Cortesia de snpcultura
Madrid, 16 de Novembro de 1971
Meu caro Nuno Júdice
«Há muito pensava escrever-lhe. Causa próxima: o postal colectivo que, no Verão, me mandaram do Algarve. Comove-me a mim, que sou precisamente um ocidental - não no sentido político, mas por ter nascido no cabo da Europa - que se lembrem de mim como amigo, embora depois disponham de ampla liberdade para criticar os meus livros. Ainda hoje me lembro daquela estúpida resposta que lhe dei sobre a ausência de temática social em “Aquele grande rio Eufrates”, durante aquele colóquio comigo na Faculdade de Letras.
Escolhi mal o exemplo, porque respondi demagogicamente, em vez, de salientar nesse meu primeiro livro, agora em vias de reedição, os muitos poemas onde transparece o dia-a-dia, embora esse livro, sem deixar de ser ambíguo a vários níveis, constitua, quanto ao significado, o meu itinerário metafísico e mesmo místico. Realmente não só “Aquele grande rio Eufrates” passa por Sagres.
Para Sagres estava projectado o “Mar Novo”, aquele monumento, aprovado em concurso público, concebido por aquele arquitecto irmão da Sophia, com painéis ou frescos de Júlio Resende, tudo cancelado à ultima hora por decisão ditatorial daquele homem de botas, que até ao fim anotava a 1ápis o orçamento da Universidade de Coimbra e morreu «orgulhosamente só». O livro da Sophia intitulado precisamente “Mar Novo”, a partir do indignado poema que escreveu a propósito, assinala talvez a intervenção da Sophia na vida cultural e política. Acabou-se para ela a praia da Granja, o mar, a infância, o horror à cidade. A Sophia é muito recta. É, sem qualquer espécie de aristocratismo, muito humana e só não pactua com a mediocridade e com as capelinhas.
Eu creio que conhecerá as minhas posições actuais pelo menos através da Helena Abreu. De qualquer maneira, o meu último livro encerra bastantes contradições para poder ser ideologicamente enquadrado no catolicismo. As epígrafes do princípio, embora extraídas da Bíblia, não correspondem a um credo. Acontece até que a segunda é altamente polémica porque, ao compreender só metade do versículo do Novo Testamento, equivale a reivindicação da terra relativamente a um pretenso céu.
Quando sai o seu livro? Aqui estou, na Universidade de Madrid. Sinto-me muito bem. Passou-me a asma que tinha desde os seis meses, durmo melhor, compro muitos livros e sei pouco de Portugal. Se, por um lado, não me interessa que traduzam poesia minha para qualquer outra língua, não quero continuar a fazer carreira literária.
Bem, por hoje basta. Nuno, escreva-me na volta do correio para: …
Abraça-o este seu amigo, que talvez venha a «Mourrir à Madrid»,
Ruy Belo»
In Cartas Inéditas de Ruy Belo, Colóquio Letras nº 178, Fundação Calouste Gulbenkian.
Cortesia de invernoemlisboa
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT