sábado, 1 de outubro de 2011

André de Resende. Vida do Infante D. Duarte: «Pardre mestre, eu sei bem o amor, que o Cardeal meu Senhor e Padre, vos tinha, e a lealdade com que vos o seruieis por o qual tenho para mi, que farei á sua bemauenturada Alma grande seruiço, em vos agazalhar a vos comigo…»

Cortesia de arqnet

NOTA. Texto na versão original

Vida do Infante D. Duarte
Dirigida ao senhor Dom Duarte, Duque de Guimarães, seu filho

Capítulo I
«Por falecimento do Infante Cardeal Dom Affonso Vosso Tio de gloriosa memoria, o Infante Dom Duarte Vosso Pay, que está em gloria, sabendo que eu era ido à Nossa Senhora de Guadalupe por seu mandado, pôs tanta diligencia em me mandar buscar, que em Merida me achou hum homem da estribeira, que a isso inuiou com huma carta, em que me dizia, que nenhuma cousa fizesse de mi, até me naõ ver com S.A., porque se temeo, que eu sabida a triste noua da morte do Principe, que com tanto amor seruia, naõ seria muito naõ tornar ao Reyno, como por ventura pela fantasia me passou. E auisado disso, o Enuiado naõ me largou mais, até ser em esta cidade, onde S. A. da volta do mosteiro de Penalonga, onde estiuera dando alguns dias ao nojo, e sentimento, me mandou chamar, e em aquelle primeiro aspecto deixou fazer aos olhos seu officio, des hi enxugandoos com huma Real e heroica humanidade, me disse assi.
  • Pardre mestre, eu sei bem o amor, que o Cardeal meu Senhor e Padre, vos tinha, e a lealdade com que vos o seruieis por o qual tenho para mi, que farei á sua bemauenturada Alma grande seruiço, em vos agazalhar a vos comigo, e a mi comuosco; ragouos que aceiteis assento em minha casa para meu mestre, o dos filhos que Deos me der, que o mais eu o prouerei como vos sejais contente”.
A isto lhe naõ respondi mais, nem estaua a tempo para poder responder mais, que beijar-lhe por isso a maõ: bem que o gosto do Paço eu o tinha já perdido; mas merce taõ liberal e honrosa com que a podia eu seruir, senaõ com me entregar ao que S. A. de mi mandasse.

Cortesia de brownedu

Fiquei entaõ em seu seruiço com nome e officio de seu mestre actualmente, e com direito de o ser de V. Excellencia, e das Senhoras suas irmans, tanto que o nosso Senhor trouxesse a idade competente para letras. Naõ possui muito tempo este bem, por ser Deos seruido leuar S. A. dahi a taõ poucos meses. Eu como já corrido de tamanhos embates da fortuna, me recolhi á minha patria, e liuraria, até que o Illustrissimo Cardeal Dom Henrique Vosso Tio se quiz servir de mi, as mais vezes em Evora, e algumas cá, sendo inda forçado ver corte, contra meu gosto.
O que foi causa de eu lançar maõ a requerer meu direito, tanto que V. Excellencia foi em idade para poder receber doutrina. Porem naõ fiz eu cá mingoa para isso: toda via para em alguma maneira hauer effeito o juro, que de S. A. me ficou, peço a V. Excellencia por merce, que em esta ida de sua, já louuores a Deos crecida, e florecente, me ouça sequer huma liçaõ, a qual espero em Deos, que se V. Excellencia tomar e guardar, delle poderaõ ficar exemplos aos filhos, que lhe nosso Senhor Deos dará, como do Illustrissimo seu Pay ficaraõ muitos, que V. Excellencia deue ter por espelhos, e em elles a miude se olhar.
Seja a base e fundamento da licaõ aquillo que Deos disse por Ifaias no cap. 51. [...]
  • Attentai, diz, para a pedra donde fostes cortados, e para a pedreira de que fostes arrancados. Attentai a a Abraham vosso padre, e a Sara que vos pario”.
Em os animos dociles e generosos grande impressaõ fazem os exemplos dos bons, mas nenhuns tanto, quanto os familiares e domesticos. Porque aquelles nos mouem, como actos annexos e produzidos da virtude; e estes álem de nos mouerem, ainda nos arrebataõ em hum certo amor, como possessaõ hereditaria de nossos maiores, a que fomos obrigados imitar.
Freio e esporas para os nobres filhos he a virtude de seus padres, e auôs. [...]

Bem podera eu aqui dar trela ao estylo, e deixalo esprayar pelo campo das Escrituras assi Sacras, como profanas; mas a cousa em geral está taõ recebida, e approuada, que lhe faria aggrauo quem inda quizesse gastar palauras em a persuadir.

Cortesia de cmevora

Antes tornando sobre a proposiçaõ, que he o que mais importa, peço a V. Excellencia por merce, que attente de que pedra foi cortado, e de que pedreira tirado, e trazido a luz desta vida, que ponha os olhos no Illustrissimo Dom Duarte Seu Pay, que santa gloria haja, e na Illustrissima Dona Isabel que o pario, que viua muitos annos. Porque dos actos, e vidas de ambos, pode fazer hum grande cabedal de virtudes para com Deos, e de humanidade, e modestia para com o mundo.
Posto que quanto a isto, o que a Illustrissima sua mãy lhe podia pôr ante os olhos, muito melhor o ve, e ouue V. Excellencia da boca e ensinos de S. A. nas lições quotidianas que della recebe, do que eu o posso escreuer, assi por naõ se dar licença aos Escritores comedidos de alargar a penna em louuores de pessoas vivas, como tambem por a propria condiçaõ de S. A. cuja muita odéstia naõ soffreria, nem tomaria bem estes gabos, inda que muy justos e devidos. Baste em summa, que Princeza filha de tal pay, e molher de tal Principe, taõ pouco tempo casada, na flor de sua idade, e ficou em castissima e perpetua viuvidade, criando seus filhos, gouernando sua familia, e muito mais pessoa em toda virtude, continencia, e Religiaõ feita hum vivo exemplo a todas as mulheres.

Naõ tenho este pejo acerca do Infante Voso Pay que está em gloria, porque já os louuores que lhe der, o naõ podem alterar, nem eu corro risco de lhe querer lisongiar, antes seria huma grande ingratidaõ aos beneficios de Deos, naõ se lhe pagar este devido tributo, maxime que o que delle escreuerei tem tantas testemunhas de vista, que nenhum receo tenho de cuidar alguem de mi, que o quero affeiçoar, e aformosentar mais do que na verdade foi.
Tomou Homero a cargo a valentia de Achilles, e prudencia de Ulysses; tomou Virgilio seu Eneas; tomou Xenofonte por argumento a Cyro, e excedendo muitas vezes os limites, e verdade da historia, e pintando-nos estes, naõ quaes elles foraõ, mas quaes deuem ser hum esforçado Caualleiro, hum prudente e sofrido Capitaõ, hum valeroso Principe e Rey. Naõ farei eu assi, que naõ ampliarei louuores declamatoriamente, nem proponho mostrar huma idea de santidade para todo genero de virtudes, que pode quadrar em Religiosos e Santos Prelados, sómente proporei hum Principe Christaõ, religioso na fé, virtuoso nas obras, modesto nos costumes, fácil na conuersaçaõ, e cortesaõ dentro dos limites da Real Corte, e cortesania, sem fumo de vaidade, e sem pendaõ de hypocresia». In Luís de Sousa Rebelo, A Obra de André de Resende, Vida do Infante Dom Duarte, Fundação Calouste Gulbenkian, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Miscelânea, Século XVI, 2003, ISBN 1645-5169.

Cortesia de FCGulbenkian/JDACT