Cortesia de enwikipedia
Um vulto dentro do nevoeiro
«Representai-vos de regresso à Europa, a bordo dum transatlântico. Imaginai-vos nas imediações marinhas do cabo de S. Vicente, em manhã que, apesar de neblina, possui a luminosidade leitosa da porcelana. Por entre a salsugem das vagas, lá podereis ver ao longe, negrejar, o promontório, como vago dragão que dorme, estirado na restinga. Vós chegastes de remotos climas, onde farfalham palmares de mistério e se desdobram cidades alvejantes ao sol tropical, florindo pelas praias, com pétalas de casario recente. Ainda trazeis nos ouvidos o repicar dum sino, entalado na órbita duma igreja centenária, aconchegada à raiz duma fortaleza histórica. Cruzastes com muitas quilhas abarrotadas de milhões. Sondastes os céus, ao sentirdes o arfar das aeronaves meteóricas, nesse vaivém da traficância internacional dos novos mundos.
E no entanto...
Quem teria provocado um lapso de centúrias, tão revolucionária metamorfose deste globo que tem centenas de milhentos de anos?
Como, quando e porquê?
Insensivelmente, os vossos olhos desfilarão a mancha escura do horizonte rasteiro. Através da gaza de névoas, eles hão-de lobrigar na fantasia uma silhueta encarvoada, indecisa, gigantesca. Os pés desmesurados são penhascos chantados na base de Sagres; o tronco maciço, o recorte dum Himalaia; o chapeirão, com seu resguardo pendente, um cúmulos a diluir-se no espaço.
Cortesia de claustrodaana
Não, não é um Adamastor de ficção.
Nem é propriamente um enigma.
Mas ninguém até hoje conseguiu arrancá-lo em definitivo ao nevoento cortinado. Nem arrancar-lhe frases de legenda. Nem desenhá-lo por inteiro. De qualquer ângulo da terra ou do mar que se esquadrilhe o seu vulto, de lá se alcança. Presente a tudo, o grande Ausente! Arquitecto ímpar da monumental História da Civilização, tem permitido sucessivas edições, sem cobrar direitos. Fautor, depois de Deus, da mudança cosmorâmica mais radical que se conhece, seria para o mundo quase um mito, quase um anónimo, se íntimos da sua grei não ciciassem, como numa prece, de tempos em tempos: Infante D. Henrique!
A tomada de Constantinopla, em 1453, tem sido considerada o impacto mais poderoso que sacudiu a Europa inteira, desde o rosicler alvissareiro das primeiras notícias do Evangelho. Ao menos, os historiadores assim o vêm repetindo. Logo veremos, contudo, se também foi o mais decisivo na reviravolta subsequente, como pretendem alguns.
À falência melancólica do Império Romano do Ocidente seguira-se a assimilação laboriosa da maré alta dos bárbaros invasores. A doutrinação fora relativamente rápida. A economia da Providência fizera assim germinar e amadurecer runa nova sociedade, na qual a “Civitas Dei” urbanizou, dia a dia, uma generalizada Civilização Ocidental.
Cortesia de lagash
A experiência especulativa dos Gregos e o pragmatismo empírico dos Romanos franquearam as estradas do Mundo à marcha triunfal do Cristianismo. Longe de ter sido a época «tenebrosa», como os «iluminados» de muitas seitas “et caterva” a acoimarem, a Idade Média foi uma radiosa madrugada de esplêndidas iniciativas: mosteiros, hospitais, escolas monacais, ordens mendicantes, catedrais, universidades, ordens de cavalaria, cruzadas, poesia trovadoresca, novelas de sonho.
O mosaico de reinos e senhorios feudais pontilhava de vilas e castelos, as encostas e os outeiros num equilíbrio social mais ou menos estabilizado. A transfusão do sangue nórdico nos povoados indígenas ou romanizados rebentava em searas de raças revitalizadas. À robustez corporal acrescia a solidez dum misticismo ardente, que arvorava a Cruz em todas as grimpas e em todos os lares. Era a “Pax Chtistiana”.
Entrementes, não muito distante, um monstro crescera e rondava em incursões inquietadoras. Fizera-se atrevido e audaciosamente voraz. O Islão.
Subitamente, o estrondear da derrocada bizantina repercutiu de lés a lés, por toda a Europa! Torres e castelos, muralhas e burgos pareceram estremecer até às raízes. Também tombou, afinal, e com inédito fragor, o Império do Oriente, o seguro baluarte que durante mil anos aparara todas as ressacas das fúrias de Leste. O mundo ocidental e cristão ficava à mercê do seu mais figadal inimigo, o Crescente de Mafamede! Cortaram-se de vez as rotas do Oriente; interpunha-se a muralha de alfanges, prenúncio da actual cortina de ferro. Pior: amputara-se a nossa ponta-de-lança, ofensiva e defensiva, que fora Bizâncio. Em seu lugar abaulava-se um arco triunfal, como convite à arrancada avassaladora do rolo compressor otomano». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.
Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT