domingo, 23 de outubro de 2011

Manuel Cadafaz Matos. Para uma História da Imprensa e da Censura em Portugal nos Séculos XIV a XVI: «Só desde as duas primeiras décadas da segunda metade do século XV principiaram, assim, a proliferar as mais variadas oficinas tipográficas por toda a Europa, designadamente na Península Ibérica»

Cortesia de arquivodaudecoimbra

«Neste sentido torna-se-nos hoje fácil comprovar, precisamente 50 anos após a hipótese levantada por Victor Falcão, que tal problema de um “pretenso” português (ou luso-flamengo?) ter estado associado às primícias da arte de impressão com caracteres móveis, sensivelmente no mesmo período da «descoberta da Imprensa» de Gutemberg, não passa de uma falsa questão.
Só desde as duas primeiras décadas da segunda metade do século XV principiaram, assim, a proliferar as mais variadas oficinas tipográficas por toda a Europa, designadamente na Península Ibérica. E a Igreja, zelosamente militante pela preservação dos dogmas do Cristianismo, não só vigiava com atento rigor, graças à sua apertada máquina censorial, a produção dita herética, como, mais do que isso, sempre que podia, não só mandava queimar tais obras como os seus próprios autores em pessoa ou em efígie.

NOTA: Caso concreto, também denunciador deste tipo de actuação, é o verificado na Índia, cerca de um século depois, mais concretamente em Dezembro de 1580, quando a Igreja condena o grande cientista Garcia d'Orta, «post mortem», mandando desenterrar as suas ossadas e fazendo-as queimar em “auto de fé”. Esta medida apresenta-se-nos como nitidamente antagónica à ideia de “tolerância religiosa”, e de grande abertura humanística e científica desse autor, que defendemos ter nascido em Castelo de Vide, ao contrário do que admitem outros investigadores.

E isso passava-se pela via da teatralização religiosa, a encenação do auto de fé que, incentivando as populações anónimas (iletradas por excelência) a cometerem contra tais intelectuais o maior somatório de atentados, que culminava na maior parte dos casos com a própria morte.

Cortesia de arquivodaudecoimbra

Das primeiras tipografias hebraicas portuguesas e da sua produção editorial
No caso concreto da Península Ibérica, e é o aspecto português que nesse campo, mais nos vai aqui interessar, situa-se já em 1324 a primeira manifestação de defesa da Igreja e do poder instituído contra os vários perigos que a afrontavam ou contra esses ditos «hereges». A “censura pré-inquisitorial”, primeiro, e “inquisitorial” depois, actua, assim cumprindo a «piedosa missão» para que fora criada, salvaguardando os interesses da Igreja, antes do mais, e em sua consequência, os interesses (aparentes?) da colectividade.
Não se torna hoje muito fácil a elaboração de um rigoroso e exaustivo catálogo das obras então impressas em Portugal dado que, certamente, muitas delas não terão chegado até aos séculos mais próximos. É hoje possível, no entanto, estabelecer que as primeiras tipografias criadas neste recanto da península estiveram associadas a famílias judaicas e laboraram, com caracteres hebraicos, pelo menos desde 1487.
Um dado porém a não esquecer é que para o funcionamento dessas tipografias de caracteres hebraicos nesse último quartel do século XV se tornava imprescindível a observância de quatro vectores ou vertentes fundamentais:
  • a existência de caracteres hebraicos, diversos conjuntos de caracteres importados de países onde esse modelo tipográfico estivesse mais avançado;
  • uma técnica de grafismo, vocacionada para a iluminura, e de impressão capaz de responder às necessidades de ilustração dos textos, com frequente alusão aos textos bíblicos;
  • uma mão de obra (minimamente) especializada que, tanto num plano de impressão, como de conceptualização e realização de grafismos, pudesse corresponder aos desejos e interesses dos editores;
  • a existência de significativos «stocks» de papel, proveniente das fábricas já existentes em território nacional, em que se pudesse fazer a respectiva impressão.

Cortesia de arquivodaudecoimbra

Detenhamo-nos, assim, em primeiro lugar sobre essa hipótese, atrás formulada, de uma “teoria da importação” e consequente difusão nacional dos conjuntos de “caracteres hebraicos”. É por demais sabido, com efeito, que as famílias judaicas que viviam em Portugal no século XV se dedicavam, em particular, ao comércio, transacionando não apenas dentro das fronteiras do nosso território, mas com outras firmas sediadas em várias cidades da Europa como Toledo, Gibraltar, Paris, Livorno, Génova, Nápoles, Antuérpia, Bruges, Amsterdão, Roterdão e Hamburgo. Nessas cidades situavam-se então algumas das comunidades judaicas, denotadoras de uma identidade cultural fortemente enraizada, de que nos chegou notícia até aos nossos dias.
Terá sido nas suas incursões comerciais ao estrangeiro que esses comerciantes judaico-portugueses e espanhóis terão trazido até à península quer alguns conjuntos de caracteres móveis de impressão, quer os métodos de manufactura dos mesmos e consequentemente, conhecimentos acerca da rudimentar arte de impressão. A introdução dos caracteres tipográficos hebraicos em Espanha antecedeu, ao que se presume, em cerca de meia década a que se verificou em relação no nosso país. Assim, se o “Pentateuco” (algarvio) acabou de se editar em Faro, sob os cuidados de Samuel Cacon, em 30 de Junho de 1487, o marco de lançamento da primeira obra em Espanha (nesse mesmo tipo de caracteres) data já de 1482. Foi nesse ano, segundo apurámos, que se imprimiu em Guadalajara, Castela, «o primeiro livro hebraico», os “Comentários ao Pentateuco”, de David Kimchi. O editor dessa obra foi Solomon lbn Al-Kabiç». In Manuel Cadafaz Matos, Para uma História da Imprensa e da Censura em Portugal nos Séculos XIV a XVI, Publicação do Arquivo da Universidade de Coimbra 1986.

Continua
Cortesia do Arquivo da Universidade de Coimbra/JDACT