quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Dez Anos da Morte de José Régio: Na morte de José Régio. «Entre as duas janelas voltadas para a rua, está uma papeleira com uma cruz grande, coberta de madrepérola e com dois castiçais de lado dela. Junto da parede, do lado direito de quem entra, estão duas estantes seguras na parede, numa espécie de vitrinas com pequenas imagens, muito bem trabalhadas e finas»

Cortesia de editorialresistencia

«A partir desta descoberta triste para os familiares e amigos que o admiravam com devoção e sinceridade, começaram a preparar-se as coisas para a entrega do seu corpo à mãe-terra donde viemos e onde voltaremos a entregar-nos.
Eu tive conhecimento da sua morte, no Porto, um pouco acidentalmente... Um amigo, encontrado casualmente, informava-me que Régio tinha falecido. Custava-me a acreditar. De facto, via-se, numa tira de papel, escrita, na Avenida dos Aliados, no placard dum jornal, «faleceu, nesta madrugada, em Vila do Conde, o poeta José Régio». Alguma coisa se havia consumado. Uma tristeza daquelas que nos incomodam, nos fazem sofrer até fisicamente, invadiu-me o corpo e o espírito. Não tive palavras para me despedir do amigo, o Padre João Lucas, monge beneditino de Singeverga. Sentia-me nervoso, aflito, sem raciocínio e começava a saltar-me no espírito, na memória a última imagem de José Régio, ainda vivo e a falar comigo, sentado na sua cadeira, rodeado de almofadas, a compor de vez em quando uma manta acastanhada que lhe cobria os ombros. No dia anterior, saí da beira dele bastante animado até porque o achava mais gordo de cara e ele dera-me a entender que queria tentar dar uns passos no quarto para ver se ganhava mais forças. Saí da beira dele e acenou-me com a mão a emergir por entre os frosques da manta castanha, com um sorriso nos lábios. Despedi-me de Régio ou ele despediu-se de mim, sem o sabermos um e outro com um sorriso nos lábios e um brilhar de olhos numa cara chupada de carnes, de barba feita o cabelo bastante grande para o que ele costumava trazer, mas penteado com uma risca ao lado e um pedaço levantado atrás.

Cortesia de editorialresistencia

Interrompi aqui anteontem a minha narração. Já estava um pouco cansado, mas hoje vou tentar continuar. Lá fora, ouve-se a chuva a cair e compassadamente bater no terraço. O frio estala e enregela. Passei urna tarde de preguiça, abafado entre o calor de cobertores e, mais à noite, passei pela livraria e comprei dois livros. Já de manhã no Porto, também havia comprado outros dois. Um dos que comprei agora à tarde, de autoria de Óscar Lopes, traz um ensaio sobre a personalidade de José Régio. Aquele autor tem já, por diversas vezes, nos seus escritos, abordado o problema de Régio e, mesmo neste livro, conjunto de pequenos ensaios sobre outros autores, dá a entender que ainda continuará a aprofundar o seu estudo sobre a obra multifacetada de José Régio.

Este Régio que ainda não me convenci que fechou os olhos para a luz dos mortais, destas coisas que nos cansam umas vezes o espírito e, outras, o corpo. Vejo-o ainda na sua conversa connosco, a mandar-nos caminhar um pouco à frente dele porque, depois que veio do Sanatório, sentia-se com vertigens e pouco seguro; cambaleava um bocadinho no meio das outras pessoas; vejo-o, na minha casa, a dizer que eu precisava de remodelar os quadros da minha sala de jantar, etc. Vi-o partir no dia 23 deste mês, para a sua morada, junto dos seus antepassados, no jazigo de família.
No dia 22, vim do Porto; almocei e, à tarde, fui para casa dele. Entrei com a porta da entrada meio cerrada, sem qualquer movimento de pessoas em frente da casa, mesmo dentro da casa. Fui direito à câmara ardente onde repousavam os seus restos mortais. Esta tinha sido feita na sala que ele destinava ao seu gabinete de trabalho. Duas janelas em toda a largura da parede, voltadas para a rua que um dia poderá ter o seu nome, duas entradas de frente: uma a dar para o corredor e outra a dar para um quarto interior, o seu quarto de dormir, onde ele morreu. Este tem uma saída para o jardim.

Cortesia de editorialresistencia

Entre esta saída e a entrada que dá para o corredor há uma reentrância, a alcova das casas antigas com uma mesinha com álbuns com retratos de pessoas que eu nunca conheci; um retrato que suponho é o da madrinha Libânia e dum lado e doutro duas estantes, com muitos compartimentos, parece um favo de abelhas, com livros, e, entre estes, os de Camilo que ele leu até morrer. Quando o visitei, no dia anterior, e pela última que o vi vivo, Régio dormitava com um livro de Camilo na mão. No decorrer da doença, algumas vezes, a pedido dele, mudei-lhe os livros que ele ia relendo. Levava a essas estantes uns e, em sua substituição, trazia outros. Duas estantes maiores, quase a chegar ao tecto da sala, cobrem a parede do lado esquerdo de quem entra. Entre uma estante e outra, colocou, na parede branca, um crucifixo, pintado, grande com braços a segurá-lo na parede, mas sem dedos.

Entre as duas janelas voltadas para a rua, está uma papeleira com uma cruz grande, coberta de madrepérola e com dois castiçais de lado dela. Junto da parede, do lado direito de quem entra, estão duas estantes seguras na parede, numa espécie de vitrinas com pequenas imagens, muito bem trabalhadas e finas. Entre essas duas estantes, está uma cómoda grande com uma imagem de senhora, alta, com pintura ainda bem viva, vários objectos, mas principalmente livros antigos de orações». In Paulo Ferro, A Dez Anos da Morte de José Régio, Editorial Resistência SARL, 1980.

Cortesia de Editorial Resistência/JDACT