Cortesia de ecolibri
De Feliciano Falcão
«Neste cachoar incessante de dinâmica produção espiritual, de luminosas perspectivas que anunciam o dealbar duma Vida Maior, cheia de Cor e Ideia, nesta aragem vivificante, mensageira de primaveris florações, há rasgos curiosos de moços nossos colegas que são definições das suas capacidades penumbrosas. São pérolas raras (raras?) do nosso espírito juvenil.
Uma onda de incontida rebeldia... estática, sacode as suas cerebrações maciças incutindo-lhes entusiasmos que são hinos vibrantes ao culto da serenidade pétrea, do quietismo fóssil. Debruçados sobre o mundo em chilreante devenir, impressionistas sensoriais sem mais nada, animados de míopes visões em que o futuro é para eles um mar largo e calmo, sem vagas perigosas, o sopro sublime da cultura varre os seus espíritos como o grão de areia o rochedo...
Consciências definitivas perenes de idealizações lanígeras, onde se descortinam imagens modestas, anseios fisiológicos dum viver estomacal, eis a conformação íntima desses moços - património inglório das nossas gerações. E aqui está o dinamismo «au Ralenti» dessa mocidade...
Para amostra, quero apresentar dois colegas universitários (deveis conhecer...) dessa corrente dominante. São dois símbolos. Duma cultura “sui-generis”, Jeremias e Tomé têm em si o exemplo vivo da labareda mortiça que galvaniza a juventude. Entre Antero e Preguiça, optam pelo Preguiça (este é pouco conhecido; é privilégio dos espíritos cultos como o Jeremias e o Tomé).
Cortesia de ecolibri
Ecléticos à sua maneira, as suas faculdades abarcam as actividades mais diversas, em cambiantes duma profusão intelectual curiosa:
- o «burro,
- o «foot-ball»,
- a aficion» cinéfila...
São facetas múltiplas da sua insatisfação psíquica, sensorial. E assim vão espalhando os verdores da sua cultura negativa, pelos colegas seus amigos, influenciando-os do mesmo sentido panúrgico da vida. Jeremias é, um rapaz tímido, quase gordo. Estuda muito, estilo urso, devorando os livros numa sofreguidão de ruminante (não absorve tudo, como na digestão). É hipocondríaco (tem vislumbres de Raskolnikoff, mas medular...) por intoxicação «calhamácico». A despeito de muito estudar, o Jeremias ocupa-se da literatura, para cultivar e desentorpecer o espírito, extenuado de trabalho memorial. Leu há tempos o Quixote. Não gostou. Achou-o muito imaginoso, caricato, irreal, aborrecido, enfim, por ser poeta - um autor sem a noção realista da vida, a noção gástrica. Chamou-lhe a atenção o Sancho, porque descobriu inclinações semelhantes no seu feitio.
Tem preferências interessantes: gosta da psicologia de Pualo Kock e do «profundismo» de Conan Doyle. Quase filósofo com os conceitos que a leitura destes autores lhe inspira, o Jeremias aprecia, sobranceiro, o movimento do pensamento desde Platão a Einstein, mas não se detém em nenhum. Por uma necessidade imprescindível, prefere a filosofia de Brillat-Savarin, mais substancial e caseira...
Cortesia de ecolibri
O Jeremias é um esteta, no pólo aposto ao de Wilde, aprecia, objectiva e sensualmente, Ticiano e Rubens, nas formas roliças, de carnes exuberantes, duma sopeira que tem em casa. Socialmente, é pela concorrência vital e antimaltusianista e, por isso, defende-se e arranja-se como pode.
Eis o panorama do mundo jeremíaco: para além do Jeremias, como um prolongamento da sua vida, o calhamaço, cristalização da sua alma torturada; a natureza (bela ou sem beleza, pouco importa), com as suas variedades fáunica e floral, fonte de produtos comestíveis... Dentro do Jeremias, no âmago do seu ser amorfo, uma dúvida anelante que se esfuma, se corporiza, tomando realidade num papel, o diploma redentor, carta de alforria da sua personalidade intelectual, respeitável. Que mais descortino no escaninho subjectivo do Jeremias? Ah! Flutuações, vagas flutuações num espírito compacto. O Tomé é dotado de maior vivacidade. E um rapaz de bom-tom, vestindo impecavelmente numa elegância brumellesca. Frequenta a sociedade, tem hábitos mundanos e é um pouco D. Juan. Estuda menos que o Jeremias (pois tem muitas ocupações). Não gosta de ler, porque, segundo a sua opinião, a leitura prejudica as ideias originais de que é fecundo o seu espírito. Apenas, de vez em quando, para avivai certos assuntos, lê o Diário de Notícias. É um autodidacta. Já ouviu falar de Unamuno e... Jorge Ohnet.
Antipatiza com ambos (não os conhece e, em geral, quando se desconhece uma pessoa, não se tem muita simpatia por ela...). Na filosofia do Nada, atingida «à priori», sem grande esforço, o Tomé encontra uma solução para a sua vida repleta de preocupações.
Cortesia da ecolibri
Encafuado na sua torre de marfim, com ideias inatas, a sua consciência obumbrada de incrustações granitóides, porque tem horror à metafísica, germina conceitos práticos de psicologia culinárica, despidos de transcendências. Independente como é, olha o tumultuar cósmico das ideias e tem atitudes de desdém olímpico, na sua face serena. De pensamento em pensamento original, o Tomé chegou aos juízos tatetas e simpáticos do Pangloss de Voltaire. É portanto um optimista. Sob o ponto de vista artístico, o gosto tomésico é mais apurado que o jeremíaco, mas unilateral também: o seu sentimento estético consubstancia-se na apreciação gulosa do modernismo feminino, fútil e vaporoso, dos fìgurinhos de Dekobra e Insúa. No campo social, o Tomé, em parte, concorda com o Jeremias: admite a concorrência vital, gástrica, mas é maltusianista por questões de independência. Não liga ao que o rodeia e com isto o Tomé dá uma manifestação de superioridade intelectual. Extra-Tomé existe um mundo infinito: chá (chá, dançante...), vácuo, tédio e legumes. Intra-Tomé: o treponema, a cor berrante duma gravata e as suas ideias inatas (portanto, Ele). Dois tipos. Duas sínteses que reflectem o pensamento dominante da mocidade universitária, da mocidade-esperança radiosa de hoje, realidade viva de amanhã. O Jeremias: obsessão do calhamaço, pote de ciência, idealista caseiro, com uma bagagem de cultura aristotélica. O Tomé: narciso, medida de tudo, vazio de noções alheias, porque é autodidacta...
Anímicos liliputianos, ensimesmados em suas locubrações estéreis e palúrdias, eles olham o Zaratustra, mas não os comove a sua dialéctica emancipadora. Lateja neles um fluído abúlico, que é desanimador, uma egoísta visão vital, nula de cilícios e fulgores intelectivos.
Nestes momentos em que por todos os cantos se apregoa a cultura dos novos com elogios permanentes, é bom que sejam lembrados estes dois colegas, pela influência que exerceram sobre a mocidade, formando uma legião de pensadores... mentecaptos, seus discípulos». NAICILEFACLAFO, Gérmen, n.º 2, 1935, pp. 33 e 34.
In Feliciano Falcão, Memória Viva, Coordenação de António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT