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«Os leais servidores ali presentes, e ele era um dos seus mais fervorosos admiradores, sabiam que o “Príncipe Perfeito” não podia apresentar pontos fracos na sua governação. Fizera aumentar o seu poder esmagando o crescente número dos inimigos e descontentes, sobretudo entre a mais alta nobreza do reino e no seio da própria família, mandando degolar por crime de traição o duque de Bragança, D. Fernando, confiscando-lhe os vastíssimos domínios de terras, vilas e cidades, assim como os imensos bens de fortuna, em favor da Coroa.
Ao abater sem hesitações o mais poderoso fidalgo do reino, para mais seu primo e ainda cunhado da rainha, el-rei fizera despertar grande ódio e temor entre a nobreza, ciosa dos seus privilégios, nomes e brasões. Por obra da intervenção divina ou graças à sua poderosa rede de espiões, não tardara a descobrir uma nova conspiração para o assassinar, cujo chefe desta vez lhe era ainda mais próximo, pois se tratava de D. Diogo, o duque de Viseu, irmão preferido de D. Leonor e a quem ele criara em sua casa como a um filho. De novo se adiantara aos inimigos, atraindo o cunhado ao paço e, sem hesitações, apunhalara-o com a sua própria mão.
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Ao receber a notícia da morte do irmão, a rainha rompera em gritos e prantos desesperados que se ouviram por todo o paço, sem que as aias lograssem impedi-la de arrancar os cabelos e torcer e ferir os braços e el-rei, informado do seu estado, fora visitá-la para lhe falar das culpas do irmão e das causas que tivera para o matar, mas, perante os seus gritos e a recusa de o ouvir, ameaçara-a de a tomar também por culpada na mesma intriga do duque de Viseu. D. Leonor, varada de medo, sufocara, então, o pranto mas não o ódio que lhe crescia no peito.
Os homens, nas cousas que lhe muito cumprem, dissera ao sair dos aposentos da esposa com o rosto fechado e os olhos raiados de vermelho, se de facto são homens, não devem ter nenhuma conta com as tenções nem desejos das mulheres, as quais são sempre mais inclinadas a seus particulares apetites e vontades, que a toda boa razão e honra de seus maridos.
Mandara prender e degolar em público, para servir de lição, todos os que haviam conspirado com o cunhado e nem escaparam os que haviam logrado fugir e esconder-se em Castela, julgando-se a salvo, Pois Pêro da Covilhã por lá andara, qual lebréu a farejar e a levantar a caça, até todos serem descobertos e o seu castigo confiado a alguns assassinos a soldo.
Ao todo, justiçara oitenta adversários, alguns de muita qualidade como Álvaro de Ataíde e Fernando de Meneses e, para não escandalizar as almas piedosas, fizera envenenar encobertamente, na cisterna onde o encarcerara, o bispo de Évora, seu inimigo principal.
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Só então os atemorizados opositores, entre os quais se incluía a rainha D. Leonor, encolheram as garras e converteram-se pelo menos aos olhos do mundo em vassalos submissos, tendo a Coroa ganho finalmente o poder e a riqueza de que o generoso D. Afonso V a esbulhara, entregando-os nas mãos gananciosas dos nobres, por via de mercês e privilégios. Mas por quanto tempo os guardaria?
Sois muito má de servir
e sois sempre ravinhosa,
nam quereis ver nem ouvir,
também tocais de raivosa;
sois soberba, sois infinta,
sois muito forte mulher.
A sua atenção fora mais uma vez desviada para o jogo das cartas. A trova lançada àquela dama da rainha poderia servir também à Sereníssima Senhora, sua ama, e escutou-a como um aviso e uma ameaça a el-rei que se mostrava sempre indiferente ante o perigo.
“Há tempos de coruja e tempos de falcão”, ouvira-lhe dizer mais de uma vez e, na verdade, D. João II mostrara-se no início da sua governação como a coruja, encoberta mas sempre à espreita, atacando na sombra para se assenhorear da sua presa. Agora, forte no seu pouso, como todos podiam ver, era chegado o tempo de o falcão voar à conquista de outros céus e de mais ricos terrenos de caça.
Os arautos e passavantes tocaram as trombetas, anunciando a sua chegada e pondo fim ao jogo de cartas. Sua Alteza entrou na sala com o bispo D. Diego de Ortiz e os seus conselheiros mais privados, tomando assento na cadeira real, com os pés pousados sobre uma almofada de veludo carmesim». In Navegador da Passagem, Deana Barroqueiro, Porto Editora, 2008.
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