Cortesia de consorcioartechulucanas
Da Arte
Ontologia da obra de arte
«A obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte. Em que se distingue a obra de arte de qualquer obra do esforço humano? Num exemplo simples poderemos vê-lo.
Carta frase falada, M. Jourdain. Intenção ou valor notável. Porém o valor não basta. Ele será nulo, em relação a quem escreveu a carta, ou proferiu a frase, se verificarmos que essa carta foi copiada de outrem, ou que a frase foi reproduzida. Haverá, sim, valor artístico na carta e na frase, porém o artista será aquele de quem a carta é, o que disse a frase. Uma obra de arte, portanto, é, em sua essência, uma invenção com valor. Se não for invenção, o valor pertencerá a quem inventou; se não tiver valor não será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?
Uma obra que é uma invenção com valor, de que processos intelectuais procede?
Uma invenção é uma ideia nova realizada. Há aqui dois elementos: a ideia, e os meios por que se realize. Em qual dos dois, ou de que modo, reside a essência da ideia nova?
Suponha-se um poema, que penso em escrever. Tenho a ideia; os meios, que são os princípios de metrificação e de disposição do assunto, suponha-se que os tenho, porque os saiba, tendo-os aprendido. Com isto, terei certo que farei um poema de valor, supondo sim que é original a ideia que tenho? Se assim fosse, qualquer homem de cultura escreveria um grande poema. Ciente dos meios, e podendo ter uma ideia original, bastar-lhe-ia realizá-la O que lhe falta?
Se, havendo na invenção ideia e meios, e se, supondo-se a posse da ideia e o conhecimento dos meios a empregar, ainda assim se possa dizer que não é certo que a ideia se realize com valor, que elemento especial falta considerar? Este: a ideia original tem que ser sentida em todos os seus detalhes, abrangendo o uso dos meios.
Cortesia de quirao
Isto é, o acto de invenção envolve uma fusão do fim e dos meios. Mas a fusão do fim e dos meios é o que, segundo vimos, caracteriza o acto de instinto. A invenção de um valor é portanto um acto de instinto.
Provado assim, pelo modo directo, pode isto provar-se também pelo absurdo do contrário. Suponha-se que a invenção é um acto da vontade consciente; como esta se divide na determinação e na inteligência, que aquela emprega, a obra há-de provir, ou de uma, ou de outra, ou de ambas juntas. Da intenção já vimos que não vem, e na verdade todos sabemos que a intenção de inventar nunca fez ninguém inventor. Da inteligência não vem, porque o conhecimento dos meios (que é o que a simples inteligência fornece) também não faz inventores, e os que mais conhecem os princípios da poesia e a história dela não são os maiores poetas. E se não pode vir de uma ou de outra, também não pode provir das duas reunidas.
O instinto, porém, não origina. O instinto de andar não descobre novos processos de andar. Há no caso da invenção uma fusão do instinto com a inteligência.
Não é difícil encontrar uma explicação científica. Por natureza a inteligência, embora não crie, constantemente se transforma. Um longo uso da inteligência pela humanidade criou um instinto nessa inteligência, e como a inteligência por natureza transforma, e o instinto por natureza opera, uma fusão dos dois, ou, por outras palavras, um instinto intelectual será uma qualidade do espírito que transforme operando.
Cortesia de interessantte
Mas a transformação reduzida a acto é precisamente a essência da invenção, pois que a invenção é um acto, e um acto que transforma o que há. A obra de arte, no que invenção de um valor, deriva portanto do que com propriedade se pode chamar um instinto intelectual.
Há, porém, invenções de vários géneros, e nem todas são arte. Invenção foi a de Watt, quando descobriu a máquina de vapor; invenção a de Descartes, quando uma manhã, na cama, viu de repente a geometria por coordenadas. Ambas são invenções de um valor, de nenhuma delas diremos, que é uma obra de arte. O valor da obra de arte é portanto diferente do daquelas outras. Cumpre que distingamos bem em que difere.
O que é um valor? Como há diferenças de valores, o valor é uma quantidade... É uma quantidade medida por um princípio ou critério qualitativo.
Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade, e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de arte é uma invenção com um valor absoluto. Como dissemos que a invenção de um valor procede de um instinto intelectual, diremos, da invenção prática, que procede do instinto intelectual da utilidade, da invenção científica, que procede do instinto intelectual da verdade, e assim, da invenção artística, que provém do instinto intelectual, da intensidade». In Fernando Pessoa, Páginas sobre Literatura e Estética, Organização de António Quadros, Publicações Europa-América, ISBN 972-1-01693-4.
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