Refeição, século XV
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A Mesa
«Em 1451, Lopo de Almeida, valido de D. Afonso V, acompanhou a Itália a infanta D. Leonor, que ia casar com o imperador da Alemanha, Frederico III. Do caminho, foi escrevendo cartas ao seu rei, em que lhe descrevia os pormenores da viagem e o estado de saúde da princesa.
Dessas missivas curiosíssimas pelo rigor das descrições e pelo colorido do panorama do dia-a-dia que nos apresentam, ficaram-nos apenas três. Numa delas, refere o embaixador de Portugal um banquete oferecido em Itália ao imperador, sua noiva e comitivas. Pelos comentários que faz ao arranjo das mesas e aos costumes locais, podemos nós hoje inferir do que se passava no Portugal dos meados do século XV.
Espantava-se Lopo de Almeida de que as toalhas não chegassem a cobrir toda a superfície da mesa principal, "e ficava descoberta da mesa acerca de dois palmos". Nas pontas estavam colocadas toalhas mais pequenas «para se alimparem», ou, como diríamos hoje,’guardanapos comuns’. Ao que parece, era costume em Portugal introduzir sob a toalha uma espécie de alcatifa, o chamado ‘bancal’ ou ‘mantel’, que se usava também a cobrir os bancos: porque Lopo de Almeida se admirava da sua ausência, excepto no assento destinado ao imperador, onde havia «uma almofada de cremezim aveludado».
Na distribuição dos lugares não houve qualquer norma: «nas outras mesas se assentaram bispos, condes e prelados e todos os outros fidalgos, e toda a outra gente a feixe e molhos, como em boda...». A algazarra testemunha-nos ainda, foi medonha! O costume, em Portugal, fazia preceder cada iguaria, como também o vinho, de tochas empunhadas por criados, sob a chefia de um porteiro.
Antes das refeições, era hábito lavar as mãos. Servidores traziam ‘justas’ ou ‘gomis’, de prata ou de outro metal consoante a abastança da mesa, e bacias grandes, sobre as quais se colocavam as mãos. Em banquetes de especial requinte, a água simples podia ser substituída por água de rosas ou de outro perfume. Limpavam-se as mãos a ‘napeiras’ ou toalhas mais pequenas. O regulamento das refeições no mosteiro de Alcobaça estabelecia, logo como primeira cláusula, que se lavassem e limpassem sempre as mãos, antes de comer.
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Sobre a mesa dispunham-se peças de ourivesaria, com fins simultaneamente decorativos e utilitários. Em França, usava-se colocar a chamada «nave» defronte do anfitrião, com os objectos destinados ao seu serviço: facas, colheres, sal, especiarias, etc.
Os manjares eram depois trazidos dentro de terrinas, ou ‘bacias’. Em Castela, como na Alemanha, usavam-se terrinas muito grandes, de onde todos comiam em comum. Mas em Portugal, as ‘bacias’ eram mais pequenas. D. Dinis tinha onze, de prata, pesando entre 1 e 2 kg.
Embora fosse uso trazer as iguarias em procissão, antecedidas pelo porteiro e pelos tocheiros, o Regulamento de Cister prescrevia que «os manjares ou condutos sejam postos pelas mesas ante que tanjam a campa», isto é, fossem todos trazidos de uma só vez. O receio dos envenenamentos, aliado à superstição geral do tempo, levava ao emprego de umas curiosas, «alfaias», destinadas a detectar os alimentos. Usavam-se «chifres de unicórnio» (na realidade bicos de aves ou chifres de outros animais), encabados em ouro ou prata, «lingueiros», espécie de suportes onde se suspendiam línguas de serpente, e uma série abundante de pedras raras (como a ágata, a pedra serpentina, etc.) a que se atribuíam virtudes mágicas. Ao contacto com alimentos impuros, estes e outros talismãs mudariam de cor, manchar-se-iam ou começariam até a sangrar, acreditavam as gentes...
O Inventário da Casa de D. Dinis enumera algumas pedras, de nomes por vezes bem estranhos, que se deviam destinar ao mesmo fim. Menciona também um «dente de escorpião», um «osso pendurado em castão de prata», etc. Durante muito tempo se não utilizaram pratos na Idade Média. Comiam-se a carne e o peixe sobre grandes metades de pão, de forma arredondada, postas em frente de cada conviva. Nas casas ricas, esses pedaços de pão, que resultavam embebidos em molho ou noutros detritos mais ou menos saborosos, distribuíam-se depois pela turba dos mendigos. Ou deitavam-se aos cães que rodeavam a mesa...
Mais tarde, a rodela de pão foi substituída pelo ‘talhador’ de madeira. Embora um e outro sistema coexistissem por muito tempo. «Talhador» designava também uma salva ou travessa grande, onde a carne era trinchada antes de ser distribuída pelos convivas. É claro que para a sopa e outros alimentos líquidos, se usavam pratos, as chamadas ‘escudelas’, de madeira ou de prata (sendo de barro denominavam-se ‘tigelas’). Mais tarde, essas escudelas passaram a servir também para os alimentos sólidos. Contudo, note-se bem que sempre cada escudela ou talhador servia para dois convivas, sentados lado a lado. Talvez daqui derive a expressão de «comer com alguém no prato».
Conheciam-se e utilizavam-se, se bem que pouco, as ‘colheres’. Mas não havia garfos, só muito mais tarde divulgados no Ocidente. Daí a necessidade imprescindível de lavar as mãos antes e depois das refeições. O emprego do garfo levou, em última análise, a uma menor higiene, porquanto o contacto da mão com os alimentos se reduziu. Passou a não ser necessário, como outrora, lavar os dedos antes e depois de comer... A ‘faca’, ponteaguda, era o instrumento por excelência. Mas só excepcionalmente se distribuíam facas aos convidados a um banquete. Eram as próprias pessoas que levavam consigo a faca de que se iriam servir, tal como nós, hoje, levamos um pente ou um espelho. Depois de comer, limpavam o objecto à toalha ou aos toalhetes. Uma das regras de conduta dos monges de Cister determinava que não limpassem «as mãos ou o cutelo à toalha, salvo se o primeiramente alimpar com pão». Para beber, usavam-se copos, um tanto maiores e mais pesados do que os de hoje, e chamados ‘vasos’ na linguagem medieval. «O que beber, com duas mãos tenha o vaso», mandava a regra alcobacense.
Vasos ainda maiores denominavam-se ‘grais e tagras’. Serviam-se muitas vezes os líquidos quentes em ‘copas’ tapadas por ‘sobrecopas’. As ‘púcaras e pucarinhas’ de barro eram munidas de asas». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.
Cortesia de Esfera dos Livros/JDACT