quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Páginas Desconhecidas: O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870. «Se, na realidade, o sistema constitucional já não existe, porque não hão-de os homens políticos pôr em harmonia com essa realidade os seus actos, e entrar francamente no caminho livre da violência e da ilegalidade?»

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«Os fundadores do sistema constitucional, obedecendo ainda mais à lógica imperiosa dum princípio falso do que às sugestões do depravado espírito, que devem a uma vida de intriga e escândalo, têm-se encarregado de destruir com as próprias mãos o edifício que eles mesmos levantaram.
É um trabalho preliminar que nos poupam, e que nós, republicanos, teríamos de lhes agradecer cordialmente, se não víssemos neles apenas os tristes e ininteligentíssimos instrumentos do destino inflexível, que condenou a monarquia constitucional portuguesa.
A obra é útil, e com ela folgamos: mas os obreiros são imbecis, merecem-nos só piedade, nem mesmo desprezo ou indignação. Não sabem o que fazem. Neste trabalho de destruição, o movimento militar da noite de 19 de Maio é um golpe de mão de mestre. O que a corrupção legal e formalista dos governos e dos partidos gastaria um ano a fazer, fê-lo em algumas horas a espada sincera até ao descaramento dum velho sem escrúpulos nem preconceitos.
Para convencerem a nação de que o sistema constitucional não é hoje mais do que uma palavra, precisariam um Loulé, um Fontes ou um bispo de Viseu de muita diplomacia, muita retórica e de infinita ciência administrativa. Ao herói «sans façon», que admiramos há 50 anos, bastou-lhe para isso meia dúzia de palavras ditas negligentemente, depois a ceia, a alguns sargentos da sua intimidade.

Cortesia de almocrevedaspetas

A violência não foi só mais franca e decisiva do que a corrupção, mas infinitamente eloquente. Com efeito, desvendar com um só acto a cobardia de um rei, a nulidade dum parlamento, a impotência dum ministério, a indiferença da opinião, a venalidade do jornalismo, a insubordinação do exército e o desprezo da legalidade que caracteriza o nosso mundo político; dar esta lição, tirar esta prova, serenamente, e em poucas horas, é um feito não vulgar, e, dada a situação desesperada das nossas coisas, duma utilidade evidente.
Se, na realidade, o sistema constitucional já não existe, porque não hão-de os homens políticos pôr em harmonia com essa realidade os seus actos, e entrar francamente no caminho livre da violência e da ilegalidade?
O ministério caído era inconstitucional, faccioso e corrupto; mas era tudo isto hipocritamente, a medo, com a convicção da sua ilegitimidade mas sem a coragem dela. O marechal Saldanha, dando o seu golpe de Estado, e os amigos do marechal, aceitando a responsabilidade daquele acto, colocaram-se francamente em face do país como os iniciadores de uma política nova, inauguradores sinceros duma transformação do sistema constitucional.
Qual é essa face nova? Simplesmente a da Força substituindo-se à Lei; à Lei, cujo respeito se perdeu, cujo sentimento já não existe nas consciências, e cuja prática não era, há muito, mais do que um sofisma e uma fantasmagoria.

Cortesia de poliscopio

A base do sistema era a Lei, isto é, a Ordem saindo da Liberdade: ora a Lei não existe desde o momento em que o rei, inepto e fraco, não é mais do que um manequim, movendo-se segundo o impulso daqueles que têm na mão os cordões que fazem mexer o polichinelo coroado não existe a Lei desde o momento em que as maiorias parlamentares são o mais formal desmentido à liberdade do voto e à opinião do país, e não representam, bem no fundo, senão o triunfo dos interesses particulares de meia dúzia de especuladores felizes, sobre a maioria dos interesses reais e universais da nação: a Lei não existe desde que os ministérios, compostos de homens que o país não conhece ou despreza, são apenas o parto vergonhoso duma intriga de corte, de secretaria ou de parlamento: a Lei não existe desde que a opinião, descrendo de tudo, abandonou ao acaso os destinos públicos, refugiando-se na indiferença, e deixando desdenhosamente que o jornalismo venal e ignorante se diga seu legítimo representante: a Lei não existe desde que o sentimento da Liberdade desapareceu das consciências, e que os cidadãos fogem da política como duma coisa vergonhosa e indigna de homens de bem (217)». De A República, 1870, nº 3.

In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, O Golpe Militar de 19 de Maio de 1870 e a Ditadura de Saldanha, Seara Nova 1948, Lisboa.

Continua
Cortesia de Seara Nova/JDACT