quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Leituras. Parte XXXII. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. O Besouro. «A dignidade dum código tinha de ser aprendida, não tanto de forma escolar, como quem aprende a ler ou a escrever, mas de forma natural, como quem aprende a andar ou a falar. A eficácia dessa aprendizagem era determinante, porque aquilo que estava em causa neste tipo de casamento não era de qualquer modo, o amor, mas sim o interesse»


Cortesia de balealsurfcamp e atouguia

O Besouro
«O infante passou todo esse Inverno e ainda parte da Primavera do ano seguinte no ruído destes trabalhos, acompanhado pelo filho do seu aio, Diogo Lopes de Pacheco, que era um belo moço de vinte e quatro anos, que privava em Lisboa, por intermédio do pai, com o rei. Em frente, as ilhas mais longínquas tornavam-se com os primeiros dias de sol, em Março, nítidas e visíveis.


Eram ilhas enigmáticas que pareciam querer prolongar a terra dentro do próprio infinito. Formavam um soberbo arquipélago que se estendia na direcção Norte-Sul. Ao fundo, desgarradas no meio das névoas do mar, viam-se ainda as vertentes fantásticas de novas ilhas, de novos horizontes, onde só as aves nidificavam. Os pescadores abriam as velas de pano cru dos seus barcos no mar, ou remavam na foz debaixo das janelas do paço, com os braços destapados e os pés descalços. A Primavera tomava mais nítidas as águas e acalmava a palpitação do coração do mar. As ondas vinham bater com menos altura na praia ao porto das naus e por vezes calavam mesmo o seu ardor. O mar era então uma superfície lisa, em que as chatas deslizavam com todo o seu vagar. Os armadores apressavam os seus trabalhos.
O infante abria a janela do seu quarto e olhava o pequeno ancoradouro, onde cães de pêlo crespo e salgado se enroscavam enquanto os cachopos descidos da vila atiravam pedras à água levemente encrespada do rio. A vila era um rectângulo atravessado por um traçado de ruas e tinha crescido não em tomo da igreja de S. Leonardo, mas para o cimo. Eram casas de pescadores, de gente do povo, de calafates e armadores, gente de ofícios ou de cabedal, que vivia do comércio com o exterior ou do artesanato do peixe. Cultivavam-se terras e a gente do mar enfaixava também os pés na terra e calejava, desde criança, os dedos no cabo do sacho ou na pedra. A vila era rodeada de belos pomares, fertilizados pelo aluvião do rio e o arado era um complemento da vela.


Vila de Alfaiates
Cortesia de mjfswordpress e geo

A terra emprestava aos homens uma cor terrosa e sólida, uma cor encardida que o sol ajudava a fixar. Foi nessa altura do ano, praticamente um ano depois de sua irmã Maria ter deixado a vila de Alfaiates no cortejo do rei de Castela, que o infante Pedro se aprestou a partir com o moço Diogo Lopes Pacheco para. Lisboa, com passagem no entanto por Santarém.
Ao contrário dos infantes para quem a nódoa no burel não crescia, nem durava, as infantas eram, desde logo, industriadas na arte da casa, e sobretudo na difícil arte do silêncio público, quando destinadas ao matrimónio real. As sogras, rainhas-mães, tomavam-nas a seu cargo, em paços recuados ou em núcleos reservados, e ocupavam-se delas como filhas. Era uma convivência calada, geralmente pouco autoritária e severamente compreensiva e tolerada de parte a parte. Os sangues dessas raparigas desabrochavam pela primeira vez longe das casas paternas e eram as sogras que lhes davam a primeira vez os linhos brancos de embeber e lhes passavam para as mãos as cintas com que seguravam o busto. Preparavam-nas para o matrimónio real como se preparava uma noviça para tomar ordens. A dignidade dum código tinha de ser aprendida, não tanto de forma escolar, como quem aprende a ler ou a escrever, mas de forma natural, como quem aprende a andar ou a falar.


Serra de Gredos
Cortesia de pixdaus e maps

A eficácia dessa aprendizagem era determinante, porque aquilo que estava em causa neste tipo de casamento não era de qualquer modo, o amor, mas sim o interesse. Branca de Castela nunca se adaptou a Portugal. Sentia afinidades com Brites, com quem tinha aliás parentesco chegado, Brites era sua tia, afinidades que se traduziam em pequenos hábitos comuns aprendidos nos mesmos sítios. Falavam entre si o castelhano da Serra de Gredos. Branca nunca foi capaz de falar o português. Dizia com enfado algumas palavras soltas e voltava de novo ao seu mutismo brusco, fechada sozinha no seu quarto, onde escondia os seus achaques. Não tinha o gosto da pompa sensível, com vestidos de seda bordados a ouro e a púrpura, nem o gosto da mobilidade. A mobilidade era, nesse tempo, um luxo, e era decerto mais do que uma simples herança das campanhas dos primeiros reis. A conquista do Algarve estava ainda demasiado próxima na memória de todos para que a corte se desfizesse assim dum hábito, tido como gesto de relevo. Brites aceitou, quando viveu os seus primeiros meses em Portugal com Isabel de Aragão, essa mobilidade, porque a corte de Castela, muito mais do que a de Portugal, não era fixa, porque ela não tinha paz segura. Branca, pelo contrário, habituada a viver em Gredos, não se adaptou ao costume. Logo que se mudou de Santarém paraLisboa, capital ainda vacilante do país, a sua desilusão foi tão grande que se enfiou no quarto dias a fio a chorar. As neblinas do rio, a temperatura quente do Outono, ou a humidade das paredes, tudo a incomodava fisicamente de forma tão violenta, que tinham de lhe secar o quarto com braseiras e cheiros de ervas. O mar, com os seus ventos salinos, tornava-a cada vez mais mirrada e seca, como se à nascença ela tivesse estado mais próxima do túmulo que do berço.

Pedro viu-a, pela primeira vez, na, Sé de Lisboa, no mês de Abril do ano 1329. Preparavam a festa do primeiro dia de Maio, festa que remontava no Norte a idades pré-romanas, e Branca andava com outras meninas a florir os altares, embrulhada numa capa de pelica e de touca atada no queixo. Viam-se-lhe os dentinhos pequenos dentro da boca de lábios finos e os olhitos piscos e embaciados, que sofriam de miopia». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT