quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Belver. Nota histórica do Castelo. «Dentro, quase no centro geométrico da vasta praça de armas, a torre de menagem ergue a grande altura os seus fortes muros ameados. Feita para resistir ao embate dos séculos e aos potentes trons da «artilharia» medieval, as suas paredes de grossa pedra sem talhe, consolidadas por fortíssimos cunhais de cantaria, têm na base cerca de quatro metros de espessura»

Cortesia de monumentos

«O que no edifício actual subsiste da primitiva construção e, mais ainda, o que certos aspectos ou simples pormenores deixam adivinhar, provam que o Castelo de Belver foi planeado e levantado sob a direcção de um técnico bem instruído em alguns dos segredos que a arquitectura militar da época só confiava àqueles que, em perfeita comunhão de pensamentos com os grandes chefes, tanta vez lhes facilitavam, no ataque ou na defesa, a desejada vitória.
Não era certamente tão vasta como a de agora, a área abrangida então pelas muralhas exteriores; contudo, alguns vestígios acaso encontrados, ao longo da obra de restauro que há pouco se concluiu, permitem crer que a ampliação ordenada 200 anos depois, em 1390, por D. Nuno Álvares Pereira, filho, como se sabe, de um dos mais ilustres priores da Ordem, não excedeu consideravelmente o já largo perímetro da cerca primitiva. Pode supor-se até que o grande Condestável se limitou a reconstruir os muros e os cubelos arruinados, deslocando-os porventura em alguns pontos de maior importância estratégica, sempre que a feição do solo penhascoso lho consentiu. De qualquer modo, parece indubitável que é, fundamentalmente, obra comum dos primitivos construtores e do grande capitão de Aljubarrota a fortaleza que chegou aos nossos dias.

Ao sul, em face do Tejo, a muralha, ciclópica, alonga-se pesadamente, em uma curva irregular que, inflectindo para o poente, talvez delimite, no seu extremo, o acréscimo que se diz ter sofrido durante os trabalhos da reconstrução de 1390. É nessa fachada que se abre a porta principal. Ladeiam-na dois cubelos em cujas dimensões se nota, logo ao primeiro olhar, uma desproporção considerável. O que defende à direita a entrada do Castelo é muito mais estreito que o outro. Capricho ou propósito do construtor? Propósito, evidentemente.

A redução que sofreu a planta desse torreão foi determinada pelo pensamento de o utilizar com maior vantagem na engenhosa obra da defesa da porta, pois tinha por fim evitar o perigo daqueles assaltos em chusma, que outrora, em meio de encarniçados assédios, tantas vezes excitavam a bravura e o espírito de sacrifício dos combatentes.

Cortesia de monumentos

Abrindo em alto nível para uma rampa escadeada, de dois lanços, cujo topo entestava com o grande cubelo da esquerda, a porta só podia ser acometida, graças a tal artifício, por um limitado número de assaltantes:
  • apenas os que comportava o estreito espaço compreendido entre o muro da fortaleza e o que cingia a mesma rampa. Assim, não podendo atingir a porta senão de flanco e divididos em estreitíssimas filas, os sitiantes, depois de ficarem expostos, um a um, e sem possível defesa, à acção ofensiva da guarnição do Castelo, que do alto dos adarves despenhava sobre eles enormes pedras, pez inflamado, azeite ou água fervente, eram obrigados a aglomerar-se, aqueles que por milagre sobreviviam, no reduzido espaço livre, em frente da porta e quase sem possibilidade de a acometerem, já porque a aglomeração lhes tolhia todos os movimentos, já porque ali também os atingia a sanha combativa dos inimigos acumulados entre as ameias.
E não eram esses somente os sacrificados; outros ainda, aqueles que se apinhavam na retaguarda, esperando que o avanço dos dianteiros lhes deixasse lugar na rampa de acesso, caíam igualmente, sem defesa possível, alvejados pelas setas que partiam das balhesteiras abertas no pano da muralha contígua.
Acaso teria aquela porta presenciado outrora alguma dessas horríveis carnificinas medievais, não mais atrozes, todavia, que tantas outras consentidas e praticadas nas truculentas guerras modernas? Provavelmente. Os ódios religiosos eram cegos, e não raro fundavam em sacrifícios heróicos e esperança de um prémio cujo valor transcendia os limites da existência terrena.
Morrer batalhando pela Cruz ou pelo Crescente, por Cristo ou por Alá, era então, naqueles tempos de intolerantes crenças, não só um dever tradicional, mas também uma aspiração inumana, semelhante às que, em plena Renascença, nos séculos XVI e XVII, ainda levavam exaltadamente ao martírio, nas regiões inóspitas da Ásia e da África, os pregadores do Evangelho cristão. Pode talvez crer-se que essa porta, sempre mais favorável às sortidas dos sitiados que ao ingresso dos sitiadores, não tivesse, na planta primitiva, a mesma largura daquela que actualmente existe.


Cortesia de monumentos

Esta última deve ser, de facto, a que ficou ali depois das obras do Santo Condestável, senão de outras, realizadas posteriormente, em incerta época, talvez no século XVII; cumpre notar, porém, que em diversas aduelas do seu grosso arco de volta redonda se entrevêem ainda hoje algumas siglas que lhe assinam mais recuada origem. Exteriormente, sobre este arco, descobre-se na muralha uma pedra rectangular, de face lisa, a que o povo da região chama «gaveta» e que uma lenda, já muito antiga, aponta como sinal destinado a localizar o esconderijo de um grande tesouro ali acumulado para subvencionar novas guerras de extermínio contra os infiéis.

Dentro, quase no centro geométrico da vasta praça de armas, a torre de menagem ergue a grande altura os seus fortes muros ameados. Feita para resistir ao embate dos séculos e aos potentes trons da «artilharia» medieval, as suas paredes de grossa pedra sem talhe, consolidadas por fortíssimos cunhais de cantaria, têm na base cerca de quatro metros de espessura. Para permitir mais fácil acesso à sua porta, aberta a grande altura, conforme o uso antigo, construíra-se depois (mas em anos ainda distantes) uma escada exterior, também de pedra.
Dentro, no chão de rocha onde se embebem os seus formidáveis alicerces, fora escavada uma cisterna de grande profundidade. Cria-se que comunicava com o Tejo. Uma laranja que se lançasse naquele abismo artificial (asseverava-se) apareceria pouco depois no leito do rio. Não era esse o único reservatório de água potável do castelo; outra cisterna de maior capacidade, e que chegou completamente entulhada aos nossos anos, abastecia ali as guarnições imobilizadas dentro dos muros pelos intermináveis cercos de outrora.

Quando a DGEMN iniciou as obras da restauração, o castelo, embora ainda firme nos seus formidáveis alicerces, achava-se todavia desmantelado, em grande parte. Um século de abandono quase total, pois foram apenas de efeito lenitivo as reparações parciais que eventualmente se fizeram, não podia ter decorrido sem deixar atrás de si consideráveis destroços e até ruínas de certo vulto. Assim, em alguns dos paramentos exteriores dos muros havia lesões muito extensas, verdadeiros desmoronamentos; de certos cubelos, pouco mais restava que os alicerces; e na fachada do sul viam-se, hiantes, as largas fendas ali abertas pelo abalo de terra que em 1909 assolou, como se sabe, toda a região estremenha e particularmente a ribatejana». In O Castelo de Belver, Boletim da DGEMN nº 46, 1946.

Cortesia de DGEMN/IGESPAR/JDACT