domingo, 6 de novembro de 2011

FCG. "Momente" de Stockhausen: Uma obra sobre a Mãe Terra. Grande Auditório: «Em primeiro lugar, Momente emana directamente de uma relação de amor que Stockhausen viveu nos anos sessenta com a artista Mary Bauermeister, com quem casou…»

(1928-2007)
Modrath, Alemanha
Cortesia de fcg

A primeira audição em Portugal da obra “Momente” de Karlheinz Stockhausen, considerada pelo compositor a sua obra-prima, acontecerá nos pf dias 10 e 11 de Novembro de 2011, respectivamente às 21h00 e às 19h00, no Grande Auditório.

«Esta apresentação ocorre quase meio século após a estreia da primeira versão da obra, na cidade de Colónia, em 1962. Com textos de William Blake, Martin Luther King, Bonislaw Malinowski e Mary Bauermeister, entre outros, esta obra paradigmática explora o conceito de momento enquanto unidade formal na qual a atenção do ouvinte está no agora, ou seja “na eternidade que não começa no fim dos tempos, mas é atingível a cada momento”. A interpretação estará a cargo da Orquestra e Coro Gulbenkian, dirigidos por Peter Eötvös, um dos maestros que mais se tem dedicado ao reportório contemporâneo e que se apresentou no Grande Auditório, na temporada passada, com o Ensemble Intercontemporain. Com legendas em português, o espectáculo terá ainda o contributo da soprano Julia Bauer, de Jorge Matta, na direcção coral, e de Pedro Amaral no desenho de som. Falámos com Pedro Amaral, que trabalhou com o próprio Stockhausen na revisão desta obra e que sublinha “o génio quase demiúrgico” do compositor, “a estrutura prodigiosa da obra” e a relação emocional que o compositor com ela mantinha.
Stockhausen referia-se a “Momente” como a sua obra máxima. Tendo em conta o número e a pluralidade de obras que compôs, de onde crê que lhe advinha esta percepção?
Stockhausen considerava de facto “Momente” a sua obra máxima e tinha com ela uma relação não apenas emocional mas quase física: guardava o manuscrito, constituído por enormes folhas de formato superior ao A2, num largo gavetão por baixo da própria cama, e nos últimos quarenta anos da sua vida dormia literalmente sobre a partitura! É um detalhe anedótico, mas não deixa de ser profundamente revelador da relação especialíssima entre o compositor e esta obra em particular.

Cortesia de stockhausen

Julgo que essa relação tem a ver com dois aspectos. Em primeiro lugar, Momente emana directamente de uma relação de amor que Stockhausen viveu nos anos sessenta com a artista Mary Bauermeister, com quem casou e teve dois filhos. A principal componente poética que vemos cantada e celebrada ao longo da obra é o Cântico dos Cânticos, essa extraordinária apoteose bíblica do amor e da sensualidade; e outra importante fonte textual é uma carta de Mary a Stockhausen num estado de puro êxtase amoroso.
Uma parte da obra, os momentos M, constitui, aliás, um retrato musical de Mary, e a escrita da soprano solo nesses momentos baseia-se no próprio modo de expressão física, fonética e psicológica da companheira do compositor.



Neste sentido, Momente era para Stockhausen uma imagem sublimada de uma parte fundamental da sua existência, uma obra autobiográfica. Por outro lado – e este é o segundo aspecto de que falava há pouco –, Momente constitui um imenso edifício estético que coloca em prática uma estrutura arquitectural absolutamente prodigiosa. Quando entramos na obra e deambulamos no seu vasto labirinto damo-nos conta do incrível virtuosismo composicional que essa arquitectura implica, do génio quase demiúrgico que pressupõe. Como criação humana Momente é um extraordinário tour de force, e eu creio que Stockhausen tinha perfeita consciência – e um grande orgulho – dos limites que tinha alcançado como artista.

