segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas: «Da historia do seu testamento e enterro, apenas direi que não foi menos accidentada nem menos triste e vergonhosa que a do seu patrimonio e a dos seus oito desposorios, mallogrados, com os maiores senhores do mundo»


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NOTA: Texto na versão original.

A Infanta D. Maria
«O leitor hade imaginar que as peripecias da tragi-comedia acabam aqui; mas engana-se. D. João III, continuando a fingir-se em extremo desejoso de ver casada a Infanta, despacha um agente muito habil â côrte de Carlos V. Este igualmente desejoso, só espera ver concluido o interminavel negocio da Infanta para se retirar a S. Juste!

Lourenço Pires de Tavora vem, por combinação de ambos, com as propostas já regeitadas por D. Maria, e regeitadas tambem pelos noivos, os quaes não queriam casar! Com as mesmas propostas iam as mesmas antigas instrucções, que se podem resumir na formula:
  • propôr e dilatar, fingir uma cousa, guardando-se da outra.
Mas os artificios estavam estafados; já não illudiam ninguem. D. Leonor resiste e teima em querer levar a filha. El-Rei apparenta concordar na entrega. Antes de effectuada, morre porém (Junho de 1557).
Quem acredita que, se vivesse, teria cumprido a promessa? Eu não.
A sorte da Infanta e sua bondade impressionaram profundamente o povo, cujos clamores a haviam arrancado, em tempo, dos braços de sua mãe. Fazendo seu o querer do soberano, exactamente como na primeira conjunctura, não quis deixar partir a que era o amparo dos pobres, protectora dos poetas e dos sabios, e que havia partilhado todas as dôres e alegrias da nação durante 36 annos. Concedeu-se-lhe, porém, licença para uma entrevista na raia do reino, mas só depois de a Infanta ter prestado juramento solemne de voltar em breve para Lisboa e de não transigir com os desejos da mãe.


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D. Leonor, anciosa e affiicta estava em Badajoz, à espera havia dois meses! Finalmente, em Dezembro de 1557, a Infanta chega com sequito apparatoso, brilhante não, porque ambas ainda trajavam dó, por morte de D. João III. Vinte dias passaram juntas, recordando, entre sorrisos e lagrimas, os innumeros incidentes que as tinham martyrisado durante os ultimos vinte annos. Depois, D. Maria recolheu a Lisboa, fiel á sua promessa, apesar das vivas instancias da mãe que, além dos seus carinhos, lhe offerecia todas as riquezas e estados que possuia. O povo da capital recebeu-a com sinceras demonstrações de alegria. Celebrou-se mesmo um solemne “Te Deum laudamus”, em acção de graças pela sua lealdade.
A mãe não pôde resistir á dôr da partida. Passados dias succumbiu a uma febre maligna, a tres legoas de Badajoz (18 de Feb. de 1558).
Triste desenlace que a todos commoveu. Mesmo o austero Goes que nem uma palavra de louvor, compaixão ou sympathia concede á Infanta, apiedou-se das angustias da mãe que «sobre todalas cousas do mundo» havia desejado ter sua filha a par de si, sem nunca o conseguir.

A Infanta ainda viveu mais vinte annos, não sem ter sido importunada uma ultima vez em 1558, logo apos o fallecimento da mãe. Era pretendente, pela 3.ª ou 4.ª vez, Felipe II, que enviuvara de novo! Mas a princesa deu a mesma resposta anterior:
  • “Nem que fosse com o Monarca de todo o mundo!"
O ultimo terço da sua vida decorreu mais sereno, se bem que não lhe faltaram desgostos e episodios excitantes como a desunião entre o exaltado e caprichoso D. Sebastião e a Rainha Regente, as expedições a Africa, os casamentos das filhas de D. Duarte, os consorcios planeados e abortados do monarca com Margarida de Valois e mais princesas, que renovavam a recordação humilhante da sua propria sorte e a consciencia dos direitos pessoaes á corôa, se casasse. Em todo o caso, esse periodo foi de independencia, esplendor, actividade bemfazeja. Espoliada do seu patrimonio, estava de posse, parcialmente, das enormes riquezas da mãe; senhora de terras, capitaes, esplendidas baixellas d'ouro e prata, joias, pedras preciosas, tapeçarias, e outros mimos, por meio dos quaes a sua vivenda a par de Santos-o-Novo se transformou em uma residencia sumptuosissima, de verdadeira soberana.

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Em 1567 uma testemunha ocular insuspeita afirmava em letra redonda ter ella casa honrada em extreme de criados, damas e familiares. «E para se dizer que é igual a todalas rainhas da Europa lhe não falta mais que o nome de uma d'ellas».
Dispondo com inteira liberdade d'essa fortuna que havia sido causa de tantos gravames e receios, tantas humilhações e cubiças, tantas duvidas e indignidades da parte dos tutores e pretendentes, achava gosto em dispender á medida dos seus desejos e das suas inclinações, encommendando obras d'arte, subvencionando instituições de educação e beneficencia, mandando construir collegios, hospitaes, mosteiros, capellas e egrejas. Seguindo o pendor natural do seu espirito, e fiel aos principios de rigida moral em que a haviam educado, recebeu de preferencia visitas de homens doutos em theologia e philosophia, S. Francisco de Borja, o cardeal Alexandrino, Frei Luis de Granada, Frei Francisco Foreiro, Frei Simão Coelho. Os escritos que esses e outros lhe dedicaram, tendiam naturalmente a levantar o seu espirito e robustecer a sua fé.

Morreu a 10 de Outubro de 1577, meses depois de ter exposto a sua ultima vontade com admiravel lucidez, de um modo digno, em linguagem clara e firme. “Sem queixas nem recriminações olhava para o passado. Sem lagrima encarava o seu proximo fim, segura que, acudindo ao chamamento do Criador com alegria e confiança, seria acolhida aonde recolhe as almas dos seus servos e queridos, de cujo numero, se não foi, pelo menos sempre havia desejado ser”. Palavras textuaes.

Da historia do seu testamento e enterro, apenas direi que não foi menos accidentada nem menos triste e vergonhosa que a do seu patrimonio e a dos seus oito desposorios, mallogrados, com os maiores senhores do mundo». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.

Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT