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«29 de Fevereiro é um dia que só existe de quatro em quatro anos. Se o leitor nasceu nessa data, já sabe: dia de anos só em ano bissexto. Esses anos têm 366 dias, com um dia a mais em Fevereiro. A realidade, no entanto, é mais complexa. Em alguns casos, é preciso esperar oito anos para comemorar o tal aniversário. Os anos divisíveis por 100 costumam constituir uma “excepção à regra”; apesar de serem divisíveis por quatro, e por isso aparecerem no ciclo que gera os anos bissextos, costumam ter apenas 365 dias.
Assim se passou com o ano 1900, que teve 365 dias.
Se o leitor é de 29 de Fevereiro, no entanto, talvez se lembre de ter celebrado a data em 2000. Terá feito as contas erradas ou esquecido a regra? Nada disso. 2000 é uma “excepção à excepção” como é divisível por 400, foi um ano bissexto, tal como o foi 1600 e tal como o será 2400.
Pode perguntar-se como surgiram regras tão complicadas e se elas são necessárias. A verdade é que o nosso actual calendário, promulgado pelo papa Gregório XIII em 1582 e seguido hoje em quase todo o mundo, representa o culminar de uma longa luta pela compreensão dos ciclos astronómicos básicos e pela concepção de um calendário que se mantenha a par com as estações.
O ciclo básico de qualquer calendário é o ciclo do dia solar, a medida de tempo mais óbvia, mais universal e certamente a primeira a ser utilizada. Um outro ciclo básico, que foi muito importante em tempos idos, é o ciclo lunar. Um terceiro ciclo que afecta flagrantemente as nossas vidas é o ano solar, o ciclo anual das estações.
Estes ciclos não são múltiplos uns dos outros: não há um número inteiro de dias num ciclo de fases da Lua, não há um número inteiro de ciclos lunares num ano, e não há um número inteiro de dias num ano solar. Não pode pois haver um calendário simples e perfeito, que tenha sempre o mesmo número de dias num mês, alinhe os meses com a Lua, e tenha sempre o mesmo número de dias num ano. Os calendários privilegiam sempre um dos ciclos e prejudicam os outros.
Cortesia de xtimeline
Os primeiros calendários foram baseados nos ciclos lunares. Cada lua nova iniciava um novo mês. Cedo se verificou que um calendário puramente lunar não é satisfatório para as comunidades agrícolas, que regulam as suas vidas pelos ciclos sazonais. As civilizações antigas começaram a complementar o ciclo lunar com o ciclo das estações. Como o ano não contém um número inteiro de meses lunares, os problemas aumentaram. Em alguns casos, como se passou com a civilização judaica, o ano passou a ser variável, contendo umas vezes 12 e outras 13 meses, o que equivale a conter umas vezes 353 e outras 385 dias. Os egípcios resolveram o problema criando um calendário puramente solar. O seu ano continha 365 dias, o que era uma aproximação razoável, e o seu começo e fim nada tinham a ver com as fases da Lua. Mas a civilização egípcia teve uma vida longa. Como o seu ano pecava, por defeito, cerca de 6 horas, essas horas acumuladas começaram a fazer-se notar. Algumas dezenas de anos bastavam para se verificar que o calendário oficial se tinha desfasado da época das cheias do Nilo. Ao fim de 1460 anos, o calendário dava uma volta completa.
A civilização egípcia durou mais de 4000 anos, pelo que os astrónomos da antiga Alexandria estavam perfeitamente a par desse erro do calendário e propuseram a sua correcção. A solução que preconizavam era simples:
- de quatro em quatro anos dever-se-ia introduzir um dia adicional no calendário. É exactamente o que hoje designamos por ano bissexto.
Cortesia de asaportimao
Quando Júlio César voltou da sua campanha no Egipto não estava impressionado apenas com Cleópatra. Os conhecimentos astronómicos dos sábios de Alexandria tinham-no também surpreendido. Desejando pôr ordem no calendário romano, que estava na altura num caos tremendo, César chamou um alexandrino de nome Sosígenes e encarregou-o da tarefa. O novo calendário, mais tarde conhecido por “juliano”, em honra ao seu fundador, remodelou os meses, estabeleceu como ano 1 o ano 45 a. C. e instituiu um ano de 365 dias, com um dia a mais de quatro em quatro anos. Esse dia a mais, intercalado no mês de “Februarius”, entre os dias 23 e 24,passou a designar-se por “bissextus dies ante calendas Martii” [duplo sexto dia antes do primeiro de Março]. Por extensão, o ano contendo esse dia intercalar passou a designar-se por “bissexto”.
O calendário juliano foi adoptado pela Igreja Católica e manteve-se o calendário oficial da cristandade até fins do século XVI. A única alteração de monta foi a mudança do seu ano base. Seguindo uma proposta feita pelo monge Dionísio, o “Exíguo”, passou a utilizar-se como ano 1 a data suposta de nascimento de Cristo. Portugal aderiu a esta nova era no ano de 1422, por determinação do rei D. João I. Nessa altura era já patente que o calendário não estava a par com as estações. Os escassos 11 minutos de desfasamento entre o ano juliano e o ano solar tinham-se acumulado ao longo dos séculos e, em finais do século XVI, tinham alcançado dez dias de atraso. O equinócio da Primavera, fixado para 21 de Março, estava a observar-se a 11.
Depois de várias tentativas de reforma, o papa Gregório XIII decidiu reformar o calendário. Seguindo uma proposta do astrónomo Aluise Lilio (1510-1576), que obteve o apoio do cosmógrafo jesuíta Cristóvão Clavius (1537-1672), foram suprimidos dez dias ao calendário, de forma a repor a correspondência de 21 de Março com o equinócio da Primavera. Para evitar o desfasamento futuro, foi preciso anular alguns dos anos bissextos. Assim, passaram a não ser bissextos todos os anos múltiplos de 100, com excepção dos divisíveis por quatrocentos, que constituem a excepção à excepção. Com as novas regras, o nosso calendário só estará desfasado de um dia em relação ao ano solar no ano 4909. Temos tempo». In Nuno Crato, A Matemática das Coisas, Gradiva, Temas de Matemática, 2008, ISBN 978-989-616-241-2.
Cortesia de Gradiva/JDACT