quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Carlos Montalto de Jesus. Macau Histórico. Edição de 1926. «A razão da apreensão e queima dos exemplares da obra está nos três últimos capítulos acrescentados nesta segunda edição. Neles, caustica, com toda a crueza, o sistema vigente na administração pública do País e das colónias, com uma burocracia […] na enxurrada de gente mal preparada, tão arrogante quão ávida de dinheiro fácil e de poder discricionário, […] muitos deles criados para satisfazer uma tal clientela, que não para trabalhar»

Cortesia de foriente

Macau Histórico. Em jeito de Introdução. A glória e o martírio de Montalto de Jesus
Os portugueses vão assim e finalmente ter a oportunidade de ler na sua própria língua e de julgar uma «edição maldita» cujos exemplares, quando foi posta à venda em Macau, foram apreendidos e confiscados aos que já os possuíam para serem destruídos pelo fogo em auto-de-fé. O seu autor caiu em desgraça. Isto aconteceu em Macau nos idos de 1926, ano em que em Portugal, foi posto fim à I República, substituída pela Ditadura Militar. Era o «28 de Maio».

«Isto é, conhecendo bem, agora, o estado em que o próprio País se encontrava, à beira do abismo já é só Macau que carece da tutela internacional para a sua sobrevivência e salvação, a fim de não cair nas mãos da China, eventualmente; é o próprio Portugal! E, na sua opinião, só através de uma amigável tutela internacional.
E não resta um dia a perder...”
Enfim, não se descortina bem o motivo da drástica atitude então tomada pelo governo de Macau, em relação à 2ª edição de “Historic Macao”.

Não terá sido a tutela de Macau, pelas potências ocidentais, como município autónomo, fora da administração central portuguesa, sugerida na primeira edição impressa em Hong-Kong, agora transferida, na 2ª, para a recém estabelecida Liga das Nações, ‘como salvaguarda contra maiores ruínas, com plenos direitos de autonomia sob um regime internacional semelhante ao de Xangai. Assim, Macau depressa retomará o seu perdido prestígio e prosperidade, para alívio e glória de Portugal, paro maior alegria de todos os martirizados macaenses, assim como para o desenvolvimento de todos os interesses vizinhos, em relação com o promissor’ hinterland.

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A nosso ver, a razão da apreensão e queima dos exemplares da obra está nos três últimos capítulos acrescentados nesta segunda edição. Neles, Montalto de Jesus quase que se limita a reproduzir as afirmações contidas nas suas conferências e nas suas obras, aqui citadas, durante a sua estada em Lisboa, nas quais caustica, com toda a crueza, o sistema vigente na administração pública do País e das colónias, com uma burocracia baseada no nepotismo, no compadrio, nos partidos políticos, burocracia pesada, lenta e incompetente a seu ver; nos abusos e corrupção à solta; na instabilidade e falta de responsabilidade; e sobretudo, na enxurrada de gente mal preparada, tão arrogante quão ávida de dinheiro fácil e de poder discricionário, enviada para cargos públicos, muitos deles criados para satisfazer uma tal clientela, que não para trabalhar. Partindo as acusações não de um português castiço, mas de um macaense, ainda por cima de Hong-Kong; nem de Lisboa, onde as anteriores foram feitas, mas da própria Macau; g pior do que tudo, escritas não em português, mas em inglês, para serem lidas e divulgadas pelas comunidades portuguesas de Hong-Kong e Xangai e pelos meios internacionais interessados em denegrir e contestar a multissecular soberania portuguesa de Macau, a segunda edição, feita em Macau, tinha que ser suprimida pronta e radicalmente antes que fosse tarde. Estávamos em Abril-Maio de 1926 e Portugal vivia em polvorosa as vésperas do «28 de Maio». Com o bicho morreu a peçonha. Vingaram-se os adventícios. E, em Macau, ninguém mais falou no livro em voz alta, e muito menos no seu autor, muito embora, lá fora e longe os poucos exemplares escapados à fogueira chegassem às mãos, aos olhos e ao conhecimento de historiadores e estudiosos, que puderam assim verificar que, mesmo discordando aqui e ali da sua apresentação, análise, interpretação de factos, suas opiniões e seus comentários, a segunda edição de “Historic Macao” é obra valiosa, sem par, pela abundância e qualidade de material nela carreado. E bem escrita!

jdact

A terminar, registe-se que Montalto de Jesus ofereceu um exemplar desta segunda edição a um ilustre macaense, funcionário superior das Alfândegas Chinesas, com a seguinte dedicatória:
  • Estas linhas são escritas em sinal da minha gratidão pelos seus amáveis e estrénuos esforços paro levar o cabo a publicação desta segunda edição de Historic Macao. Do autor”.
O soneto feito por Montalto de Jesus, por ocasião da primeira edição publicada em 1902. No original:

The drear agave blossoms but to die,
For many a spring it has no gala day,
Until at last in gorgeous, towering spray,
Its flowers are reared like offering for the sky.

Thus o'er my sufferings soared my spirit high,
To bring thee forth in pride, my country's lay,
And though the strain has early made me gray,
My only flower is reared without a sigh.

But ere this bloom of death hath time to fade,
My gala day becomes so overcast,
That would to God I were already dead,

Or given the heart to bear more stormy blast,
To brave a jaded life with misery fraught,
Without the glow of one ennobling thought.
ass. C A. Montalto de Jesus

The argument above given becomes the stronger in connection with the second edition. This can only be explained on refering to the Gospel of St. Matthew, Chap. 7, verse 6. The less said the better. The author.
Carlos Augusto Gonçalves Estorninho, Figueira da Foz, Agosto de 1990.

(A rainha-da-noite floresceu apenas para morrer,
Não teve um dia de gola durante muitas Primaveras
Até que, por fim, num desabrochar esplendoroso e imponente
As suas flores foram concebidas como oferenda ao Céu.

Assim, sobre os meus sofrimentos, elevou-se bem alto o meu espírito
Para te trazer com orgulho, balada do meu país
E apesar dos esforços que me fizeram grisalho precocemente
A minha única flor foi concebida sem um suspiro.

Mas antes que esta flor da morte tivesse tempo para murchar
O meu dia de glória tornou-se tão encoberto
Que quisera Deus eu estivesse já morto

Ou então fizesse com que o coração sofresse uma rajada mais tormentosa
Para enfrentar uma vida estafada, cheia de misérias
Sem o fulgor de um pensamento enobrecedor.)

O argumento acima mencionado torna-se mais forte relativamente a esta segunda edição. Isto pode ser apenas explicado referindo-nos ao Evangelho de S. Mateus, cap. 7, versículo 6. Quanto menos se disser melhor. O autor.

In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT