Francisco Bilou
Cortesia da CMÉvora
«Lúcio André de Resende (Évora, 1500-1573). Cedo manifestou vincada inclinação para o estudo das letras clássicas, nas quais se havia de distinguir como um dos maiores humanistas portugueses. Depois de ter frequentado a Universidade de Lisboa e professado na Ordem de S. Domingos, cursou as escolas mais afamadas da Europa renascentista, já na Península, Alcalá de Henares e Salamanca, onde foram seus mestre Nebrija e Aires Barbosa, já em Paris, seguindo a tradição do letrado itinerante que era comum no tempo. Conquistando a admiração e a estima dos grandes humanistas, entre os quais se contava Erasmo, Resende ganhou em breve certo prestígio em Lovaina (1529), onde escreveu o poema Encomium Lovanii. Data também deste ano o seu encontro com Nicolau Clenardo (v.), a quem havia de persuadir, por incumbência de D. João III, a aceitar o convite para mentor do irmão do rei, o Infante D. Henrique. O próprio Resende iria assumir funções idênticas junto dos Infantes D. Afonso, D. Henrique e D. Duarte no seu regresso a Portugal (1533). Ainda que adstrito à Corte, não confinou a sua actividade à educação dos príncipes e assim foi encarregado da Oração de Sapiência (Oratio pro Rostris) na sessão de abertura das aulas da Universidade de Lisboa (1534). Deste facto inferiram erradamente alguns dos seus biógrafos que Resende tivesse sido professor daquele estabelecimento de ensino.
Cortesia de algarvivo
Porém é só em 1551, como parece mostrar a Oração proferida, no Colégio das Artes, em louvor de D. João III, que o humanista ocupa uma cátedra oficial, paliativo com que se procuraria mitigar a sua decrescente influência na Corte, após a morte do cardeal D. Afonso. Mas, a aceitar-se tal hipótese, pouco tempo teria permanecido no lugar, pois em 1555 voltou à sua cidade natal e, a exemplo de muitos dos seus confrades, abriu uma escola pública a que o seu nome prestigioso atraiu alguns dos espíritos mais brilhantes da sociedade local. O seu vasto saber, uma erudição sólida, baseada no conhecimento profundo das letras clássicas, da teologia e história eclesiástica, o seu amor ao estudo e o zelo com que coleccionava achados arqueológicos criaram à sua volta uma atmosfera de fecunda fermentação intelectual, um pequeno cenáculo ou academia de reminiscência helénica, cujo influxo no movimento cultural do Renascimento português ainda não foi devidamente apreciado.
Outros aspectos e problemas continuam por esclarecer na biografia e na acção do humanista, desde os que implicam simples matéria informativa, como é para alguns o caso da lição exacta da inicial L. (Licenciado? Lúcio?), que precede o nome de Resende, aos que compreendem a importância do seu magistério intelectual. Sob o signo do tempo, André de Resende desprezou o uso do idioma nacional e, dentro da concepção do universalismo linguístico do humanismo, escreveu toda a sua obra, ou o que verdadeiramente conta como a sua obra literária, pois é diminuto o número dos seus escritos em português, na língua do Lácio, integrando-se assim na corrente europeia da literatura neolatina.
Cortesia de brownedu
Trabalhador incansável, foi um polígrafo eminente que aliou à justeza do conceito a elegância e o rigor da forma, sempre do melhor timbre clássico. Deixou para cima de cem espécies literárias, nas quais abordou os géneros e os temas mais variados. O estudo crítico e global da obra de André de Resende está ainda por fazer. No entanto podem apontar-se, desde já, algumas das linhas mestras do seu pensamento. Homem viajado, lido e curioso, aberto às novas ideias que se firmavam e discutiam na Europa, convivendo com os mais doutos representantes do humanismo, Resende foi naturalmente permeável às doutrinas alheias e elaborou-as de acordo com a sua reflexão individual.
Um dos seus trabalhos de erudição mais notáveis para o tempo, o De Antiquitatibus Lusitaniae (1593), desperta, entre nós, a atenção para os estudos arqueológicos. Para o historiador moderno esta obra enferma das limitações e do estado dos conhecimentos da época. A falta de caução crítica na utilização das fontes (a Bíblia e os escritos dos autores greco-romanos), as insuficiências da epigrafia e da filologia ainda numa fase embrionária, condicionaram o alcance e o valor das observações de Resende. Já outro é o interesse dos seus trabalhos exclusivamente literários, pois apresentam matizes diversos, por vezes até contraditórios, do seu pensamento. No poema Erasmi Encomium, escrito em hexâmetro dactílico e publicado em Basileia (1531), defende abertamente a posição erasmista e o livre exame do texto bíblico (v. Erasmismo.) A mesma atitude renovadora e inconformista perante a tradição ortodoxa do saber medieval vai afirmar-se noutro poema, De Vita aulica (1533), em que se abalança ao processo das falsas aparências da vida cortesã.
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André de Resende, por João Cutileiro
Cortesia de arqnet
Dois admiráveis trabalhos, pela frescura da observação e pelo realismo descritivo dos pequenos quadros que os esmaltam, são os esboços biográficos intitulados Vida do Infante D. Duarte e A Santa Vida e Religiosa Conversação de Frei Pedro. No primeiro dá-nos o A., com traço fino e num estilo vivo, o ambiente cortesão e m que se cria um príncipe da Renascença, D. Duarte, filho de D. Manuel I, do qual foi professor. Não esconde aí as prepotências, que são privilégio de um grande deste mundo, com aqueles que não nasceram em berço dourado. No segundo, oferece-nos um retrato enternecido de uma figura do povo, talhada num retábulo de sereno fundo conventual e todo ele banhado de um forte calor humano. A Vida do Infante D. Duarte, redigida em 1567, só foi publicada, por ordem da Academia Real das Ciências, em 1789, o cuidado de José Correia da Serra. A Santa Vida de Frei Pedro (1510), que parece ter incorrido no descontentamento da censura religiosa, pois é um dos livros mais raros de A. de R., encontra-se hoje publicada, com outros escritos seus, numa edição acessível (A. de Resende, Obras Portuguesas, in «Col. de Clássicos Sá da Costa», Lisboa, 1963). Da mesma obra havia já Lima ed. fac-similada preparada por S. Silva Neto, Rio, 1947. Estes dois esbocetos biográficos contrastam, na lisura e contenção do estilo, com a prosa túmida e ponderosa que tanto abunda nos nossos Quinhentismo e Seiscentismo. De A. de R. existem ainda mss. inéditos, como a Crónica Lusitana, utilizada por frei Bernardo de Brito (v.). As obras de Resende, dispersas pelas bibliotecas da Europa, em edições raras e de difícil acesso ao investigador, constituem ainda hoje Lima província mal explorada das letras portuguesas. A crítica erudita tem estudado aspectos de pormenor, alguns deles curiosos, por vezes de valor meramente informativo, como o da criação do vocábulo «lusíada» registado no Erasmi Encomium; mas, por ora, ainda não é possível formular um juízo definitivo sobre a produção literária do humanista. Faltam as monografias. e os estudos parcelares que permtiriam um primeiro ensaio de interpretação e apreciação geral. V. Hagiografia». In Luís de Sousa Rebelo, A Obra de André de Resende, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISBN 1645-5169.
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT