A longa persitência da barregania
José Mattoso
Cortesia de revistafacesdeeva
Os marginais
«Sendo assim, podemos admitir a existência de um grupo situado nas margens da classe nobre, constituído sobretudo por excluídos da sucessão linhagística considerada como a única legítima a partir do século XIII. No seu seio parece reinar uma moral sexual francamente permissiva; as suas ligações familiares e sociais à nobreza fazem dela uma espécie de seu apêndice social: os nobres aceitam e promovem a moral clerical, mas buscam nele os cúmplices preferenciais das suas frequentes infracções. Em termos gerais, este contexto social pode-se comparar com o regido pela moral vitoriana. No nosso caso, porém, a aristocracia não precisava de ocultar rigorosamente as infracções masculinas, e podia mesmo fazer delas e do exemplo permissivo dos bastardos, cavaleiros e jograis motivo de inspiração poética e narrativa. O produto literário daí decorrente não precisava de ser escondido ou transmitido sub-repticiamente, como um jogo vicioso; bastava-lhe adoptar o carácter de divertimento que a própria infracção tantas vezes reveste para a aristocracia. Daí o seu culto pela forma e pelo conteúdo lúdico, quer como arte, quer como habilidade. Pede-se-lhe que desencadeie os sentimentos, que encante o espírito, que provoque a intriga ou o escândalo, que alimente as conversas e que solte o riso. Pode exercer um efeito de sublimação e de catarse, elevando os sentimentos e purificando as pulsões inferiores, e ao mesmo tempo relativizar a seriedade espessa da norma, suscitando uma comicidade subversiva e sugerindo os atractivos da infracção.
A norma e a prática
Só assim se compreende como podem conviver na mesma sociedade e para o mesmo grupo social o discurso clerical que condena a «carne» e faz da mulher o instrumento privilegiado do demónio, e o discurso trovadoresco que faz a apologia do sexo nas cantigas de escárnio e cultiva o erotismo nas de amor e de amigo. Verifica-se aqui, como em todo o pensamenro medieval, a regra da dialogia:
- nenhuma norma é absoluta;
- todo o preceito, seja da Igreja, seja da sabedoria popular, tem de ser adaptado à acção por meio da prática;
- qualquer ideal tem de ser confrontado com a realidade.
Cortesia de daliedaqui e mafiosorigatti
Não há limites a uma expressão extremista e dramática da norma ou do ideal, porque a prática e a realidade é que ditam o comportamento efectivo; por isso, os exageros retóricos da pregação acerca do pecado da carne e os excessos de alguns teólogos podiam não perturbar muito os seus auditores e leitores: ninguém confundia o que devia ser com o que de facto era. Inversamente, por mais distante que o comportamento social fosse dos valores proclamados como tais, não podia nunca pô-los em causa: ninguém duvidava que o adultério devia ser condenado, que o casamento devia ser indissolúvel, que a virgindade por razões religiosas devia ser um estado mais perfeito do que o casamento, que a sexualidade devia manter-se dentro de limites ditados pela prevalência dos interesses comunitários.
A moral dos jograis e dos trovadores
Identificado, assim, o meio social em que vigoram normas sexuais condenadas pela moral clerical e aquele que as aceita, apesar de, em certas condições, as infringir frequentemente, tentemos agora ver de maneira mais concreta como se desenvolve o discurso erótico trovadoresco. Este discurso é comum a ambos os meios, o dos nobres que na teoria se conformam com a moral clerical, e o dos jograis, que, na teoria e na prática, a ignoram, embora a sua leitura seja diferente conforme o ponto de vista dos membros de cada um deles. Para simplificar, designarei o primeiro como o grupo dos ‘jograis’ (embora, como vimos, fosse composto também por bastardos, barregãs, cavaleiros, filhos segundos, alguns clérigos, etc.), e o segundo como o grupo dos ‘trovadores’ (embora designe, além dos poetas nobres, toda a aristocracia que aceita a moral clerical, mas a infringe frequentemente por cumplicidade com o grupo dos jograis). A escolha de uma designação inspirada nos produtores dos respectivos discursos justifica-se, apesar do seu sentido restritivo, pelo facto de apontar mais para as «palavras», do que para as «coisas».
Ambos representam a nobreza, embora o primeiro seja considerado por ela como a sua imagem invertida, por efectuar na prática, sem escrúpulos nem rebuço, o que ela só pode fazer às ocultas, com elegância e habilidade.
Cortesia de elninga
Daí que a poesia de escárnio e maldizer retire o seu carácter burlesco de situações caricaturais, que representam, exagerando-os, comportamentos adoptados também pela classe nobre. Por isso os seus protagonistas são quase sempre jograis, segréis e soldadeiras, e, mais raramente, escudeiros, besteiros, clérigos, meirinhos, juízes. Quando as sátiras se referem a ricos-homens, o que lhe é censurado é um comportamento que não se coaduna com o respectivo modelo social, que exige como virtudes essenciais a dignidade e a generosidade. Nesse caso, os seus costumes sexuais vêm acentuar de forma particularmente chocante a sua infracção ao modelo.
O modelo social do jogral e da soldadeira, pelo contrário, implica uma vida sexual efectivamente permissiva: o jogral cultiva o erotismo, as relações sexuais múltiplas e a sedução de mulheres casadas, talvez até tolere a homossexualidade (um dos temas preferidos da situação burlesca); por sua vez, a soldadeira, equivalente feminina do jogral, cultiva à sua maneira os costumes correspondentes, com a particularidade de receber por isso um preço, sem todavia se confundir com a prostituta; tanto uns como outros têm o direito de assim procederem porque alimentam a festa cortesã com o seu canto e a sua dança. Por isso o jogral pode-se gabar de obter os favores da mulher de um infanção sem este dar por nada; uma dama pode ser ridicularizada por tentar seduzir um jogral e não ser correspondida ou até pedir a um jogral que durma com ela para dar prazer ao próprio marido.
Descreve-se nos termos mais crus os hábitos de vários jograis abertamente designados pelos seus nomes, como Bernardo Fendudo de Bonaval, Afonso Eanes de Coton, Pêro de Armea ou Pêro de Ambroa, além do já citado João Peres. O mesmo acontece com soldadeiras como a célebre Maria Peres Balteira, ou como Mor Garcia e Urraca Lopes. Não parece ser preciso ocultar os seus nomes, nem eles esconderem o que fazem». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.
Cortesia de Temas e Debates/Círculo de Leitores/JDACT