Nas palavras do compositor, Momente é uma ópera sobre a Mãe Terra rodeada pelos seus filhos. Pode comentar?
Não se trata de uma ópera, no sentido em que não há representação cénica. Existem, porém, muitas componentes de representação propriamente musical e, neste sentido, Momente estaria mais próxima do género cantata. Uma cantata que, como sempre em Stockhausen, envolve uma multiplicidade riquíssima de dimensões: a profana, a religiosa, a passional, a poética, a social, a puramente arquitectural e até a etnológica. Julgo que é neste sentido que Stockhausen falava de Momente como um testemunho da dimensão humana em toda a sua multiplicidade.

Como explora o compositor, nesta obra, a eternidade atingível em cada momento?
Essa questão prende-se directamente com um aspecto conceptual: a chamada Momentform, a “forma-momento”. Em finais dos anos cinquenta, Stockhausen vive uma experiência de certo modo radical: em tournée, de cidade em cidade, passa grande parte do seu tempo a viajar de avião, parando de cada vez numa diferente geografia. A dado momento, o avião torna-se para ele o espaço constante e, em cada paragem, encontra uma cidade diversa – cidade onde apenas passa algumas horas ou dias, cidade que existe muito para além da visão necessariamente limitada que uma tal experiência lhe concede, dada a exiguidade da janela temporal. A Momentform é precisamente regida por essa ideia: de uma determinada geografia musical, potencialmente vasta no tempo, complexa nas suas características, mais ou menos rica na sua diversidade, é-nos permitido ter uma experiência limitada, em função de uma janela temporal que se abre e fecha concedendo-nos um “momento” de contacto com essa geografia. Em Momente, há trinta momentos, ou seja, trinta “geografias sonoras” muito diversas, cada uma das quais com as suas características próprias; as janelas de tempo variam muito: certos momentos duram quinze segundos, outros dois minutos, e um deles quase meia hora – da mesma forma que quando, por exemplo, viajamos de comboio podemos observar determinada paisagem durante um curto lapso de tempo, e outra paisagem muito mais demoradamente. É esta a base da Momentform e, neste sentido, falar da eternidade atingível em cada momento é como falar na infinitude atingível em cada ponto do espaço: de facto, o nosso deambular pelo espaço é limitado não pelo espaço em si mesmo, que cremos ser infinito, mas pela nossa disponibilidade e capacidade de o percorrer; da mesma forma, cada momento abre uma determinada janela temporal limitada para uma temporalidade potencialmente infinita. É nesse sentido que nos podemos referir à “eternidade” (latente) de cada momento.

Como foi trabalhar com Stockhausen na revisão de Momente?
Foi uma experiência privilegiada que certamente me teria marcado mais ainda, como compositor, se tivesse acontecido mais cedo na minha vida. Dela me fica o extraordinário rigor com que Stockhausen trabalhava, a importância que dava a cada ínfimo detalhe e, numa perspectiva mais geral, a desconcertante liberdade daquele homem em relação à vida, à obra, a si mesmo: é quase inverosímil pensar na capacidade de se colocar a si próprio em questão, de se reinventar ao limite das suas possibilidades até ao fim da vida, quase aos oitenta anos!… Do ponto de vista pessoal recordo momentos únicos como um longo serão de trabalho durante a grande tempestade de Janeiro de 2007. As estradas estavam cortadas, tínhamos de permanecer dentro de casa; a determina hora, noite cerrada, ficámos sem luz e tivemos de acender velas para trabalhar. Esta circunstância, e a escuridão, e a tempestade trouxeram a Stockhausen memórias antigas; falou-me longamente da guerra, dos abrigos, da sua experiência como enfermeiro nos hospitais de campo, das permanentes sirenes, das bombas de fósforo e dos horrores dos feridos, de como o seu pai se tinha despedido antes de regressar à frente de combate… Estas memórias quase fotográficas, cheias de imagens terríveis e provavelmente intactas, contadas na primeira pessoa, deixaram-me uma impressão pessoalmente fortíssima e deram-me da sua obra, inevitavelmente, uma visão mais completa, para lá da experienciação puramente estética.


Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT