quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XIII. Ribatejo e Ceuta. «...de não pensar mais na infanta, viu reacender-se a paixão que por ela sentira, sendo este o motivo por que foi degradado para Ceuta. Comecemos pela carta, toda cheia de meias palavras, toda cautelosa, que ele da cidade africana enviou a um amigo...»

Cortesia de luisdecamoesaab 

No Ribatejo
Finalmente, se é de Camões o soneto publicado por Juromenha, sob o número 333, o exílio ainda durava nos fins do Outono ou princípios do Inverno:

Fermoso Tejo meu, quam differente
Te vejo e vi, me vês agora e viste!
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste;
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente,
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista, em que consiste
Meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Ah quem me dera
Que fossemos em tudo semelhantes!

Lá virá então a fresca primavera;
Tu tornarás a ser quem eras d'antes,
Eu não sei se serei quem d'antes era!

Em Ceuta
Procurando explicar a ida de Camões para Ceuta, escreve W. Storck: «Todos os esforços próprios ou alheios para abreviar a pena (do desterro no Ribatejo) foram baldados, caso alguém os fizesse. E apertado pelas necessidades materiais da vida, o poeta recorreu a um expediente, que anteriormente sempre tinha rejeitado como contrário às suas inclinações: resolveu servir o deus Marte, já que a caprichosa e cega Fortuna não o favorecera, enquanto fora prestando homenagem ao Amor e às Musas. Havia muito que era costume em Portugal comutar a criminosos as penalidades (não somente o exílio, e o degredo para o Brasil, mas até a pena capital) em serviços militares, pagáveis no mar ou nas colónias. Porque havia de negar-se a Camões uma concessão semelhante? Podemos calcular que dirigiu a D. João III um requerimento, suplicando-lhe decretasse serviço militar na África setentrional ou, por outra, a transferência do desterro para Ceuta. Aquelas partes da África davam então sérios cuidados ao governo português: as fortalezas careciam de gente... Por isso pedidos daquela ordem eram bem aceites. O pleito de Camões se recomendava a favorável decisão. Mas que triste pleito! O cavaleiro-fidalgo, o poeta predilecto da corte, transformado em soldado raso!
Contudo, não havia que escolher. A decisão régia não tardou muito. O favor foi outorgado. Luís de Camões obteve licença para se alistar por dois anos na guarnição de Ceuta».

NOTA: «O facto de Camões ter estado em Ceuta, e não em outra qualquer fortaleza portuguesa, resulta evidentemente da Elegia I «de Ceita a um amigo», versos 22-57. E a outra circunstancia, de ter estado aí como que «exilado», está documentada pelas oitavas primeiras, epístola 1ª. No verso 196 ou 180, declara-se «em terra alheia degradado». Sobre o tempo de serviço, dois anos, a que eram adstritos os soldados portugueses nos Algarves d'além, veja-se» etc.

jdact

O que, porém, julgo fora de dúvida é que o poeta, depois de ter voltado para Lisboa, com o propósito, mais ou menos firme, de não pensar mais na infanta, viu reacender-se a paixão que por ela sentira, sendo este o motivo por que foi degradado para Ceuta. 
Comecemos pela carta, toda cheia de meias palavras, toda cautelosa, que ele da cidade africana enviou a um amigo, talvez João Lopes Leitão. Depois de lhe recomendar que a não mostre a ninguém ou, pelo menos, que suprima o nome do signatário, Camões prossegue citando estes versos de Garcilasso de la Vega, tão acomodados ao estado da sua atribulada alma:

"La mar en medio y tierras, he dejado
Á cuanto bien, cuitado, yo tenia.
Cuan vano imaginar, cuan claro engaño
Es darme yo á entender que, con partirme,
De mi se ha de partir un mal tamaño!»

E como ele, apesar de reconhecer que «a tristeza no coração é como a traça no pano», só triste quer e pode viver!

 
E por tão triste me tenho,
Que, se sentisse alegria,
De triste não viveria.
Porque a tal sorte vim,
Que não vejo bem algum
Em quanto vejo,
Que não nasceu para mim.
E por não sentir nenhum,
Nenhum desejo.

E o pobre poeta, «porque cousas impossiveis, é melhor esquecê-las que desejá-las», continua:

Só, tristeza, vos queria,
Pois minha ventura quer
Que só a ella
Conheça por alegria;
E que, se outra quiser,
Morra por ella.

Vem depois uma volta ao mote

Perdigão perdeu a penna.
Não ha mal que lhe não venha,

diferente da que já fica transcrita no começo deste trabalho:

Em um mal outro começa,
Que nunca vem só nenhum;
E o triste, que tem um,
A sofrer outro se offreça,
E, só pelo ter, conheça
Que basta um só que tenha,
Para que outro lhe venha.

É inútil aconselhá-lo a que mude do seu propósito, embora seja certo que não há mágoa como a do “vê-lo-ás e não o paparás”. «Que graça será esperardes de mim propósitos em coisa que os não tem para comigo? Pois ainda que queira, não posso o que quero; que um sentido remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe sucede assim. E cada um acode ao que mais lhe doe; é mais eu, que o que mais me entristece é ter contentamento, pois fujo dele, que minha alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude viver sem ele. Que já sabeis que magoa é: vê-lo-ás e não o paparás».

Cortesia de enwikipedia 

Numa das mais curiosas passagens da carta, o poeta, se não me engano, insinua terem-lhe oferecido dinheiro, para não importunar outra vez a infanta com os seus galanteios.
Eis o que ele diz: «Quero-vos dar conta de um soneto sem pernas», que se fez a um certo recontro que se teve com este destruidor de bons propósitos, e não se acabou, porque se teve por mal empregada a obra; cujo teor é o seguinte:

Forçou-me Amor um dia que jogasse;
Deu as cartas e az d'ouros levantou,
E, sem respeitar mão, logo triumphou.
Cuidando que o metal que me enganasse.

Dizendo, pois triumphou, que triumphasse
A uma sota d'ouros, que jogou.
Eu então, por burlar quem me burlou,
Três paus joguei e disse que ganhasse».

Julgando que o poeta se deixaria enganar pelo dinheiro, o Amor, contra as regras do jogo, puxou pela “sota de ouros”, que era trunfo. Vendo-se ludibriado, o poeta jogou o três de paus (“três paus”, símbolo da forca) e disse ao parceiro que ganhasse. Isto é: Camões não aceitou a proposta que lhe foi feita e preferiu arriscar-se a tudo, inclusivamente a perder a vida.
Como lhe apeteceu então cavar na fidalguia dos antepassados da infanta! «Principes de condição, diz ele, logo em seguida ao soneto “sem pernas”, príncipes de condição, ainda que o sejam de sangue, são mais enfadonhos que a pobreza. Fazem, com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias de seus avós, onde não há trigo tão joeirado, que não tenha alguma hervilhaca».
Nas primeiras poesias escritas em Ceuta, o poeta queixa-se mais abertamente da infanta, “do duro peito, cruel e empedernido, que ergueu a mão para o matar”.

Comecemos pela ode 3.ª, verdadeiro protesto contra a “implacável dureza” havida com ele.

Se de meu pensamento
Tanta razão tivera de alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.

E minha voz cansada,
Que em outro tempo foi alegre e pura,
Não fora assi tornada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pesada, nem tão dura.

A ser como soía.
Pudera levantar vossos louvores;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores.
Que exemplo são ao mundo já de dores.

Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos,
Reinando agora em mi duros tormentos!

Ai gostos fugitivos!
Ai gloria já acabada e consumida!
Ai, males tão esquivos,
Qual me deixais a vida!
Quão cheia de pesar! quão destruída!

Mas como não é morta
Já esta vida? Como tanto dura?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Que em vão com seu poder o tempo cura!

Mas, para padecê-la,
Se esforça o meu sujeito e convalece;
Que, só para dizê-la,
A força me fallece
E de todo me cansa e me enfraquece.

Oh bem afortunado,
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E cos teus olhos ver a doce amante!

As infernais figuras
Moveste com teu canto, docemente;
As três fúrias escuras,
Implacáveis á gente,
Applacadas se viram de repente.

Ficou como pasmado
Todo o Estygio reino co teu canto,
E, quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto.

A ordem se mudava
Das penas, que regendo está Plutão;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em gloria quantas penas alli são.

De todo já admirada
A rainha infernal, e commovida,
Te deu a desejada
Esposa, que perdida
De tantos dias já tivera a vida.

Pois minha desventura
Como já não abranda uma alma humana,
Que é contra mi mais dura,
E inda mais deshumana,
Que o furor de Callirrhoe profana?

Oh crua, esquiva e fera,
Duro peito, cruel e empedernido,
De alguma tigre fera,
Lá na Hyrcania nascido,
Ou d'entre as duras rochas produzido!

Mas que digo, coitado!
E de quem fio em vão minhas querellas?
Só vós, ó do salgado.
Húmido reino bellas
E claras nymphas, condoei-vos dellas.

E, de ouro guarnecidas,
Vossas louras cabeças levantando,
Sobre as ondas erguidas
As tranças gotejando,
Saindo todas, vinde a ver qual ando.

Saí em companhia
E, cantando e colhendo as lindas flores,
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores
E sentireis meus prantos, meus clamores.

Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo, que é gerado,
Que está já convertido
Em choro, e, neste estado,
Somente vive nelle o seu cuidado.

jdact 

Na ode 1ª ainda o poeta se queixa da infanta, mas já reaparece a sua paixão por ela. Novo Endymion, dirige-se á Lua (Delia, Diana, Lucina), que em seguida identifica com a sua bem-amada (126)». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT