sábado, 3 de setembro de 2011

Manuel Cadafaz Matos. Para uma História da Imprensa e da Censura em Portugal nos Séculos XIV a XVI: «… que se nos coloca uma questão, de particular incidência em relação ao nosso país, se Johannes Brito não será (dado o seu apelido) um descendente de uma família portuguesa para ali em tempos emigrada. A nossa formulação de tal hipótese surge, após a leitura do artigo de Victor Falcão»

Cortesia de arquivodaucoimbra

O papel de Johannes Brito (luso-flamengo?) nas primícias da arte tipográfica europeia. Uma falsa questão
«Diversos investigadores se têm questionado, ao longo das últimas décadas, sobre se terá sido Gutemberg o verdadeiro «inventor» da tipografia. Ainda a este respeito Víctor Falcão refere que não escasseiam as cidades europeias e os países que reivindicam para si o privilégio de terem sido o berço do «verdadeiro inventor da tipografia».
  • Praga orgulha-se de Prokop Waldvogel;
  • Feltre (Itália), de Pamfilo Castaldi;
  • Schlettstadt (Alsácia), de Johannes Fust;
  • Haarlen (Hotanda), de Laurens Janszoon Coster;
  • Bruges (Bélgica), de Johannes Brito.
É precisamente acerca deste último nome que se nos coloca uma questão, de particular incidência em relação ao nosso país, se Johannes Brito não será (dado o seu apelido) um descendente de uma família portuguesa para ali em tempos emigrada.
A nossa formulação de tal hipótese surge, após a leitura do artigo de Victor Falcão aqui referenciado, na sequência de um artigo publicado (supostamente) nos primeiros meses de 1936, por Antoine Seyl, no «Indépendence Belge». E esse artigo, curiosamente, vem pôr seriamente em causa, segundo ele, a tese que afirma que Gutemberg é o verdadeiro criador da tipografia.
Afirma aí, com efeito, Antoine Seyl, citando várias provas documentais, que em 1445,o mesmo ano em que Ruppel data o «Fragmento do Juízo Final» mogunciano, se procedeu à venda, na cidade de Bruges, de um «Doutrinal» impresso. Podem ler-se no fim desse pequeno volume, em latim, estas palavras traduzidas em francês por aquele investigador belga:
  • Voyez quelle beauté dans l'écriture présente. Comparez le travail, l'écriture à l'écriture. Voyez avec quelle pureté, quelle perfection, quelle beauté le citoyen brugeois Jean Brito l'a imprimé, inventant ainsi un art admirable, personne ne lui montrant, avec des instruments non moins dignes d'éloges.

Cortesia de arquivodaudecoimbra

Tal correspondência de datas, a da edição do «Fragmento» mogunciano, supostamente, de 1445 e do «Doutrinal» brugeano, do mesmo ano, poderão levar a admitir, como já fizera em 1936 Victor Falcão, que numa se “copiou” a «técnica» da outra.
Mais importante, para nós portugueses, do que isso será, no entanto, o facto de podermos admitir ser Johannes Brito de ascendência, ou até mesmo de nacionalidade portuguesa, dado o seu apelido. É um facto que a feitoria portuguesa na Flandres só se mudou para Bruges em 1499, cidade onde já havia, no entanto, cônsules do nosso país, em 1468. Tal não obsta, porém, a que já na altura vivessem nessa cidade famílias portuguesas, ou de ascendência portuguesa, designadamente algumas famílias de judeus.
Afirmamo-lo com convicção em virtude de sabermos que muitos anos antes do decreto de expulsão dos judeus de Portugal, por D. Manuel, em 1497,já numerosas famílias de «marranos» habitavam as principais cidades flamengas. A hipótese de Johannes ou Jean Brito ser de ascendência portuguesa, facto que carece, por nossa parte, de investigações ulteriores, não deixa, assim, de se nos afigurar aqui como uma hipótese a não ignorar.
O imposto papel primordial desempenhado por Johannes Brito em relação às primícias da arte tipográfica flamenga terá de pôr-se, também, em relação a outras figuras destacadas, no mesmo contexto, em outros países do ocidente europeu.

Cortesia de wikipedia

Análise crítica da questão
Analisámos alguns documentos relativos a tal problemática. Partamos, no entanto, deles, para uma análise crítica a essa questão. Será, pois, prudente, ver em Johannes Brito a importância que Antoine Seyl lhe atribui? Será que em Bruges nesses meados dos anos quarenta já a técnica de impressão havia atingido o mesmo grau de «perfeccionismo» que na cidade onde laborava Gutemberg?
Para podermos responder a tais questões teremos, assim, e socorrendo-nos das pesquisas de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, de aquilatarmos do estádio evolutivo das técnicas de fabrico de papel e da dita Arte de imprimir naquela cidade belga ou noutras da mesma região.
Quanto ao fabrico de papel na região de Bruges sabe-se hoje, graças ao contributo trazido neste mesmo sentido por Briquet, que já entre 1362 e 1386, circulava, não só nesta cidade como noutras da Bélgica, um papel de filigrana de águia nimbada.
A proliferação pela Europa de moinhos de papel principia, então, a conhecer o seu período de franca expansão. Localizada já em 1405 a existência de um moinho de papel em Saint-Quentin, perto de Troyes (França), propriedade de um tal Guyot I Le Ber (ou Le Bé), de 1470 a 1490 pode já encontrar-se - designadamente em Bruges, o papel filigranado tipo B, saído das suas oficinas.

A utilização do papel filigranado em Bruges afigura-se-nos muito anterior à «descobertar» da impressa por caracteres móveis na região. Haverá, assim, que se estabelecer uma teoria interpretativa para a técnica utilizada pelos artífices que, em 1445, imprimiram em Bruges o «Doutrinal» estudado, entre outros, por Antoine Seyl». In Manuel Cadafaz Matos, Para uma História da Imprensa e da Censura em Portugal nos Séculos XIV a XVI, Publicação do Arquivo da Universidade de Coimbra 1986.

(Continua)
Cortesia do Arquivo da Universidade de Coimbra/JDACT