Cortesia de araduca
«Torquato de Sousa Soares, que desenvolveu uma persistente carreira de investigador norteado pelo propósito de esclarecer as origens da nacionalidade, e que procurou, portanto, dar um fundamento objectivo ao epíteto de «fundador» que a tradição atribui a Afonso Henriques, iniciava com as seguintes palavras uma conferência proferida em 1979 na Sociedade Histórica da Independência de Portugal:
- «não é férula guerreira que avulta no pensamento e na actividade do nosso primeiro monarca: nem foi seu timbre lutar indiscriminadamente com a única preocupação de ampliar o território nacional. Realmente, o que na sua personalidade sobressai e o impõe aos vindouros é a craveira ímpar de político clarividente, diria, talvez melhor, de rei, a quem cumpria visionar, na sua integridade, todos os problemas de que, afinal, dependia a construção viável do Estado português, com problemas esses que não eram apenas, nem sequer principalmente, de ordem militar, apesar da extraordinária relevância destes ao longo de todo o reinado».
E terminava a mesma conferência como se segue:
- «Depois de estudar este reinado com espírito isento, embora nem sempre justo, Herculano […] presta a D. Afonso Henriques a derradeira homenagem, ao invocar a gratidão nacional que o aureola, fazendo dele o símbolo vivo da Pátria, que nos aponta o dever de a defendermos e prestigiarmos sempre, aonde flutue a sacrossanta bandeira das Quinas. E a voz de Herculano ecoa ainda no coração de todos os verdadeiros portugueses».
Cortesia de lereverwordpress
Dois anos antes, em 1977, Joaquim V. Serrão publicava o primeiro volume da sua difundida “História de Portugal” e escrevia, ao terminar a narrativa do reinado de Afonso Henriques:
- «Nada mais se pode acrescentar a tão marcante elogio, porque a obra responde pela sua actuação histórica. Bastaria verificar o mapa português em 1185 para reconhecer o esforço que o infante tornado rei soube despender no inicial travejamento da Pátria. A figura de D. Afonso Henriques tomou assim uma estatura colossal perante a história, como edificador de um Estado que fez da Reconquista Cristã a sua primeira vocação em busca da mais ampla autonomia política».
Estes exemplos da maneira como é interpretada a personalidade do primeiro rei de Portugal tornam extremamente interessante ver como se formou em época mais próxima dos acontecimentos o imaginário colectivo acerca da sua personalidade e da sua função. Ao examinar, de maneira muito simples, os primeiros testemunhos acerca dele, não me anima, é claro, nenhum sentimento iconoclasta. Não me interessa sequer medir a estatura real de Afonso Henriques para saber se era ou não um génio, nem demonstrar cinicamente que esteve longe de ser um santo. Deixarei aos construtores e destrutores de mitos essa tarefa, e aos políticos o cuidado de averiguarem a vantagem ou desvantagem de manterem esta ou qualquer outra convicção colectiva, embora me pareça que os símbolos e mitos têm uma eficácia insubstituível, como representações mentais de vínculos invisíveis, e que a sua carga é tanto mais emotiva, e portanto tanto mais vinculadora, quanto maior é a coesão da colectividade que os cria, seja ou não artificial e voluntária a sua origem. Não compete, porém, ao historiador contribuir para a formação dos mitos e muito menos tentar dar-lhes uma aparência de realidade.
Cortesia de xicoinforma
Independentemente, portanto, deste problema é curioso e instrutivo verificar que as ideias dos contemporâneos de Afonso Henriques acerca dele estavam longe de ser unânimes e que nem sempre os animava uma admiração incondicional; que as principais opiniões a tal respeito se mantiveram persistentemente nos grupos sociais que as criaram, permaneceram durante muitas gerações depois da sua morte e ainda corriam, embora sob formas evoluídas, durante os séculos XIV e XV. Só no século XVI se deixaram morrer ou se procuraram enterrar certas tradições que ficaram para sempre esquecidas em textos considerados, desde então, verdadeiramente bizarros, conhecidos apenas dos eruditos e mencionados por eles apenas para lhes colocarem o rótulo cómodo e desprestigiante de lendas absurdas, como se bastasse a sua antiguidade para se corromperem espontaneamente, sem que interessasse averiguar o seu sentido, mesmo admitindo a falsidade dos factos nelas narrados.
Duarte Galvão considerou ainda o episódio do «bispo negro» suficientemente credível para o incluir na sua “Crónica del-rei D. Afonso Henriques". Mas em 1726 pareceu à Inquisição (maldita, jdact) que os capítulos 21 a 24 da mesma “Crónica”, reproduziam, em grande parte, o texto da “Gesta” eram escandalosos e tão ofensivos para a autoridade régia que não permitiu que se publicassem. Em 1952, o preconceito historiográfico contra o mesmo episódio era tão grande que o padre António da Silva Tarouca, ao preparar para a Academia da História a sua edição da “Crónica de 1419”, relegou para apêndice os capítulos 15 a 18, considerando-os apócrifos, apesar de estarem contidos nos vários manuscritos que a reproduzem, e em Duarte Galvão, que a utilizou como fonte principal.
Com efeito, a historiografia «oficial» difundiu apenas uma dessas correntes narrativas, sob formas mais ou menos exaltadas, mas sempre altamente elogiosas, iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina do nosso primeiro rei ora a faceta do guerreiro ousado e indomável ou do prudente estratego, ora a sua capacidade de hábil político ou de genial herói. Até hoje, como vimos (31)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT