Armas da família de Avis
Cortesia de halp
«Finalmente, o “Livro da Virtuosa Benfeitoria”. A sua redacção deve ter ocorrido entre os anos de 1418 e 1433 e suscita grandes dificuldades críticas. Com efeito, ela foi o resultado da colaboração entre o infante D. Pedro, que elaborou uma primeira redacção, e um clérigo da corte, frei João Verba, seu confessor, a quem se ficou a dever a versão definitiva. Acontece, porém, que é quase impossível distinguir a parte que coube ao infante daquela que sobreveio após a interferência de frei Verba, personagem sobre a qual ainda hoje muito pouca coisa se conhece. Admitamos, todavia, que independentemente da parte que lhe pertence na produção do texto, o infante D. Pedro participou integralmente do espírito da obra, isto é, supervisionou, ou pelo menos sancionou, o seu conjunto, tal qual ele se apresenta na sua forma derradeira.
Como já afirmou Paulo Merêa, o “Livro da Virtuosa Benfeitoria” não é um tratado de ciência política, mas, como o próprio título sugere, um tratado das «benfeitorias», isto é, dos favores (doações, privilégios, etc) concedidos pelos grandes homens aos seus inferiores. Os seus seis livros destinam-se a dar a conhecer o que são, como se dão, como se pedem, como se recebem, como se agradecem e como se podem perder as «benfeitorias». Pretende-se definir uma «estruturação social modelo» assente no jogo dos benefícios e na cadeia de reciprocidades e obrigações que este engendra, nos termos de uma concepção que responsabiliza particularmente os grandes senhores pela manutenção de um equilíbrio ordenado e desejado por Deus. Daí a especial atenção que dedica ao problema da educação dos príncipes e à sua acção político-social concreta. O “Livro da Virtuosa Benfeitoria” assume-se como um novo guia moral destinado a príncipes, um autêntico «thesaurus exemplorum», na expressão de J. Carvalho. Discursando sobre o poder e reivindicando para o príncipe um estatuto próprio. Esta obra denuncia uma reflexão política bastante mais aprofundada decorrente do próprio posicionamento (linguístico e intelectual) do seu autor e da interferência clerical de que foi objecto.
Cortesia de wikipedia
De estilo pesadamente escolástico e povoado de alegorismos simbólicos, o “Livro da Virtuosa Benfeitoria” surge-nos, afinal, um pouco como o fecho de cúpula de uma produção literária que nos apresenta, pela primeira vez entre nós, os laicos a escrever em vernáculo sobre a política, a moral e a arte de bem governar. […]
Conclusão
Encontramo-nos no momento propício de extrair, de tudo aquilo que foi dito, uma conclusão principal; contrariando a tendência para o privilégio da cultura senhorial registada até relativamente tarde no século XIV a “1ª metade do século XV correspondeu, em Portugal, ao florescimento de uma importante literatura laica, polarizada em torno da corte régia e intimamente comprometida com os novos detentores do Poder”. As referências inicialmente feitas a propósito da ligação existente entre boa parte da historiografia e a sede do poder político e acerca do ambiente de receptividade ao espírito e à letra das novelas de cavalaria, encontrado nos meios da alta nobreza, apontavam já nesse sentido.
É o caso de uma literatura senhorial, que apesar de em boa parte ter sido absorvida pela dinâmica da corte não se esgotou absolutamente nela. A exemplo do que se passou por essa Europa, à «nova» composição e intenções do poder político triunfante em 1385 corresponderam algumas inovações na organização dos centros produtores e difusores da cultura escrita, a mais importante das quais teve que ver com o reforço do papel da corte régia nesta matéria.
Cortesia de halp e simecqcultura
Uma espécie de «mecenato cultural», patrocinado e directamente comparticipado pela Casa Real, parece pois emergente entre nós a partir dos finais de Trezentos. “Cultura essencialmente laica, mas que não exclui todavia, em minha opinião, uma assinalável cumplicidade clerical”. De facto, o desenvolvimento em Portugal, na viragem para o século XV, de uma literatura laica sediada na corte, se viabilizou graças ao apoio que lhe foi prestado pelos protagonistas de uma tradição cultural (escrita) de filiação eminentemente religiosa.
Isto é, se até relativamente tarde no século XIII «literatura clerical» e «literatura laica» se encontram relativamente autonomizadas ao nível da corte, regista-se algum comprometimento mútuo, cujo significado, embora encoberto pela dominância aparente da componente laica.
Creio que, no fundo, o clero designadamente o clero urbano, cuja literatura, como sublinha Luciano Rossi, de há muito encontrava, através das práticas e dos sermões, expressão para além das suas próprias muralhas, terá procurado no incremento da sua actividade cultural junto da corte uma espécie de compensação (sociológica, psicológica) para a marginalidade política a que o poder instituído o tinha manifestamente relegado (16)». In João Gouveia Monteiro, Orientações da Cultura da corte na 1ª metade do século XV (A Literatura dos Príncipes de Avis, excerto), HALP 1998.
Continua
Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT