ida a França à custa do pródigo papá-Estado, para escrever um livro de impressões sobre o “front” português. Finalmente, a quarta das que me lembram é a do “Veneno”, resposta às “Palavras Cínicas”, do sr. João Coelho, “soi-disant” escritor brasileiro, e que foi a mais infeliz de todas, pois, querem concepção, querem execução, as “Palavras Cínicas”, com todos os seus defeitos, valem bem mais do que esse livro de refutação, género literatura “gá-gá” de que se ria Fialho, trôpego na forma e, para mais, com tão desgraçada revisão tipográfica, que deixa o leitor na dúvida de que o seu autor tivesse jamais pegado numa gramática. Em pontuação, é horrível! Em resumo, faz-nos ficar com mais piedade do espancador do que do espancado.
Desculpou-o o editor, em conversa comigo, dizendo que o “Veneno”, fora escrito no veloz espaço de oito dias. Seria. E para que, se não havia nenhuma urgência a aguilhoá-lo, visto as “Palavras Cínicas” serem já velhas de catorze anos?
Seis meses ou um ano mais para essa resposta, se não lha dariam, também não lhe tirariam a qualidade de oportuna, que, em qualquer caso, já não alcançava, e tinham permitido ao sr. João Coelho realizar obra mais capaz de merecer elogios. Como veio a público, resultou mais do que inane: contraproducente.
Desta feita, repito, já vêem os senhores que o sr. Albino Forjaz de Sampaio, como de costume, receberá, firme e cínico, este meu ataque e nenhuma melhoria para ele e para nós daqui advirá, se não me secundarem todos, gritando-lhe a plena voz que se regenere e mude de processos, se quer continuar a viver literariamente, ou que, pelo menos, não alveje para assunto das suas cabriolices escriturais motivos que quase todos nós temos como sagrados.
E, então, aos de alma delicada, aos que têm sentido, como eu, o espírito deliciosamente estrelado de emoções dulcíssimas sempre que evocam a figura estranha de Anto, o Poeta singular e infeliz do
- ... livro mais triste que há em Portugal.
a esses não preciso de pedir que estejam comigo nesta cruzada. Tenho até de mim para mim que, se tomei da pena para traçar estas páginas, não fiz mais do que obedecer, por um fenómeno de telepatia, à sua dispersa mas poderosa sugestão, vibrando forte em todo o peito português, de homem ou de mulher, ainda não dessorado do leite da humana ternura, de que falava Shakespeare, e ainda ungido de amor por estas claras e divinas coisas da Poesia e da Beleza…». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT