segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Caminhos Portugueses a Santiago de Compostela. José Marques. «Desde a Alta Idade Média, havia consciência da necessidade de proteger juridicamente os peregrinos, bem como outras pessoas sem defesa. Apesar das iniciativas expressas numa “capitular de Pepino de Itália”, publicada entre 782 e 786, que agravava em sessenta soldos a pena de homicídio, se a vítima fosse um peregrino, e um “decreto de Ivo de Chartres”...»

Cortesia de picasa

Perigos
«Apesar dos estímulos à peregrinação, por mais fortes que eles fosses, como a força exemplar dos milagres, peregrinar ou simplesmente viajar, nos tempos medievais e modernos ou mesmo mais recentes, era um risco. O perigo espreitava o peregrino, ou qualquer outro viajante, onde menos esperava. Os peregrinos nem sequer se podiam considerar em segurança, em Compostela, isto é, junto do túmulo do Apóstolo.
Estudos recentes apresentam uma tipologia dos principais perigos a que os peregrinos estavam expostos, tanto materiais como espirituais.
Não vamos deter-nos na análise casuística, mas, entre os perigos materiais, os mais frequentes podem contar-se:
  • os assaltos por ladrões, muitas vezes, disfarçados em pessoas de bem, acabando por roubar os peregrinos, durante a viagem ou nas hospedarias, não raro, mancomunados com os hospedeiros;
  • outras vezes, eram os barqueiros, os almocreves, os comerciantes, os falsos clérigos ou falsos religiosos, e até os próprios peregrinos que lhes subtraíam os parcos haveres que levavam para as despesas da viagem;
  • os casos de salteadores violentos, como aquele que em 1743, em Ponte de Lima, tentou roubar o peregrino napolitano, que se defendeu de tal forma que o deixou moribundo;
  • perigos materiais encontravam-se na travessia dos rios, nas tempestades que podiam surpreender os peregrinos isolados ou em grupo, havendo a contar também com doenças inesperadas, sem possibilidade de assistência conveniente, chegando-se ao cúmulo de impedir os peregrinos enfermos fazerem testamento, a fim de mais facilmente se apoderarem dos seus bens, etc.

Vias portuguesas
Cortesia de aspa

Para além destas situações, mesmo para quem tinha possibilidades económicas, havia o risco de não encontrarem hospedagem ou, então, de elas não disporem do mínimo de condições higiénicas, com todos os perigos de contágio…
No âmbito dos perigos morais, havia que contar, sobretudo, com os maus conselheiros e com os agentes de prostituição, nos albergues e hospedarias.

Protecção jurídica
Desde a Alta Idade Média, havia consciência da necessidade de proteger juridicamente os peregrinos, bem como outras pessoas sem defesa. Apesar das iniciativas expressas numa “capitular de Pepino de Itália”, publicada entre 782 e 786, que agravava em sessenta soldos a pena de homicídio, se a vítima fosse um peregrino, e um “decreto de Ivo de Chartres” determinar que a sanção pela morte de um peregrino seria o dobro da pena infligida por qualquer outro homicídio, foi no tempo de Carlos Magno que surgiu uma lei de protecção aos peregrinos, “lex peregrinorum”, que passou a constituir um estatuto dos peregrinos, que, à semelhança de outras pessoas beneficiárias de protecção legal, deviam identificar-se por determinados sinais, que neste caso, seriam as insígnias do peregrino. O papa Gregório VII estabeleceu a pena de excomunhão para quem prendesse ou espoliasse um peregrino ou um clérigo.
Não obstante a divulgação destas sanções, os perigos para os peregrinos e outros viandantes continuaram e, no século XII, as instâncias eclesiásticas do Noroeste peninsular e de Castela, mais em contacto com o fenómeno das peregrinações jacobeias, tinham plena consciência desta grave situação. Foi por isso, que os bispos de Compostela, Tui, Mondonhedo, Lugo,Orense e Porto, reunidos em Compostela, l7 de Novembro de 1114, promulgaram, os decretos do concílio que, nesse mesmo ano, se tinha reunido em Leão, onde não faltou a proclamação da defesa dos mercadores, peregrinos e lavradores:
  • «Quarto, que os mercadores, peregrinos e lavradores estejam em paz e andem pelas terras em segurança, e que ninguém os prenda nem lhes tire as suas coisas».
O ambiente de insegurança estava generalizado e não atingia apenas os peregrinos, como decorre das medidas tomadas no concílio de Valhadolide, reunido em 19 e 20 de Setembro de 1143, sob a presidência do legado pontifício, o Cardeal Guido, e com a presença de Afonso VII.

Caminhos de Compostela
Cortesia de aspa

Neste concílio, que promulgou e adaptou às realidades peninsulares os decretos do segundo concílio de Latrão, em matéria de segurança, foi, mais uma vez, tomada posição enfática contra o generalizado clima de insegurança, tendo sido aprovada a seguinte determinação, que reitera e amplia a decisão de Compostela, acima transcrita:
  • «Ordenamos também que os presbíteros, clérigos, monges, cavaleiros do Templo do Senhor e os seus homens e os homens da Ordem do Hospital de Jerusalém, peregrinos, mercadores e camponeses, na ida e vinda e durante os trabalhos agrícolas, e o gado com que lavram estejam sempre em segurança. Se, porém, alguém contrariar esta determinação, seja excomungado».
As sanções eclesiásticas não eram suficientes para dissuadir os potenciais agressores, sendo oportunas e indispensáveis as medidas tomadas pelos monarcas e outros senhores temporais em defesa do peregrinos, Tal é o caso de Afonso IX de Castela, também ele peregrino, que, em 1226, proibiu os seus súbditos que tivessem terras junto dos caminhos de peregrinação a Santiago de Compostela de molestarem os peregrinos que por aí passassem. Por sua vez, Filipe de Beaumanoir determinou, nos “Coutumes du Beauvaisis”, que se um senhor prendesse ou molestasse, arbitrariamente, um peregrino, o rei devia libertar o peregrino e obrigar o autor desta opressão a devolver-lhe os bens confiscados. Foi também com o intuito de proteger os peregrinos que o papa Inocêncio III equiparou os peregrinos aos cruzados e lhes concedeu o privilégio de, mesmo em território ferido de interdito, poderem receber o sacramento da penitência». In Mínia, José Moreira, ASPA, Associação para a Defesa, estudo e divulgação do Património Cultural e Natural, IIIª série, 1998, ISBN 972-96563-0-4.
Cortesia de ASPA/JDACT