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Lisboa, Paço Real de Enxobregas, 16 de Fevereiro de 1279
«O confessor D. Mateus preparava-se para aproveitar o momento em que o «Bolonhês» parecia recuperar as forças e talvez a consciência, para conseguir uma confissão. Tentava convencer um dos físicos a descer do escanho que ocupava a fim de novamente tomar o lugar deste junto do enfermo.
O chanceler Estêvão Anes, que, por seu turno, dificilmente conseguia afastar o olhar de Madragana desde que ela chegara, e até lhe piscara o olho de um modo discreto, não se incomodava muito em disfarçar o seu apreço pela dama, o que irritava ainda mais o alferes-mor. Para além da afronta de se insinuar junto da moura e de ser brindado com a sua simpatia, Estêvão Anes era colaço do rei.
Tinham sido criados pela mesma ama como dois verdadeiros irmãos de sangue. O oficial nunca perdia de vista o selo real, que suportava, quotidianamente, sempre preso à cintura com robusta cadeia e possante aloquete. A discrição, a inteligência e a obediência cega com que servia o monarca valiam-lhe muitos inimigos. Durante os anos em que ambos tinham vivido em França dedicara-se ao estudo das leis, pelo que desempenhara um papel de relevo nas reformas jurídicas e económicas que o rei levara à prática.
Encostada ao umbral da alta porta, meio oculta pelas cortinas de damasquim, Madragana, que só por uma vez retribuíra, sem que ninguém visse, o doce olhar de Estêvão Anes, espreitou para o corredor. Fora da câmara, na ampla arcada que lhe dava acesso, o jovem príncipe de dezoito anos ia e vinha de um extremo ao outro, em passos largos e nervosos, agastado pelo humilhante acto que acabara de presenciar, impotente.
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Estava prestes a substituir o pai e já começava a sentir as limitações que a Santa Sé impunha ao poder dos homens. De repente, ao fundo, vislumbrou a rainha, sua mãe. D. Beatriz deixara o Paço da sua vila de Torres Vedras e viajara para Lisboa logo que o rei ficara acamado. Caminharam, pois, na direcção um do outro.
- A bênção, senhora minha mãe - pediu Dinis.
- Como está o teu pai? - perguntou ela, concedendo-lha.
- Está na mesma ou pior - respondeu, desanimado, o jovem príncipe.
- Creio que chegou a hora de tomares o lugar que te pertence por direito - disse, dirigindo-se ao filho. - Não tenhas receio. Estás bem preparado para governar e eu ajudar-te-ei no que puder.
- Sabeis que será forçoso nomear para o governo do reino outros oficiais que não os do meu pai. Por muito leais que se apresentem, devo criar a minha própria Cúria, o meu próprio Conselho.
( … )
- Podes estar seguro disso, pois começaram antes de teres nascido. Vou ver como ele está. Sabes se há lá dentro alguém do meu desagrado? - acrescentou, mudando de assunto. - Referis-vos, certamente, a Mor Afonso?
- Espero não ter de suportar a presença dessa moura, dessa... infiel, por muito mais tempo - revelou Dona Beatriz, com aspereza.
Madragana ouvira toda a conversa, escondida numa das dobras do opaco cortinado e assim dissimulada permaneceu, tendo-lhe a rainha passado rente, sem dar por ela. Dona Beaftiz sofria também do mesmo mal da bastarda Leonor e nunca escondera o quanto a barregã lhe desagradava. Durante muitos anos, tinha engolido, em silêncio, a existência daquela maldita na Corte. Ansiava poder reduzi-la à mais ínfima condição social. Os seus motivos eram também ditados pelos torpes sentimentos da inveja. Inveja da sua formosura e de lhe ter roubado a atenção e os favores de Estêvão Anes, por quem afinal o seu coração batia desde o primeiro dia em que chegara a Portugal, vinda de Saragoça, a sua cidade natal. Queria, pois, vingança!
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Após o comentário que a rainha lhe acabara de fazer, Madragana convenceu-se de que os seus dias no Paço estariam contados. Mesmo assim, não ousou abandonar o quarto, destapando-se, lentamente, depois de a soberana passar e permanecendo junto à porta, local estratégico onde podia ser vista, mas suficientemente discreto para permanecer em sossego.
D. Mateus, tomando a água benta, aspergiu o doente e o quarto. E virando-se para a assembleia anunciou:
- Como não houve confissão sacramental, façamos um acto penitencial.
De súbito, algo de impensável aconteceu. O rei começou a berrar:
- - Para trás! Para trás, mando eu, que sou vosso rei – vociferou o moribundo, num tom de voz vigoroso, que não se sabia de onde lhe vinha. - Tirem-me essa cruz da frente... sai... sai... Oh, sinal que me atormentas!
O rebuliço no quarto era grande. Todos os presentes percebiam que aquelas manifestações não eram mais do que as breves melhoras da morte. De olhos esbugalhados, D. Afonso gritou, varrendo o quarto com o dedo acusador:
- - Deixem-me, seus cobardes! Traidores… Qual de vós me trairá quando eu morrer? Qual de vós já me atraiçoou em vida? Quem vos divulgou o segredo?
- ( … )
- Fostes vós, capelães de m…., ciosos de esmolas e de bolsas. Vai… Não preciso de ti para me absolveres. Ide chamar o Pedro. Quero o Pedro, ululou.
O outro afastou-se, mudamente, continuando a pender para o moribundo, não desistindo de tentar ouvir o que quer que fosse que este tivesse a transmitir. No meio daquela confusão, Afonso pronunciou, efectivamente, qualquer coisa ao ouvido do seu colaço. Mas logo a agonia da morte tomou conta do seu corpo, que começou a expelir anormais humores ensanguentados pela boca e pelas narinas. Os físicos avisaram que a sua hora chegara.
Dona Beatriz ordenou que chamassem por Dinis. O infante voltou à câmara no exacto momento em que seu pai estremecia com o derradeiro estertor e, após as confirmações silenciosas de mestre Pedro e mestre Domingos das Antas, perante quase toda a Corte ali reunida, o abade de Alcobaça murmurou:
- «Requiescat in pacem». O rei morreu.
E a rainha, virando-se para o infante, afirmou, indicando-o e fazendo uma vénia:
- Deus dê longa vida ao rei.
Todos ajoelharam por dupla razão:
- em memória do defunto,
- em sinal de veneração ao novo monarca.
Após este momento reinava a consternação». In Maria Antonieta Costa, O Segredo de Afonso III, Clube do Autor, 2011, ISBN 978-989-8452-28-3.
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